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Naturalização do autoritarismo e tortura | Wagner Romão

O Brasil certamente foi o país latino-americano que mais teve dificuldades em passar a limpo o que ocorreu nos porões do regime autoritário. A Comissão da Verdade veio tardiamente e a Lei da Anistia foi imposta pelos militares quando ainda controlavam o país, muito embora ela tenha sido um marco importante na redemocratização pelo alívio que deu aos perseguidos políticos e às suas famílias.

Esta forma fraca de lidar com o horror do regime pode estar na raiz desta naturalização da violência política e da tortura no contexto destas eleições.

A imagem mais aterradora neste cardápio variado é o vídeo do elogio de Bolsonaro, em seu voto pelo impeachment de Dilma, ao coronel Brilhante Ustra, articulador e executor do aparato de “investigação” – leia-se, tortura – do DOI-CODI, de codinome “Tibiriçá”. Quem não viu, faça o favor de procurar.

Como pode uma pessoa que pretende se candidatar a presidente da República fazer uma declaração daquela? Como pode ele fazer apologia à tortura – ele se referiu a Ustra como “o terror de Dilma” – e não sofrer um processo, no mínimo, por decoro parlamentar? Como poderemos ter um presidente da República com esse desvio de caráter?

Ustra torturava suas vítimas na frente de seus cônjuges, filhos e filhas, crianças. Sob a proteção do Estado. Sob a proteção de sua patente.

Muitos falam sobre o “outro lado”, pessoas que pretendiam instaurar uma “ditadura marxista” no país. Que facínoras como Ustra teriam apenas cumprido um papel na guerra contra o “comunismo”.

Digo-lhes que, certamente, se houvesse democracia, se houvesse liberdade política, se houvesse a possibilidade da competição eleitoral entre as diversas ideologias políticas, tais grupos estariam relegados ao esquecimento. A ditadura militar provocou o aparecimento da luta armada. A luta armada não teria ocorrido sob um regime realmente democrático liberal.

Portanto, não há desculpas em se naturalizar e diminuir o horror da tortura, do assassinato, do desaparecimento. Não há distância segura. Não há como relativizar tais práticas como algo que atingiu apenas “quem estava fazendo coisa errada”.

No semestre passado eu dei um curso livre na Unicamp, para o pessoal da Terceira Idade. Numa das aulas, me impressionou muito o relato de alguns deles – a maioria vindos do interior de São Paulo – sobre como no período da ditadura seus pais, irmãos ou primos sofreram consequências do regime militar.

Não eram líderes da luta armada. Não eram “comunistas”. Era gente comum, que às vezes por rixa, às vezes por alguma militância política muito pouco radical, às vezes por pura falta de sorte, entrava em contradição com alguma autoridade local – um delegado, um sargento, um juiz, um dono de terras – e, de repente, essa pessoa sumia por uns dias, apanhava na cadeia, levava um “corretivo”.

Muita gente desapareceu em situações deste tipo, casos que sequer chegaram a ser notificados em comissões da verdade.

Este é o grande risco do retorno dos militares ao poder, na figura de Bolsonaro, Mourão e dos marombados que os rodeiam. Este é o pessoal que quer fazer a “sua” justiça com as próprias mãos e se sente absolutamente empoderado, liberado, para fazê-lo. Afinal de contas, seu líder maior – Bolsonaro – é um apologeta da violência verbal, da violência física e da tortura.

É isso que chamamos fascismo. Quando a caixa do fascismo se abre – sob o manto do patriota “Brasil (ou Alemanha, ou Itália, ou EUA…) acima de tudo”, com a apropriação de símbolos nacionais, com camisas pretas ou amarelas, com carrões adesivados… – essa coisa feia que é a violência política se espalha e toma conta de tudo. E depois, é muito difícil fazer isso retornar de onde veio. E ela pode atingir você e seus familiares também, mesmo você, que é entusiasta do 17 como solução para o país. Isso não tem controle.

A corrupção é algo que deve ser combatido. É algo vergonhoso, sobretudo numa sociedade tão desigual como a nossa. É algo que repudiamos.

Mas, ela não se compara com o grau de animalidade da tortura. Não se compara com o uso da violência para resolver as diferenças políticas. Não se compara com o risco à democracia que estamos presenciando neste momento.

Sem democracia, não haverá combate à corrupção. A não ser de fachada. Foi isso que ocorreu na ditadura militar. Corre-se um risco muito, muito grande de que isso ocorra sob o domínio de um possível governo Bolsonaro, do modo como este vem se desenhando, em que aqueles que detém a força armada para combater os inimigos externos protagonizarão o poder executivo.

Por muitas razões, mas acima de tudo por esta razão, a candidatura de Bolsonaro é tão nefasta e deve ser combatida com todas as nossas forças.

Wagner Romão é professor de ciência política da Unicamp.

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