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O fascismo brasileiro do século XXI | Juarez Guimarães

Foto: Nacho Doce/Reuters

Em 1939, o maior escritor alemão do século XX, Thomas Mann, “munindo-se de um certo auto-domínio, de mais a mais sempre em risco de tornar-se imoral”, escreveu um ensaio chamando Hitler , “ essa criatura miserável, ainda que fatídica”, de “meu irmão”. É que, ele próprio, como maior herdeiro da tradição humanista e universalista de Goethe, reconhecia que Hitler era uma possibilidade de desenvolvimento da tradição alemã inserida em seus impasses da Modernidade. “O auto-reconhecimento”, afirmava, “é mais qualificante, mais sincero e satisfatório, mais produtivo até que o ódio”. Já havia escrito que “mais felizes e justos se me afiguram os momentos em que o ódio sucumbe ao desejo de liberdade”.

Um fascismo brasileiro do século XXI? Como estudioso e membro de uma tradição de estudos da cultura política brasileira, com ênfase no que ela tem de generoso, universalista, libertário e criador – republicana, popular e socialista -, causa repugnância tratar um movimento fascista como brasileiro. Mas, como se disse, se a liberdade é auto-conhecimento, é preciso reconhecer que Bolsonaro é um… brasileiro.

Em que sentido é fascista e em qual é brasileiro? No ensaio “Um fascismo do século XXI”, a partir de um diálogo com Roger Griffin, Marilena Chauí e Newton Bignotto, trabalhamos o conceito de “fascismo genérico”, em polêmica com uma certa interpretação liberal de que Bolsonaro não era de extrema-direita, identificando-o como uma tradição política da Modernidade que visa promover um renascimento nacional e/ou racial a partir da eliminação da parte da sociedade que é considerada doente ou criminosa. O ensaio “As três vitória de Gramsci sobre o fascismo” buscou reconstituir o sentido histórico e contemporâneo das reflexões do marxista italiano no cárcere. O fascismo representaria, sobretudo, o uso da violência legitimada por uma disputa de valores civilizatórios contra o socialismo e de forma alternativa ao liberalismo sobre como organizar a sociedade, a economia e o poder. Para Gramsci, é somente através da construção da hegemonia em defesa da democracia, da liberdade, do auto-governo e de um humanismo radical que o marxismo poderia triunfar sobre o fascismo.

Em entrevista postada na rede, o filósofo e professor da USP Vladmir Safatle enumera quatro dimensões centrais do fascismo: o culto à violência, a defesa de um Estado-Nação em uma versão paranóica, a insensibilidade com os mais vulneráveis e a defesa de uma força própria, agindo fora da lei, contra as instituições democráticas. Certamente, o conceito genérico de fascismo de Roger Griffin dialoga com a definição de Safatle.

Já o professor Wanderley Guilherme dos Santos, uma das inteligências centrais da nossa cultura democrática, recusa o conceito de fascismo por não identificar no movimento político de Bolsonaro, como no fascismo ou nazismo, uma “organização paramilitar, toda a população organizada com uma hierarquia e uma estratégia de ação de violência, mas sob coordenação”. “Haveria todo um caldo de cultura fascistóide no sentido trivial, não no sentido político do termo”. O primeiro argumento, como se viu, tem sido há décadas criticado por Griffin em sua polêmica com a identificação do fascismo ou do nazismo por traços históricos específicos que, é evidente, não se repetem da mesma forma. Liberalismo e socialismo, afirma Griffin, são também tradições históricas que variam muito no tempo e no espaço, sem deixar de se constituírem como tradições políticas. Também esta separação entre “caldo de cultura” e “política” seria criticada por Gramsci: são exatamente vitórias no campo da disputa de valores, que permitem a ascensão do fascismo e sua violência.

Como autor do brilhante “A democracia impedida”, o professor Wanderley Guilherme provavelmente discorda da aplicação da última caracterização de Safatle para o caso brasileiro. Bolsonaro representaria um provável “ataque à democracia pela própria democracia”, por dentro das instituições e reinterpretando instrumentalmente a própria Constituição. Na mesma direção, embora com argumentos diferentes, vai o ensaio “O populismo fascista só está a começar” do dirigente político da esquerda portuguesa Francisco Louçã. Não haveria ainda um “poder absoluto, censura de imprensa, proibição de partidos, a repressão massiva do movimento operário, o endeusamento do chefe”. Os elementos fascistas contidos no movimento político liderado por Bolsonaro poderiam ganhar corpo através da sua relação com os militares, a partir da sua condição de governo do Brasil.

Este argumento parece sensato, importante e correto: neste ensaio se procurará exatamente projetar a ideia de que o próximo período será marcado exatamente pela dinâmica do governo fascista de Bolsonaro em construir um regime fascista, isto é, amoldar instituições, leis e a máquina de violência para cumprir o seu programa de refundar o Brasil.

