Notícias
Home / Conteúdos / Artigos / Socialismo e democracia | Jaime Pastor

Socialismo e democracia | Jaime Pastor

A democracia socialista é um belo sonho, mas para que se concretize é preciso reviver velhos debates e explicar as formas que deve tomar no século XXI.

A discussão sobre o tipo de democracia que deve ser implantada no quadro de uma sociedade em transição para o socialismo já é muito antiga, mas ainda não temos um projeto compartilhado dentro da esquerda anticapitalista. Desde que o movimento operário irrompeu na história como ator coletivo, não faltaram experiências sucessivas que prefiguraram uma alternativa à democracia liberal-capitalista, nem debates e contribuições de interesse ligados ao marxismo e ao pensamento crítico em geral.

Da Comuna de Paris à Revolução Russa

Poderíamos nos referir à Comuna de Paris como o primeiro laboratório no qual os fundadores do materialismo histórico encontraram um esboço de uma democracia alternativa à do atual Estado imperial liberal. São conhecidas as características que foram postas em prática nesses 72 dias: abolição do exército permanente; eleição por sufrágio universal (ainda que apenas para homens) de representantes, com base no mandato imperativo e na sua rotação e revogabilidade, com rendimento igual ao salário médio de um trabalhador; extensão da eleição por sufrágio universal às diferentes instituições (guarda nacional, judiciário, etc.); concentração dos poderes legislativo e executivo no Conselho Comunal, federalismo de baixo. Tudo isso como manifestação da aspiração comum a uma república democrática, social e universal. No entanto, questões como o mandato imperativo ou a não separação de poderes já eram controversas: a primeira, porque poderia impedir a deliberação, e a segunda, porque poderia implicar uma perigosa concentração de poder.

Mais tarde, as experiências da Revolução Russa —triunfante— e da Revolução Alemã —derrotada—, com o surgimento dos conselhos de operários, soldados e camponeses, delimitaram um novo quadro de debate: finalmente surgiram novas instituições alternativas às parlamentares que poderia ser a base principal do poder constituinte emergente dos novos estados pós-revolucionários. No entanto, desde o início desses mesmos processos, a relação desse novo tipo de órgãos de poder com as Assembleias Constituintes foi controversa. As críticas de Rosa Luxemburgo em A Revolução Russa [1] a Lenin e a Trotsky em relação a este último, alertando para “a confusão entre a exceção e a regra” e recomendando a necessidade de convocar novas eleições para uma Assembleia Constituinte com novo censo, bem como o respeito ao pluralismo político e as liberdades políticas básicas são bem conhecidas.

Mas menos conhecidas são as reflexões que vieram do austro-marxismo e, em particular, de Max Adler. Já em 1919, este representante da sua ala esquerda defendia um modelo híbrido entre parlamento e conselhos operários, que reconhecia como a nova forma de poder que vinha se difundindo não só na Rússia, mas também em outros países (como Hungria e Baviera e a própria Áustria), embora tenham durado pouco. Uma proposta que desenvolveu posteriormente ao distinguir entre “democracia política” —que ele critica por ocorrer no quadro de uma sociedade de classes— e “democracia social”, horizonte a se aspirar no caminho para um Estado sem classes. Esta última ideia surge complementada em 1926 com os conceitos de “soberania popular” e “socialização solidária” como fundamentos de uma educação socialista que permite avançar para uma democracia social.

Em suma, foi uma série de críticas e propostas que alimentaram intensos debates entre a social-democracia internacional e os novos partidos comunistas, mas que logo seriam frustrados com a ascensão do stalinismo na URSS. Contra isso, o modelo da Revolução Russa, baseado em uma democracia de conselhos, foi uma referência inquestionável dentro das fileiras da esquerda anti-stalinista quando se tratou de enfrentar tanto o parlamentarismo liberal quanto o despotismo burocrático estatal do chamado “socialismo real”.

No contexto internacional dos anos 1970, sob o efeito do 1968 global, iniciou-se uma nova fase na busca de um projeto socialista radicalmente democrático.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, é necessário mencionar o processo vivido na Iugoslávia após sua ruptura com a URSS: a constitucionalização da autogestão, em 1950, e os sucessivos julgamentos de diferentes câmaras de representação atuando de forma colegiada (apesar de constrangidos pelo sistema burocrático de partido único e a convivência crescente e tensa com setores ligados ao mercado) apontavam para novas fórmulas, seguidas com interesse pela nova esquerda ocidental. A posterior decomposição daquele país de países, porém, logo levou ao esquecimento do que era um verdadeiro foco de atração e de lições ainda úteis para futuros projetos de socialismo democrático e autogestionário.

