Che Guevara, assassinado dia 9 de outubro de 1967, 50 anos atrás na Bolívia, tem um legado para o presente e o futuro dos povos. Sua figura tem sido tratada de forma superficial. Ora como um produto comercial cultural, ora como apenas um capítulo do passado latino-americano. Aqui vamos resgatar para além da figura mítica do “guerrilheiro heroico” as contribuições de Che ao marxismo e, argumentar de que continua sendo um personagem do nosso tempo.
Che Guevara é o produto de dois processos: da derrota do nacionalismo de Jacobo Arbenz na Guatemala e da vitória da revolução cubana. Ele testemunha desesperado em 1954 na Guatemala o fracasso do nacionalismo progressista para enfrentar o imperialismo e as oligarquias. A derrocada do governo de Arbenz é um marco que expõe o fracasso político daquelas correntes que se iniciam nos anos 1920 com o APRA de Haya de la Torre no Peru, cujo projeto vai ter grande impacto político e intelectual em muitos países.
Na sequência entra em contato no México com Raul, primeiro, e Fidel Castro, em seguida. Ali encontra uma fermentação de ideias revolucionárias que não eram caudatárias nem do nacionalismo nem do “comunismo ortodoxo” alinhado com Moscou. A incorporação do Che à guerrilha de Fidel faria evidente uma dimensão mais dessa experiência, seu internacionalismo. Lembremos que antes do assalto ao quartel de Moncada em 26 de Julho de 1953, o jovem Fidel, ainda estudante de Direito, tinha participado em 1947 da expedição que tentou derrubar o ditador Rafael Trujillo de República Dominicana, e no ano seguinte, em 1948, participou do levante popular em Colômbia, conhecido como “Bogotazo”, em resposta ao assassinato do líder opositor Jorge Eliécer Gaitán.
Revolução Contra a Razão
Hoje, passados 58 anos a comoção provocada pelo triunfo da Revolução Cubana é menos evidente, no entanto, é possível situar seu impacto em termos análogos ao provocado pela Revolução Russa de 1917. Nesse ano, ao tratar da repercussão da Revolução Russa no marxismo europeu daqueles anos Gramsci provocativamente afirmou que: “A revolução dos bolcheviques é (…) a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na Rússia, mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a demonstração crítica da necessidade inevitável que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua insurreição, nas suas reivindicações de classe, na sua revolução. Os fatos ultrapassaram as ideologias. Os fatos rebentaram os esquemas críticos de acordo com os quais a história da Rússia devia desenrolar-se segundo os cânones do materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx quando afirmam, com o testemunho da ação concreta, das conquistas alcançadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou.”
Em 01 de janeiro de 1959 os fatos tornariam a enfrentar a “razão” e suas tranquilidades. A Revolução Cubana foi o processo revolucionário mais ousado e inovador da segunda metade do século XX, foi uma revolução realizada contra os dogmas da imensa maioria da esquerda mundial, a época sob a hegemonia dos partidos comunistas alinhados a URSS. Em janeiro de 1959 caiu a ditadura de Batista e foi abalada uma leitura do marxismo permeada pelo determinismo, pelo positivismo e o dogmatismo.
No dizer do professor cubano Carlos Tablada, autor do clássico “O Pensamento Econômico de Che Guevara”: “… a Revolução de 1959 foi contra todo o saber e as verdades estabelecidas no Ocidente, na esquerda e na academia. Cuba era o único país do mundo onde era impensável que se desse, triunfasse e se desenvolvesse uma revolução anti-imperialista que conquistasse a independência, a soberania e onde se fundassem e crescessem instituições populares inéditas de verdadeira participação popular, tanto na defesa como na distribuição do produto social nos anos de 1960”.
Guevara exemplificou mais do que nenhum outro dirigente da revolução cubana essa nova postura política, intelectual e ideológica, que buscava novas fontes intelectuais de referência revolucionária, que superou as fracassadas estratégias políticas das outras correntes de esquerda – o nacionalismo, a socialdemocracia e o “comunismo” estalinista. Para trás ficavam as apostas em revoluções democráticas dirigidas por partidos burgueses aos quais a esquerda devia apoiar.
Che ao mesmo tempo em que demonstrou a impossibilidade do capitalismo imperialista em garantir o desenvolvimento e o progresso dos países da América Latina, da África e da Ásia, igualmente, “enfrentou e formulou alternativas à doutrina e à ideologia de dominação desenvolvidas pelas castas burocráticas dos regimes da URSS e do leste europeu e da incipiente burocracia cubana dos anos sessenta” e desenvolveu um pensamento e uma prática alternativos desde o início da revolução cubana.
Outro Socialismo
Entre 1959-1965, período em que fez parte do Governo Revolucionário de Cuba, Che colocou um debate que Stalin tinha interditado com repressão e sangue nos anos 1930, a discussão sobre a transição ao socialismo. Não somente fez publicamente essa discussão, mas se juntou no debate a um dos principais intelectuais trotskistas desse período, o economista belga Ernest Mandel, que questionava a experiência soviética. Che era crítico ao modelo soviético de construção do socialismo, o chamado modelo de “cálculo econômico” o qual para ele se constituía apenas num “conjunto de medidas de controle, de direção e de operação de empresas socializadas” ou, pior ainda, em mero “artifício de apologético”. A construção do socialismo não pode ser empreendida utilizando “as velhas armas estragadas do capitalismo”. Nas palavras de Fidel Che “… tem, nesse momento, muitas ideias originais, porém era totalmente oposto a utilizar as categorias capitalistas, lucro, renda todo esse tipo de coisas na construção do socialismo, porque dizia que adquiririam força per si depois que acabariam escapando a qualquer controle”.
