Debate inicial do processo da XIII Conferência da DS, realizado em 28 de abril de 2021, mediado por Moara Saboia , com Francisco Louçã do Bloco de Esquerda (Portugal) , Clarisse Paradis e Arno Augustin
Começo reconhecendo que estamos em um processo de crise do capitalismo, em que se organiza, fundamentalmente, o conflito entre capital e vida. Se a gente já vinha observando esse conflito antes da pandemia, neste período ele se torna mais aguçado. Nesse momento, as políticas austericidas tem sido aprofundadas em meio à miséria, fome e em detrimento das condições de sustentação dos equipamentos públicos. Recentemente, o ministro Paulo Guedes declarou que o Estado brasileiro quebrou e não consegue mais oferecer os serviços públicos pela razão de as pessoas estarem vivendo muito. Sem nem discutir toda a falácia do argumento, é possível perguntar como podemos conceber um mundo em que o maior problema declarado seja o de que as pessoas vivam (muito)?
As condições que nós estamos vivenciando a pandemia hoje escancaram a confluência entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo, fundamental para essa fase do capitalismo e que traz muitas consequências. Centro o debate em algumas consequências que envolvem o mercado e a família, baseando-me no debate que nós organizamos na Marcha Mundial das Mulheres, na nossa ação feminista da DS.
Um dos aspectos fundamentais do neoliberalismo é o grande poder das empresas e das corporações. Francisco Louçã falou disso, do ponto de vista das corporações de comunicação e vários/as dos/as nossos/as companheiros e intelectuais tem trazido o debate de como que as empresas organizam a nossa vida social. Destaco nesse ponto as contribuições da Marcha Mundial das Mulheres. As grandes corporações não apenas produzem os bens e os serviços dos quais nós precisamos, mas também criam valores, organizam as nossas subjetividades e os processos de alienação.
Elas decidem como e quem produz remédios e vacinas contra COVID-19, quem são os países que recebem, primeiramente, as vacinas, ou seja, em última instância, quem vive quem morre. Elas exercem poder de repressão e violência, como foi o caso do homem negro assassinado em 2020 em pleno estacionamento de um supermercado por seguranças privados do estabelecimento no Rio Grande do Sul ou na investida que fazem sobre os territórios, roubando os recursos naturais.
Além disso, elas acumulam riquezas a partir de contrato de trabalhos cada vez mais precários e inerentemente arriscados, tornando a classe trabalhadora cada vez mais responsável por suprir os riscos que capitalismo hoje impõe sobre as pessoas, sobretudo sobre as mulheres, sobre a população negra, etc.
Elas organizam as formas de socialização que a gente tem – os meios de entretenimento, o que a gente assiste pra descansar, passando pela venda de bênçãos nas “igrejas-corporações”, até a propagação da indústria sexual e da pornografia. Ou seja, as grandes corporações têm organizado os nossos valores sociais, morais, sexuais, religiosos.
Da mesma forma, a família também têm um papel fundamental para a relação entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo. Não é à toa esse movimento no Brasil de reforço ideológico fundamental do valor e do papel das famílias. Esse reforço serve para muitos propósitos.
Serve para que os riscos do capitalismo sejam privatizados no interior das famílias, responsabilizando especialmente as mulheres pela reprodução da vida, em condições cada vez mais precárias. Contribui para o desmantelamento das demandas por igualdade, ao conceber a sociedade como um conjunto de unidades familiares, onde os valores e subjetividades são construídos e reforçados pelo individualismo, prejudicando processos de construção da democracia, que dependem de interações sociais baseadas na igualdade e nas relações sociais na esfera pública.
Ao mesmo tempo, esse reforço ideológico da família serve pra deslegitimar o Estado e os serviços públicos. Não é à toa que os bolsonaristas defendem tanto essa ideia das escolas em casa (“homescholling”), pois reforça a privatização dos serviços públicos. A afirmação da primazia da família também serve fundamentalmente para aguçar e reforçar os valores do individualismo, da heteronormatividade, do consumismo.
Como exemplo, recentemente, o governo Bolsonaro lançou uma cartilha sobre as políticas públicas para a família. No texto, a correlação entre famílias monoparentais femininas e pobreza é vista como um problema que deve ser sanado a partir do incentivo ao casamento. Nessa retórica, o casamento aparece como a saída para o desenvolvimento social, econômico e, inclusive como solução para a violência que assola as comunidades.
Ainda, a confluência entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo contribuem para descompatibilizar os ideias de liberdade e igualdade. Os discursos da ultradireita na pandemia vão construindo uma ideia de liberdade em que os seres humanos são “hiperautônomos”, desvinculados de uma necessidade social da vida coletiva. Então, a pessoa se recusa a usar máscara, se recusa a vacinar, se as pessoas criticam que as igrejas não deveriam estar abertas no momento mais dramático da pandemia elas são acusadas de infringirem a liberdade de culto.
Esses elementos devem estar no centro do nosso debate e das disputas do próximo período. Pensando no desafio de construção de um projeto político para o Brasil, que saia vitorioso nas eleições e que seja capaz de constituir as condições para transformar a confluência perversa entre neoliberalismo, autoritarismo e conservadorismo, precisamos construir um projeto que não reforce o casamento, a maternidade e a heteronormatividade como destinos naturais, valores intrínsecos ou marcos acríticos para construção das políticas públicas.
Por fim, devemos ser capazes de responder qual sociedade nós visualizamos como uma imagem oposta a da barbárie?
Socialista no sentido de construção de outros parâmetros, prioridades e condições de produção e reprodução da vida; libertária, no sentido de construir virtuosas integrações entre nossa subjetividade e individualidade e nossa inerente condição humana de interdependência. Igualitária, no sentido de atacar todos os privilégios, hierarquias entre nós, atacar o racismo e o patriarcado.
É diante da barbárie que devemos ter ação militante e proposição de imaginação. Então, isso significa que nós também temos que olhar para esses debates e pensar a conexão entre liberdade e igualdade, justamente para retomar aquilo que Camila falou no início do debate, na sua bela poesia: “Quanto a vida valerá?” Ou seja, nós precisamos pensar a vida que valha realmente a pena ser vivida.
- Clarice Paradis é da Coordenação Nacional da DS e professora universitária,Unilab/Campus dos Malês.
Foto: Gilmar Mattos
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