1) Marx e a “artilharia dos preços baixos”
Marx, certa feita, disse que o advento da indústria permitia que os países capitalistas, notadamente a Inglaterra, dominassem o mercado mundial com a “artilharia dos preços baixos”, que destruiria formas artesanais de produção.
Hobsbawn nos informa que o plano de O Capital era uma obra de cinco volumes: 1) o processo de produção do capital; 2) o processo de circulação do capital; 3) o processo global da produção capitalista; 4) o Estado e 5) o mercado mundial.
Desses, apenas o primeiro foi publicado por Marx, em vida. Os volumes 2 e 3 foram organizados por Engels a partir de manuscritos de Marx. O 4 e o 5 , se procede a informação de Hobsbawn, nunca foram sequer objeto de um esquema ou roteiro de redação.
Marx observa que seu método de análise é, no limite, a passagem do “abstrato” ao “concreto”, que, numa fórmula maravilhosa, é descrito como a “síntese de múltiplas determinações”.
O plano de O Capital segue esse percurso.No livro 1 categorias abstratas, como valor, mais valia, força de trabalho, acumulação de capital….Deriva daí que, em termos abstratos, produtos industrializados, por incorporarem menos trabalho em sua produção e pela escala que essa alcança, fazem funcionar a “artilharia dos preços baixos”, diante de produções não baseadas na indústria.
Deixemos de lado os livros 2 e 3, respectivamente dedicados a elucidar as relações entre departamentos e setores da produção capitalista, e incorporar à análise temas como o capital comercial e financeiro (o capítulo XX, no Livro 3, sobre esse último, é um primor) e a renda da terra. São passos adiante na passagem do abstrato ao concreto.
Consideremos a noção de “artilharia dos preços baixos”, que sugere uma lógica de desenvolvimento pacífica do capitalismo, que se imporia basicamente pelo dinamismo de sua produção.
Ao não refletir e pesquisar sobre o mercado mundial, Marx não se atentou para um problema: a “artilharia dos preços baixos”, com o desenvolvimento da indústria no plano abstrato é óbvia, mas, para operar no mundo real, é preciso que todos os mercados se abram e isso pode exigir a “artilharia dos canhões”. Foi o que a Índia conheceu ao ser colonizada pela Inglaterra no século XIX, e a China, com a política de portas abertas, também no século XIX, período que os chineses chamam de a “Era da Grande Vergonha”.
O liberalismo, pois, não se implantou dissociado da guerra e da violência. Na verdade, delas dependeu para firmar um núcleo de nações centrais, que buscam impor normas e arranjos geopolíticos, assentados em forte aparato militar, que permitam a operação da “artilharia dos preços baixos”.
2) Adam Smith e o “caminho natural da China”
Adam Smith entendia que o caminho chinês de desenvolvimento era o “natural”: expansão das atividades mercantis ligadas à agricultura e pequenas manufaturas a partir das vilas, alargando progressivamente seu alcance, até um ponto de saturação que induz à mudança tecnológica e à projeção externa (Arrighi desenvolve detidamente os desdobramentos das formulações de Smith sobre a China em seu magnifico “Adam Smith em Pequim”).
No século XVIII a China era o “país” mais rico do mundo (há quem diga ser mais apropriado designá-la como uma civilização, não um país). Seu “caminho natural” foi interrompido pela projeção européia, que com a “artilharia dos canhões”, acompanhada dos preços baixos, atrasou o processo interno formação da China como uma unidade econômica mais integrada e enfraqueceu-a politicamente.
Em sua trajetória posterior o caminho chinês foi tumultuado. Queda do Império e da dinastia Qing em 1911, fragmentação interna, dominação japonesa, guerra civil. Em 1949, a Revolução Comunista que, a seu modo, também obstruiu o “caminho natural”, com os arranjos típicos das economias de comando de matriz soviética, o planejamento integral rígido, as medidas voluntaristas e totalitárias, respectivamente, na esfera econômica e na condução política, mas, de todo modo, logrou manter a China como uma entidade econômica e política de porte e, de certa forma, integrada.
Desde 1978, pode-se dizer, a China, de forma bastante controversa, retomou seu “caminho natural”, adicionando a ele formas mais flexíveis de planejamento econômico, a indução estatal do desenvolvimento (via bancos públicos e agências diversas de coordenação) e um sistema político que, malgrado dimensões autoritárias evidentes, permite a construção de um “consenso estruturado”, para definição dos rumos do país, conforme a expressão do historiador estadunidense Barry Naughton.
No momento, a China está perto de ultrapassar os EUA em todos os indicadores econômicos, científicos e tecnológicos; já domina o mercado mundial, sem disparar um tiro, e caminha para firmar sua hegemonia global com o programa “um cinturão e uma rota”. Ao sul global e em direção à Europa, projeta-se um enorme pacote de investimentos em infraestrutura para, de fato, promover a integração da economia mundial.
3) Os EUA e a diplomacia dos canhões
Restam aos EUA as armas, o dólar e o domínio sobre os sistemas de transação financeira e comercial mais utilizados no planeta.
As armas os EUA podem manter, mas a vontade de poder manifesta na expansão da OTAN, que subjaz (sem justificá-la) como motivação importante da invasão da Ucrânia pela Rússia, pode fazer com que percam o dólar como moeda predominante na economia mundial e vejam emergir sistemas de transação concorrentes.
O Five Eyes, o Quad e o Aukus são a manifestação rediviva, na era da economia do conhecimento, em que a lógica da “artilharia dos preços baixos” e a hegemonia tecnológica mudaram de lado, evidenciando que o capitalismo no Ocidente não pode prescindir da artilharia dos canhões.
O propósito dos EUA com o Five Eyes, o Quad e o Aukus é encurralar a China em sua projeção externa, monitorando e, talvez, criando dificuldades para seus caminhos pelo Oceano Índico e o Atlântico Sul. Isso é certo.
A expansão da Otan mira apenas a Rússia? Ou haverá alguma relação com esforços de obstruir a construção da Nova Rota da Seda em direção à Europa? Isso é, por ora, apenas uma intuição ou, talvez, um efeito secundário do poder de intimidação da OTAN, incorporado pelos EUA em favor de seus interesses, mas não necessariamente da União Europeia e do planeta.
- Ignacio José Godinho Delgado é professor titular aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora nas áreas de História e Ciência Política.
Foto: pxhere
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