A definição alternativa proposta pelo professor Wanderley Guilherme é a de um governo de ocupação: “quando ele externa considerar o MST como organização terrorista ou diz que ou os vermelhos vão embora ou vão para a cadeia, isto é um governo de ocupação que transforma toda oposição em inimigo. A visão que Bolsonaro tem é que seus opositores são estrangeiros no Brasil. Não são brasileiros propriamente ditos”. Esta caracterização é, na verdade, muito próxima ao que Griffin chama de “fascista”: a eliminação da parte considerada “podre” ou “doente” para se operar a formação de uma nova unidade orgânica.

O professor Wanderley Guilherme diz, enfim, corretamente que “não existem 50 milhões de fascistas no Brasil”. Evidente que não: apenas uma parte dos eleitores de Bolsonaro cultivam valores identificados com o que chamamos de fascismo. Mas como entender essa ascensão de um movimento político fascista no Brasil e a formação de uma ampla base eleitoral para seu projeto de poder?

Este ensaio pretende refletir sobre esta pergunta e se divide em três partes. A primeira identifica o fascismo de Bolsonaro como um americanismo agindo na cultura política brasileira. A segunda pretende mostrar as raízes orgânicas do bolsonarismo na política e na história brasileira. E a terceira, como enfrentá-lo, a partir de seu desafio de transitar de um governo fascista para um regime fascista através da formação de uma frente democrática.

O bolsonarismo é um americanismo

Para os que estudam as tradições do pensamento político brasileiro, o americanismo designa um duplo movimento de idéias, interesses e valores: de um lado, a atração exercida desde o século XIX pelos EUA sobre setores liberais da sociedade brasileira e, depois de 1945, com a hegemonia política e cultural norte-americana nos tempos da chamada guerra fria, um vasto movimento de relação, influência, colonização e inserção dos EUA na cultura e na política brasileira.

O bolsonarismo é certamente um americanismo e não poderia ser explicado ou entendido fora deste eixo geopolítico e cultural. Mesmo a forma como aborda o nacional – “ O Brasil acima de todos “ – é americanista, isto é, significa submeter o Brasil direta e profundamente, no plano geopolítico, aos EUA. Assim, não há contradição nesta linguagem da guerra fria em bater continência à bandeira americana e honrar a bandeira verde e amarela. O Brasil funciona para este movimento fascista – diferentemente do que significou para Mussolini ou Hitler, empenhados em uma expansão imperialista – o recurso a uma imagem simbólica de unidade sã e normalizada exorcizada da parte doente (comunista) e que traz a peste da divisão (da luta de classes, do anti-racismo, do feminismo e dos direitos LGBTs).

O programa do bolsonarismo é explicitamente o programa neoliberal de Wall Sreet. É difícil de traçar a diferença entre o programa encarnado pelo financista internacionalizado Paulo Guedes e o programa Armínio Fraga de Aécio Neves em 2014. Pérsio Arida, outro financista neoliberal, chamou Paulo Guedes de “mitômano”, fazendo referência a sua adesão ao fascista Bolsonaro. Mas a primeira entrevista do porta-voz da Eurásia, que administra fundos de investimentos financeiros europeus, é que Bolsonaro preocupa menos em sua relação com a democracia do que em sua relação com a governança (entenda-se, as condições ótimas e estáveis para o rentismo e a predação dos fundos públicos e e empresas estatais).

A base popular do bolsonarismo, as igrejas pentecostais fundamentalistas, constitui um claro fenômeno americanista na cultura religiosa brasileira. É um fenômeno em claro contraste com as tradições católicas brasileiras, mesmo as conservadoras ou carismáticas, que acompanham a pauta conservadora no plano da moralidade. A chamada “teologia da prosperidade” e a corrosão de alguns valores piedosos que existem mesmo em tradições católicas conservadoras engatam-se bem com as teses neoliberais mais radicais. “O Deus acima de todos” de Bolsonaro é ressignificado em uma chave estranha à tradição católica ibérica brasileira e em claro confronto às tradições progressistas e da libertação encarnadas na história da CNBB.

Por fim, o modus operandi da campanha política de Bolsonaro, diretamente orientada pelos marqueteiros de Trump, campanhas de ódio e fake news nas redes sociais, é certamente um americanismo. Bolsonaro não é Trump mas há certamente aqui uma rede de relações interessadas e corrompidas pelo capital que opera às margens da legalidade democrática.

O que seria mesmo Bolsonaro sem o discurso da guerra fria, sem evangélicos fundamentalistas, sem programa neoliberal e sem fake news? Seria ainda um Bolsonaro?

A raiz brasileira e de classe de Bolsonaro

Mas se a orientação geopolítica, o programa, a base popular e o modus operandi do bolsonarismo é americanista, é preciso reconhecer igualmente sua raiz de classes brasileira.