Em busca de uma nova institucionalidade democrática

Foi no contexto internacional dos anos 1970, sob o efeito do 1968 global —no qual convergiram lutas antiimperialistas, anticapitalistas e antiburocráticas— que se iniciou uma nova fase na busca de um projeto socialista radicalmente democrático, com diferentes contribuições no campo do marxismo ocidental. As reflexões de Nicos Poulantzas, Ralph Miliband e Ernest Mandel, cada um em seu contexto, buscaram recuperar algumas das questões polêmicas do já mencionado debate entre Rosa Luxemburgo, por um lado, e Lenin e Trotsky, por outro.

Seguindo sua crítica ao crescente “estatismo autoritário” capitalista, Poulantzas colocou a questão com bastante clareza no capítulo final de Estado, poder e socialismo, seu último trabalho publicado em 1978:

“Como empreender uma transformação radical do Estado articulando a expansão e o aprofundamento das instituições da democracia representativa e das liberdades (que também foram conquista das classes populares) com a implantação de formas de democracia direta na base e o enxame da democracia? focos autogeridos: eis o problema essencial de um caminho democrático para o socialismo e de um socialismo democrático (Poulantzas, 1979: 313).”

Um problema que já havia abordado em trabalhos anteriores e que não resolveu neste capítulo, pois se concentrou principalmente na busca de uma estratégia de transformação radical do aparelho de Estado no quadro de uma transição para um socialismo democrático baseado precisamente nessa combinação de instituições de democracia representativa com novos órgãos de poder em nível territorial e na fábricas. Sua morte no ano seguinte não permitiu que ele continuasse sua pesquisa sobre esta questão e outras relacionadas.

Miliband abordou esse problema em vários trabalhos (em diálogo com Poulantzas, entre outros), mas talvez seja em sua última etapa, no artigo “Reflexões sobre a crise dos regimes comunistas” e em O socialismo para uma época de ceticismo onde podemos encontrar uma maior sistematização de suas propostas.

Na primeira, após um balanço crítico do que definiu como «regimes coletivistas oligárquicos» do extinto bloco oriental, enfatizou a necessidade de um projeto socialista estabelecer diferentes «controles de poder», tanto dentro do Estado como fora: este supõe, sustenta, «um sistema de “duplo poder” em que o poder estatal e o poder popular se complementam, mas também se controlam». A isso ele acrescentou o que definiu como o “princípio humano” do socialismo: a capacidade de “convencer a maioria das pessoas de que ele representa não apenas uma maioria material e um uso mais racional dos recursos do que o capitalismo é capaz de fazer, mas também representa um governo mais humano» (Miliband, 1993: 36-38).

Em seu último trabalho especifica mais suas teses anteriores, defendendo que a centralidade do projeto democrático deve estar em uma nova constituição que estabeleça o desenho de um processo de transição para o socialismo: «O constitucionalismo tem sido muitas vezes um baluarte contra a intrusão democrática nos interesses de classe inamovíveis, mas também é crucial para a proteção dos direitos básicos». Uma constituição que, segundo Miliband, deveria incorporar a separação de poderes, mas ao mesmo tempo limitar o alcance das decisões do judiciário para que não se eleve acima do parlamento (uma questão que foi e continua a ser central no processos de mudança experimentados em muitos países). No que diz respeito à arquitetura institucional democrática, apost em combinar democracia participativa com democracia representativa e territorial, desejavelmente no âmbito federal.

No entanto, Miliband não esquece uma premissa fundamental de todas as anteriores: a condição de possibilidade para uma democracia socialista «depende totalmente de uma crescente socialização da economia», ou seja, da «redução drástica das desigualdades que caracterizam as sociedades capitalistas”. Desigualdades que, juntas com as de classe, as derivadas do patriarcado e do racismo, bem como a crise ecológica, já haviam sido analisadas criticamente em trabalhos anteriores.

