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A PEC 5/2021 e a Democracia, ou quem controla o controlador? | Paulo dos Santos

Como tem acontecido costumeiramente, mais uma vez o Ministério Público, há poucos dias, se tornou pauta de debate público. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 5/2021) apresentada pelo deputado federal Paulo Teixeira, do PT de São Paulo, extrapolou o plenário da Câmara dos Deputados, se tornou tema em Live de artistas e ganhou espaço nos mais variados locais. Foi possível encontrar desde manifestações dos Procuradores da força-tarefa da Lava Jato, bem como vídeo gravado pelo cantor sertanejo Leonardo em que reclama a importância da “soberania do Ministério Público”, e, até mesmo, Live de Paula Lavigne e Caetano Veloso com o portal de notícias Mídia Ninja, em debate com o autor da PEC, em que afirmavam a importância de uma autonomia do Ministério Público apartada das demais instituições e das regras básicas do jogo democrático, ainda que liberal. Ou seja, o assunto tomou conta dentre os membros de um determinado grupo de certa condição social. O resultado dessa mobilização foi a não aprovação do substitutivo da PEC que fora apresentado pelo deputado Paulo Magalhães do PSD da Bahia.

Os contrários à PEC 5/2021 diziam que ela impunha ao Ministério Público uma nítida “intervenção política”. Os favoráveis negavam essa “intervenção”, mas afirmavam a importância de reforçar o único mecanismo de controle externo do MP que, até o momento, pouco ou quase nada julga e, muito menos, impõe determinações sobre casos concretos. Entretanto, o que mais chama atenção é que, grande parte dos contrários a Proposta, não sabem de fato as funções que o Ministério Público exerce. O cantor sertanejo, por exemplo, falou sobre a “soberania do Ministério Público”; Paula Lavigne e Caetano disseram, várias vezes, desconhecer o papel do MP, mas que, mesmo assim, discordavam da Proposta do deputado petista, pois entendiam que o Ministério Público deve ser livre para investigar, sobretudo os políticos.

Os Procuradores, em especial os ligados a força-tarefa da Lava Jato, como têm feito desde 2014, foram às redes sociais defender a liberdade do Ministério Público frente às intenções do campo político de intervir na instituição[ii]. Por conta disso, a PEC 5/2021 chegou a ganhar a alcunha de “PEC da vingança”, pois, passaram a dizer, que o proponente não teria outra intenção a não ser partir para uma vingança institucional contra aqueles que investigaram os políticos, em especial o PT. Ou seja, mais uma vez a afirmação da narrativa de que o PT e o campo político buscavam se preservar ante as ameaças que o Ministério Público livre e autônomo pode oferecer ao sistema corrupto.

Por óbvio, essa mensagem chegou à mentalidade lavajatista de alguns grupos políticos à esquerda. O que, talvez, até impressione devido ao grau de comprometimento com a luta democrática que esses grupos têm apresentado. Quer dizer, mesmo com a operação Spoofing demonstrando toda uma ação coordenada de agentes do Ministério Público por fora do marco legal para intervir no campo político por meio de ação persecutória contra membros do PT, em especial o presidente Lula, esses grupos votaram contra o substitutivo da PEC 5/2021. O que reforçou ainda mais a narrativa da liberdade e autonomia dos investigadores ante a vingança petista.

A questão colocada aqui é: o que de tão vingativo e aterrorizante foi escrito na Proposta a ponto de movimentar toda essa grita?

Vamos do início. Os mais variados trabalhos no âmbito da Ciência Política têm demonstrado o quanto o Ministério Público foi, ao longo do tempo, conquistando certa autonomia funcional, administrativa e política ante aos Poderes da República. Outros trabalhos tratam, fundamentalmente, sobre o ativismo judicial e o voluntarismo político dessa instituição, bem como do seu papel privilegiado enquanto instituição de controle dos órgãos governamentais.

Trabalhos mais atuais vêm tratando sobre o recrutamento das elites, o processo formativo dos Procuradores e Promotores, além dos movimentos “anticorrupção” e a mobilização de um caráter moralizador da vida política por meio de um processo de politização da justiça.

Esses trabalhos nos permitem compreender que a autonomia do Ministério Público é algo que tem sido conquistada a mais tempo do que se imagina. Regularmente se costuma frisar a Constituição Federal de 1988 como o marco da autonomia dessa instituição, no entanto, a força do Ministério Público enquanto instituição responsável por defender o interesse público é algo que tem origem ainda no período da ditadura civil-militar.

Quer dizer, ao mesmo tempo em que o regime se tornava cada vez mais autoritário, ao Ministério Público eram concedidos avanços importantes. Em 1973, o Código de Processo Civil vai definir o Ministério Público como a instituição responsável por defender o interesse público. Em 1981, com a Política Nacional do Meio Ambiente e o surgimento da “ação civil pública”, o MP vai adquirir ainda mais força institucional.