Em primeiro lugar, o ódio e desprezo que revela aos pobres, aos negros e às mulheres, têm fundas raízes no sistema colonial de apartação social, de racismo e patriarcalismo que organizam desde sempre as vertentes da dominação de classes no Brasil. Bolsonaro não as inventou mas reorganizou a legitimidade de seu discurso público e as deu uma direção política de poder.

Em segundo lugar, a ascensão do bolsonarismo revela tantos anos depois da tragédia de 1964, a fraqueza histórica da tradição liberal em construir hegemonia na sociedade brasileira. Bolsonaro não é apenas o fracasso do PSDB mas aquele que derrotou Fernando Henrique Cardoso em seu próprio partido. O líder intelectual dos neoliberais brasileiros não é certamente um fascista mas está hoje tão distanciado dos valores democráticos que sequer pôde se posicionar no segundo turno contra o fascista. Se em 1964, os liberais em massa apoiaram o golpe militar, os neoliberais hoje apóiam o fascismo em massa. Os três governadores eleitos pelo PSDB, com centralidade para o de São Paulo, fizeram campanha bolsonarista desde o primeiro turno. De partido de centro-direita a um partido de direita, de um partido de direita a um partido golpista, de um partido golpista a um partido proto-fascista!

Em terceiro lugar, o sentido orgânico do bolsonarismo em relação à conjuntura histórica da luta de classes no Brasil revela-se no fato de que ele se impôs como solução possível , depois preferencial e, após, necessária, diante da incapacidade da direção da coalizão golpista que derrubou Dilma em 2016 em oferecer uma alternativa viável para as eleições presidenciais de 2018. Bolsonaro está muito longe de ser um outsider mas, de força de apoio, passou à condição de líder da coalizão golpista, aliás que não sofreu rupturas classistas burguesas ou políticas importantes. A inteira base de classe, inclusive o engajamento das classes médias conservadoras, da liderança da Lava-Jato às mídias corporativas – com exceção da Folha de S. Paulo – , das entidades empresariais da indústria e comércio aos grandes bancos, nacionais e internacionais, o agro-negócio, que organizou o golpe está com Bolsonaro presidente.

Bolsonaro presidente é, assim, a síntese de todas as derrotas das esquerdas brasileiras – em fornecer uma resposta democrática ao problema candente da segurança , em democratizar o Estado e imunizá-lo contra as dinâmicas da corrupção, em construir uma cultura e organização cidadã ativa e popular no país- e, ao mesmo tempo, a revanche contra todas as suas conquistas – a expansão dos direitos do trabalho e dos direitos sociais, um início de reposição histórica dos direitos dos negros e das mulheres e um certo reposicionamento do setor público e da soberania nacional.

De um governo a um regime fascista?

Desde Rousseau, pelo menos, se estabeleceu na filosofia política uma clara distinção entre governo ( aquele que exerce o poder), o regime ( as formas institucionais e constitucionais de organização do poder) e o Estado ( com seu princípio de legitimação ou, em linguagem hegeliana, seu princípio ético-político que fundamenta os direitos e os deveres). O Brasil tem agora um governo fascista que vai exercer o seu mandato e programa em meio a instituições democráticas e constitucionais em franco processo de degradação e um princípio de legitimidade do estado em disputa.

No próximo período, teremos um governo fascista forçando as instituições e a própria Constituição a se formatar ou se instrumentalizar a um regime fascista no sentido de implementar um Estado plenamente neoliberal no Brasil. A dinâmica política do país, então, se organizará em torno a este eixo da fascistização e da luta popular e democrática contra ela.

Os três eixos de fascistização são a militarização da vida política, a criminalização da esquerda e dos movimentos sociais, os ataques à liberdade de expressão, de ensino e de criação cultural a partir de uma moral conservadora, racista e misógina. Estes três eixos de fascistização se articularão à implementação selvagem de um programa de privatização e aprofundamento da agressão aos direitos sociais.

Mas o mandato desta força política destrutiva se inicia com um alto grau de rejeição (perto de 40 % da população já rejeitam fortemente Bolsonaro), com uma representação política forte da resistência democrática ( cerca de 45 % dos votos obtidos no segundo turno), com o princípio de articulação internacional em defesa dos direitos humanos ( já capaz inclusive de incidir sobre posicionamentos da própria ONU), com uma belíssima e cada vez mais ativa criação dos artistas e intelectuais brasileiros, com uma recomposição da presença da CNBB e mesmo dos evangélicos progressistas. Em particular no final do segundo turno, grandes manifestações unitárias e democráticas expressaram a disposição de luta contra o bolsonarismo. É preciso, pois, criar uma frente supra-partidária, que abarque os partidos e representações da sociedade civil , em defesa da democracia.

Como escreveu em artigo recente “O neoliberalismo recorre ao fascismo para impor-se” o poeta Hamilton Pereira, que de vez em quando assina Pedro Tierra: a palavra agora é liberdade e a esperança só pode ser livre ou não será!

Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG e coordenador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras).
Artigo publicado originalmente no portal Carta Maior.

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