Em nítido contraste à construção do socialismo como resultado do critério do “cálculo econômico” – subterfúgio a legitimar a expropriação do poder de decisão das classes trabalhadoras pelas castas burocráticas a controlar o partido e o Estado – Che, sem rodeios dirá que “as massas devem ter a possibilidade de dirigir seus destinos, resolver quanto vai para a acumulação e quanto para o consumo; a técnica econômica deve operar com estes números, e a consciência das massas assegurar seu cumprimento”.
A marcar a diferença com o modelo soviético e, em termos proféticos a prenunciar a queda da URSS Che Guevara diria: “Tudo parte da equivocada concepção de querer construir o socialismo com elementos do capitalismo sem mudar-lhes realmente o significado. Assim se chega a um sistema híbrido que nos leva a um beco sem saída, dificilmente percebível que obriga a novas concessões às alavancas econômicas, ou seja, ao retrocesso”.
Outra Ética, Nova Cultura
Para Che a transformação da sociedade não é exclusivamente um fato material, mas é, como acima se referiu, um processo consciente a exigir a construção de novas formas de relações sociais e culturais. Nessa seara, Che fez contribuições únicas. Não se tratava apenas de mudar “estruturas” (relações de propriedade, relações de produção, sistemas de poder político) mas havia que se mudar as pessoas.
Essa discussão que aparece na literatura revolucionária como o problema do “homem novo” foi desfigurada pela ideia de que se estava discutindo um “homem perfeito”. Não era isso. O que o Che reivindicava era que o homem, ou a mulher, no socialismo não poderia reproduzir condutas de sociabilidade típicas do capitalismo e de modos de produção de exploração de uma classe por outra. Hoje poderíamos afirmar que o Che Guevara adiantava uma discussão que entre nós reapareceu somente com as leituras de Gramsci e a necessidade da dimensão cultural e de mudança do senso comum na luta política contra a burguesia e o capitalismo.
Internacionalismo
Nos anos que ele esteve com funções no Governo Revolucionário cubano nunca deixou de dialogar com dirigentes das distintas correntes políticas da esquerda latino-americana e de alentar novos processos revolucionários na região. Daí as discussões que manteve com dirigentes revolucionários da estatura de John Wiliam Cook (da esquerda peronista), Tomas Borges (FSLN Nicarágua), Francisco Julião e Luiz Carlos Prestes (Brasil), Héctor Béjar e Javier Heraud (Perú), entre outros. Desta forma, Che e a Revolução Cubana retomavam uma visão do marxismo no qual a luta revolucionária não está agrilhoada ao “socialismo em um só país”, mas só se completa em escala mundial.
Sustentamos que não há “guevarismo”. Guevara é expressão da revolução cubana, tendo sido um dos seus atores principais. O mal-entendido sobre o “guevarismo” como “foquismo” se deveu entre outras razões ao livro do francês Regis Debray, “Revolução na revolução”, que fazia uma leitura simplória do processo cubano e sua reproduzibilidade em outros países. Contrariamente a isso, experiência tão diversas como o FLN fundado em 1969 no México que nos anos 1980 se transmutaria em EZLN, correntes da FSLN na Nicarágua ou da FMLN em El Salvador, se reivindicavam da tradição revolucionária que inclui a Cuba e o Che, e nada tiveram do chamado “foquismo”.
Guevara como estrategista da luta guerrilheira é apenas uma das facetas dele. E a mais datada, já que corresponde ao período em que a luta política aberta na América Latina estava bloqueada pela estratégia do imperialismo americano que desde os anos 1950 impôs ditaduras em toda a região para deter o avanço populare. Essas condições mudaram nos anos 1980 com os processos de “redemocratização” que até 1990 alcançam praticamente a toda a região.
Ao longo das décadas que nos separam do seu assassinato na Bolívia a percepção sobre seu legado acabou por cercar de sombras as contribuições Guevara ao pensamento crítico latino-americano. Se em alguns casos foi relegado à categoria de testemunho de uma epopeia heroica, em outros o mercado o transformou em um produto da indústria comercial. Em ambos extremos se buscou desidratar Che de seu conteúdo socialista e revolucionário, e afastá-lo da Revolução Cubana e, em especial, de Fidel Castro.
Mas, a obra do Che Guevara é uma das máximas expressões dos aprendizados teórico-políticos que América Latina alcançou com a revolução cubana liderada por Fidel: a necessidade de um marxismo crítico, antidogmático e criativo, para compreender a dinâmica do capitalismo periférico e dos sujeitos políticos da transformação social; a superação dos determinismos cinzentos da razão derrotada; a prioridade da batalha política cultural nas massas, tudo guiado pelo objetivo de superar o capitalismo com uma perspectiva internacionalista, de construir o socialismo.
Artigo publicado originalmente no número especial dedicado aos “50 anos sem o Che Guevara” da revista “Caros Amigos”, (setembro, 2017)
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