Os escritos de Ernest Mandel, por sua vez, que debatem com Poulantzas e Miliband mas também com Norberto Bobbio, traçam uma evolução interessante, que atingirá a maturidade em Poder e dinheiro, sua última grande obra, publicada originalmente em 1992. Se em seus artigos em polémica com o eurocomunismo, são evidentes as divergências que mantém no que diz respeito à caracterização do Estado e à estratégia a desenvolver para alcançar o socialismo, não por isso rejeita a hipótese de que no marco de uma democracia socialista poderá haver uma combinação de democracia representativa e democracia direta:

“Sobre a necessidade ou não de uma assembléia eleita por sufrágio universal ao lado de um congresso de conselhos operários no quadro de uma democracia socialista, poderíamos discutir uns com os outros sem esquentar muito, uma vez que o poder econômico e o poder do Estado burguês. Esta é apenas uma questão tática, não uma posição de princípio (1977: 295).”

Em Poder e dinheiro ele dá novos passos em suas reflexões por meio de uma contribuição mais sistemática no último capítulo, inserindo-a na tendência de “autogestão, abundância e extinção da burocracia”. Para tanto, defende a necessidade de precondições políticas: o crescimento de uma democracia política (plural e integral, multipartidária e respeitadora das liberdades políticas), a necessidade de complementar as formas representativas —indiretas— com uma ampla gama de expressões diretas da democracia , ou o uso em larga escala do referendo, caminhando para um sistema «onde os direitos de um órgão de tipo parlamentar são limitados pelos direitos de outras câmaras (nacionalidades, mulheres, produtores, etc.)» (Mandel, 1994: 285 -288).

Apesar das diferenças estratégicas existentes, esses pensadores concordam com o compromisso com uma democracia mista, capaz de refletir a pluralidade em todas as esferas da nova sociedade em construção.

Juntamente com essas précondições políticas, Mandel argumenta que deve haver condições sociais para realizá-las: principalmente “uma redução severa da jornada diária (ou semanal) de trabalho”, pois “não pode haver um progresso qualitativo real em direção à autogestão a menos que as pessoas tenham o tempo necessário para gerir os assuntos do seu local de trabalho ou no seu bairro […] sem contar o “segundo jornada” das mulheres em casa» (1994: 288-289). Uma medida que deve ser acompanhada do mais amplo acesso à informação e de uma política educacional capaz de elevar o nível mínimo de cultura geral e capacidade profissional.

Tanto as condições políticas como as sociais teriam de andar de mãos dadas com as económicas que, segundo Mandel, deveriam basear-se numa correcta definição de “abundância”, entendida como “saturação da demanda”, mas tendo em conta “os perigos que ameaçam os recursos não renováveis da terra e do ambiente natural» (1994: 296). Todas essas condições devem ser acompanhadas pela “socialização (apropriação social) de grande parte do produto social excedente, justificada tanto por razões de justiça social quanto de eficiência econômica” (1994: 308).

Em suma, apesar das diferenças estratégicas existentes entre esses pensadores, sua concordância pode ser reconhecida no compromisso com uma democracia mista, capaz de refletir a pluralidade em todas as esferas da nova sociedade em construção e não se restringir a um modelo conselherista baseado exclusivamente nos locais de trabalho. Da mesma forma, eles também compartilham a firme reivindicação das liberdades políticas, dos direitos fundamentais e da necessidade de um garantismo jurídico que possa deter qualquer tendência autoritária.

Paralelamente, a partir sobretudo dos anos 90 do século passado, surgiram novas experiências de autogoverno que ainda hoje estão vivas. Os Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ) em Chiapas e o confederalismo curdo são exemplos disso. Ambos, com suas respectivas tradições comunitárias, se conectam com o fio vermelho da Comuna de Paris e vão além: representam práticas democráticas que buscam superar o paradigma nacional-estatista e demoliberal a partir de uma perspectiva anticolonial, multinacional, ecossocial e feminista. Poderíamos referir-nos também ao caso da Democracia Participativa Local e Descentralizada no Estado de Kerala ou a outros —limitados à escala municipal e mais constrangidos pelo contexto neoliberal— como o que tomou como referência os Orçamentos Participativos do Porto Alegre (Brasil), muito popularizada no âmbito do movimento antiglobalização e dos Fóruns Sociais Mundiais.

Por fim, é preciso mencionar as ondas de mobilização popular que em alguns países latino-americanos (como o “ciclo rebelde” de 2000 a 2005 na Bolívia) criaram as condições para a abertura de processos constituintes participativos e inovadores de reconhecimento de direitos.

