Nos primeiros cem dias de 2018, o Exército interveio no Rio de Janeiro, a companheira Marielle Franco foi brutalmente assassinada, a violência fascista atentou contra a caravana de Lula, o comandante do Exército (e mais cinco generais) ameaçaram publicamente com um golpe militar, o Supremo Tribunal Federal, contrariando abertamente a Constituição, decidiu pela prisão de Lula. Como entender esta dinâmica montante de violência judicial, militar e fascista? Qual é a sua força e a sua fraqueza? Como enfrentá-la?
Devemos à dialética de Hegel o pensamento de que o conceito que sintetiza as múltiplas determinações da vida social, vem ao final, após a experiência vivida. Sem filosofia da história, retomando e desenvolvendo em um humanismo absoluto a noção de práxis, Marx formou o pensamento de que a emancipação é possível a partir da crítica ao capitalismo real. Assim, a crítica da economia política é um pensamento da liberdade: era preciso retirar o programa dos movimentos socialistas de uma crítica ao capitalismo que se fazia, por diferentes caminhos, no socialismo inglês, francês e alemão, ainda na gramática e na linguagem da economia política liberal, tensionada por valores à esquerda.
Assim, hoje, aqui e agora, não é possível vencer a contra-revolução neoliberal se não partirmos do conceito de ditadura neoliberal. Esta, como se formulou no artigo ” a ditadura neoliberal”, publicada no site Carta Maior, pode ser sintetizada como aquele regime no qual o poder Executivo é exercido ilegitimamente, o Legislativo perdeu qualquer lastro de representação e o Judiciário decide arbitrariamente, sem ter a Constituição como referência. Neste regime de ditadura neoliberal, as eleições de 2018 são reguladas e tuteladas para não permitirem a vitória de uma candidatura antigolpista. Do ponto de vista das instituições, não há limites para esta vontade ditatorial de sentido neoliberal. O STF, o TSE, o STJ estão , majoritariamente,
articulados nesta direção.
A força desta vontade política está ainda na unidade em torno do programa de consolidar no Brasil um Estado neoliberal. São muitas e relevantes as tensões, as divergências táticas e, principalmente, a disputa em torno de quem será o candidato à presidente, mas, no fundamental, a unidade classista da coalizão golpista não se rompeu. A fraqueza desta vontade está na extrema e crescente ilegitimidade democrática, que já alcançou um grau de sedimentação como fruto da resistência da esquerda, da catástrofe econômica e social gerada pelo programa neoliberal
implementado no Brasil.
Daí que a contra-revolução pode e deve ser derrotada no plano da luta democrática, que ponha em movimento a sua base social, uma frente única que faça uso de mobilização de rua, de sua potência de voz, articulada à sua potência eleitoral. Mas esta vontade democrática não tem sido exercida em plenitude em função da ilusão constitucional, de raiz liberal, que prioriza a luta na temporalidade e no terreno das instituições e leis da democracia brasileira as quais, no entanto, não mais têm validade. Essa ilusão constitucional, de fundo liberal, tem se manifestado desde 2015
de quatro modos: as ilusões da conciliação classista, a parlamentar, a eleitoral e a jurídica.
A ilusão da conciliação classista- a de que cedendo a política econômica do segundo governo Dilma aos neoliberais seria dividida ou neutralizada a escalada golpista se revelou fatal, pois desmontou a base de apoio popular ao segundo governo Dilma. A ilusão parlamentar, de que se poderia derrotar o golpe alcançando um patamar mínimo de votos no Congresso Nacional – prevaleceu até o último momento e levou mesmo, em um momento decisivo, a entregar a articulação institucional do governo a…Temer.
A ilusão eleitoral manifestou-se principalmente a partir de meados de 2017 com a antecipada centralidade conferida às eleições presidenciais de 2018. Pela eleição de Lula presidente, o golpe seria derrotado. Como se as eleições de 2018 fossem realizar-se em um quadro de normalidade democrática.
A ilusão jurídica, que agora se manifestou com força, era de que a prisão de Lula poderia ser evitada por uma maioria no STF. Até a véspera da votação, confiava-se na consciência jurídica de… Rosa Weber, que já havia cumprido um papel chave antipetista quando da Ação penal 427 ( seu principal assessor era justamente Moro).
Aos olhos de hoje, parece absurdo que as forças majoritárias da esquerda brasileira tenham posto um neoliberal radical no Ministério da Fazenda, Temer para ser seu articulador institucional, ter acreditado que os golpistas deixariam Lula vencer em eleições democráticas e que a consciência jurídica de Rosa Weber fosse um obstáculo à vontade imperiosa de prender Lula.