Invariavelmente, a Constituição Federal de 1988 vai reforçar ainda mais a autonomia do MP. O legislador Constituinte vai definir, no artigo 127, que o Ministério Público é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. E vai mais além, pois garante ao MP autonomia em relação aos Poderes constituídos e, aos Procuradores, autonomia em relação à chefia administrativa – no caso, o Procurador-Geral da República.

Mais adiante, a Emenda Constitucional 45/2004 vai criar o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, composto por quatorze membros, dispondo-o a partir das seguintes representações: o Procurador-Geral da República, sete membros do MP (quatro do Ministério Público da União e três dos MPs dos Estados), dois juízes indicados pelo STF e STJ, dois advogados indicados pelo Conselho Federal da OAB, e dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pelo Congresso Nacional.

O CNMP tem por competência fazer o controle administrativo e financeiro do Ministério Público, bem como da observância do cumprimento dos deveres funcionais de seus integrantes. No entanto, dados rapidamente coletados em sites de internet nos mostram que, de 2005 até agora, somente 22 Procuradores foram punidos pelo Conselho. Mais estranho ainda são os dados quanto à instauração de processos disciplinares: 90% são arquivados. E fica ainda pior, se buscarmos informações sobre o caso do Procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato, por exemplo, vamos nos deparar com mais de 40 adiamentos consecutivos do seu julgamento. Quer dizer, o Conselho Nacional do Ministério Público, com a atual composição, tem se demonstrado um órgão de controle externo ineficaz em relação à função de controlar a observância do cumprimento dos deveres funcionais dos Procuradores do MP.

Também por conta disso, o deputado federal Paulo Teixeira apresentou a PEC 5/2021, que, embora modifique tão pouco a estrutura do controle externo, foi suficiente para causar tamanha movimentação no quadro político.

A principal alteração que a Proposta traz consigo é a mudança na composição do CNMP, que deixaria de contar com quatorze membros e passaria a dispor de dezessete. Isto é, o MP passaria a ter nove membros ligados à instituição e o Congresso Nacional passaria a indicar quatro membros ao invés de dois. Sendo assim, o Ministério Público seguiria tendo mais membros indicados para o Conselho Nacional do Ministério Público do que as demais instituições.

Além disso, a PEC 5/2021 não modifica em nada a estrutura administrativa, tampouco a autonomia do Ministério Público e dos seus membros. Quer dizer, a Proposta é muito pequena se comparada à grita e, porque não dizer, à necessidade real de modificações no controle externo dessa instituição. Afinal, por mais importante que o Ministério Público seja para o regime democrático, para a ordem jurídica, etc., o Ministério Público não pode estar acima dos Poderes da República e, sobretudo, da soberania popular.

O que temos visto no último período é que agentes de um Ministério Público têm levado a instituição a se comportar como instituição persecutória dos agentes políticos a partir de um discurso moralizador da vida pública. Não raro, passamos a encontrar figuras que se denominam como “procurador por vocação, cristão, etc.”, como o exposto nos perfis de redes sociais do Procurador Deltan Dallagnol, cruzando a linha tênue entre moral pública e privada. Menos raro ainda tem sido as constantes entrevistas ou falas públicas desses Procuradores, inclusive com a utilização de recursos pitorescos, como PowerPoints, dignos de chanchadas.

Quanto aos que, como dissemos no início desse artigo, reclamavam a interferência da política no Ministério Público, o que nos cabe alertar, sem querer alongar o presente texto, é em relação ao debate acerca da “neutralidade técnica sobre a política”. Esse debate não é novo, mas é essencial. Por exemplo, é com esse discurso que Tabata Amaral se coloca contrária à PEC 5/2021 (e favorável a quaisquer medidas que possam tirar direitos do povo trabalhador), pois, segundo ela, a política não pode interferir naquilo que é técnico, portanto neutro.

Quer dizer, estes que reclamam de certa interferência da política, na realidade buscam fortalecer o discurso acerca da força do direito como algo superior à política e, por conseguinte, normatizador da vida pública, sendo que as instituições de Estado são instituições políticas. Logo, se não for a política a responsável por regular as instituições políticas, a quem caberá tal tarefa?

Por fim, é importante dizer, que debater a PEC 5/2021 é de extrema importância para o futuro do Brasil, pois ela nos impulsiona a questionar, inclusive, a força da democracia ante instituições tão poderosas, mas sem controle, como o Ministério Público.

Paulo dos Santos é Cientista Social – UFRGS, mestrando em Ciência Política – UFRGS, Pesquisador do Núcleo de Estudos em Elite, Justiça e Poder Político, militante da Democracia Socialista, Secretário de Formação do PT Sapucaia do Sul/RS e 1º Suplente de Vereador do PT Sapucaia do Sul /RS.

[ii] Demonstrei isso no meu Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Sociais/UFRGS, denominado “Em nome da moralidade pública: o Ministério Público e a legitimação do ‘combate à corrupção’ no Brasil”, defendido em 2019.

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