A crítica à ilusão constitucional não significa, é evidente, a negação de tentativas de pactuar com setores do capital, de lutar decididamente por uma articulação parlamentar anti-inflamatória, de lançar Lula candidato à presidência e realizar caravanas, de acionar todas as possibilidades de recursos jurídicos em todas as instâncias. Significa que tais ações deveriam ser subordinadas desde o início de 2015 à formação de um amplo movimento político unitário de massas em defesa da democracia. Tais ações seriam certamente fortalecidas, legitimadas e até, talvez,
alcançassem êxito se apoiadas desde o início por este movimento unitário e democrático de massas.
Raízes da ilusão
A ilusão de que a contra-revolução neoliberal pode ser vencida em seu próprio terreno tem, em primeiro lugar, uma base real. A ditadura neoliberal já formou seu poder: controla todas as instituições centrais do Estado, inclusive os aparelhos de coerção. Mas não formou, nem estabeleceu e muito menos legitimou as instituições de reprodução do seu poder. Por isso, ela faz do casuísmo de exceção a sua âncora, a jurisprudência de exceção torna-se o paradigma ( como no voto exemplar de Rosa Weber), como, aliás, é todo o processo da Lava-Jato, como foi o impeachment e, agora, a prisão do Lula.
Há ainda uma segunda razão para a ilusão: o processo histórico de adaptação do PT e da esquerda, inclusive do PCdoB e do PSOL, à luta prioritária nas instituições do Estado brasileiro. A mudança radical e vertiginosa provocada pelo golpe ainda não formou uma nova consciência da esquerda: ela está em trânsito, com todo o peso inercial da consciência anterior.
Há, enfim, uma razão terceira: o assassinato da companheira Marielle, o atentado à caravana e, agora, a prisão de Lula é a forma de o poder político golpista compensar a sua perda de legitimação. Ela combina violência judicial, ameaça militar e a ação direta dos fascistas. É preciso entender esta lógica de violência antes que seja tarde.
Neoliberais & fascistas
Já na origem, a tradição política neoliberal apontava a sua incompatibilidade com o princípio da soberania popular e com o regime democrático nele baseado, mesmo em bases liberais. Como contraponto ao liberalismo social ou keynesiano, ele propunha não um pacto histórico, mas a execração e a neutralização da esquerda. Coerente com esta tradição, neoliberais apoiaram ditaduras sanguinárias como a de Pinochet e na Argentina a partir de 1976. Como já se disse, para o neoliberalismo a Guerra Fria não terminou: ao mesmo tempo em que execra e criminaliza a esquerda, legítima e abre espaço político e social para forças protofascistas e abertamente fascistas.
Há, decerto, uma relação funcional e de afinidade entre neoliberalismo e fascismo. Uma política tão violenta de exclusão e de apartação social precisa se justificar com base em preconceitos racialistas, antigolpista e patriarcais. Mas há também, decerto, uma afinidade cultural: ambos não aceitam disputar democraticamente com a esquerda. Optam, no caso dos neoliberais, por neutralizá-la, asfixiando a democracia; ou exterminando a esquerda, como no caso dos fascistas. No Brasil, a lógica combinada entre a violência judicial e a violência aberta dos fascistas já está em curso neste ano de 2018.
Quando Bolsonaro, em 2016, cometeu a fala pública na Câmara Federal, ameaçando de estupro a deputada federal do PT, Maria do Rosário, editoriais neoliberais dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo manifestaram o seu desacordo com a fala do deputado, mas defenderam o seu direito de proferir esta barbárie em nome de uma interpretação neoliberal da liberdade de expressão. Esta interpretação legítima o discurso do ódio, como prevalece hoje na suprema corte norte-americana e, por analogia, no STF brasileiro.
A linguagem política do discurso do ódio solda a aliança pública entre neoliberais e fascistas em sua escalada de violência contra a esquerda brasileira. Cria a sua base de massas, seu repertório e, a todo pretexto, suas ações midiaticamente reproduzidas como exemplares. A base social deste encontro está no Bolsonaro, que tem nos aparatos de repressão seus nichos de recrutamento.
Frente anti-golpista
Daí o sentido fundamental da frente anti-fascista lançada no comício unitário de Curitiba, continuada no belo ato do Rio e na cena histórica da resistência no sindicato de São Bernardo. A sua reivindicação central é a liberdade de Lula é sua base política é a defesa dos direitos humanos e da democracia. Essa frente, desde a sua origem, é nacional e internacional, está aberta à unidade de todos os democratas, é ecumênica e pluralista, é de massas e deve se organizar pela base.
Para ela, devem convergir milhões no Brasil e no mundo. Diante do projeto neoliberal de construir um Estado à sua imagem e semelhança, há toda a geração histórica da esquerda brasileira, conta com dezenas, senão centenas, de milhares de militantes e simpatizantes ativos. Esta geração agora, com suas qualidades, conquistas e limites, está sob risco da violência neoliberal e fascista. É preciso deter a escalada da violência agora, antes que ela se desenvolva em sua capacidade criminosa de destruição massiva.
Juarez Guimarães é cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Originalmente publicado em Carta Maior
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