Que democracia socialista?

Com base nesses e em outros debates que não conseguimos incluir neste breve panorama, acredito que algumas premissas de partida podem ser deduzidas ao abordar um projeto de democracia socialista. Entre elas, a necessidade de superar velhas falsas dicotomias (entre economia e ecologia, entre ambas e a política, entre produção e reprodução, entre Norte e Sul, entre privado e público, entre cidadãos e estrangeiros…) com o fim de alcançar uma democratização radical de todas essas esferas. Da mesma forma, a centralidade estratégica que as estruturas de contra-poder popular devem alcançar em qualquer processo revolucionário, mas, por sua vez, a necessidade de combiná-las com formas institucionais de democracia representativa, libertando-as das constrições de todo tipo existentes no capitalismo, como a melhor forma de expressar a vontade geral dos novos demos em toda a sua pluralidade e diversidade.

Por tudo isso, devemos partir da convicção de que as condições para a possibilidade de uma democracia socialista exigem a realização de um processo prévio de ruptura com o capitalismo, liderado por um novo poder constituinte soberano disposto a proceder ao desmantelamento, desburocratização e desmilitarização do Estado e a fazer incursões na propriedade privada de setores-chave da economia. Dessa forma, será possível caminhar para a socialização dos bens públicos e comuns e a distribuição dos trabalhos e dos tempos , por meio do planejamento democrático da transformação do sistema produtivo e da generalização da autogestão baseada em conselhos econômicos e sociais eleitos desde o nível de negócios até as escalas mais altas. Tais tarefas, além disso, exigem uma revolução político-cultural comprometida com um ecossocialismo feminista, anticolonial, antirracista, que supere todas as formas de exploração, dominação ou despotismo.

As condições para a possibilidade de uma democracia socialista exigem um processo prévio de ruptura com o capitalismo liderado por um novo poder constituinte soberano disposto a proceder ao desmantelamento, desburocratização e desmilitarização do Estado.

Todo esse processo deve ser acompanhado pelo pleno desenvolvimento das liberdades políticas e dos direitos fundamentais baseados em uma concepção republicana anti-oligárquica, antipatriarcal e laica da cidadania, de modo a promover processos deliberativos e participativos que combinem ações diretas e comunitárias (auto-organização, assembléias, comunitarismo), semidiretas (referendo, iniciativas legislativas populares…), indiretas ou representativas —ou melhor, delegadas— (com rodízio e revogabilidade, salário igual à média de um trabalhador…) e formas paritárias em suas diferentes escalas e âmbitos (territorial, multinacional e pluricultural, econômicas, políticas, de gênero…). Que inclua mecanismos de escolha por sorteio para determinadas iniciativas ou instituições deliberativas e que articule, em suma, uma distribuição aberta de poderes e legitimidade no quadro de uma poliarquia institucional, social e transversal distante dos modelos presidencialistas e plebiscitários e capaz de alcançar consensos e/ou maiorias simultâneas, mas ao mesmo tempo respeitar o direito de discordar.

Um Estado em transição para o socialismo, em conclusão, deve ser um Estado de direito, baseado em garantias jurídicas e pluralismo que reflita as conquistas democráticas conquistadas ao longo da história dentro de um equilíbrio entre os diferentes poderes, todos eles sujeitos a formas de eleição, controle e revogabilidade por parte da cidadania.

Por último, mas não menos importante, tudo isso não deve nos fazer esquecer que qualquer projeto de democracia socialista que não se expanda internacionalmente estará sujeito a ameaças externas e internas que colocarão conflitos e dilemas difíceis de serem resolvidos pelo novo bloco histórico hegemonizado pelas classes até então subalternas. Saber assumi-los e superá-los de forma a evitar uma involução autoritária do processo será, sem dúvida, um desafio fundamental e incontornável.

Referências

Mandel, Ernest (1977) “Le PCF, l’eurocommunisme et l’État”, em E. Mandel, Critique de l’eurocommunisme, Paris: Maspéro.

——————(1994) Poder e dinheiro. Madri: século XXI.

Miliband, Ralph (1993) “Reflexões sobre a crise dos regimes comunistas”, em Robin Blackburn (ed.), Após a queda. Barcelona: Crítica.

——————(1994) O socialismo para uma época de ceticismo. Madrid: Fundação Sistema.

Poulantzas, Nicos (1979) Estado, poder e socialismo. Madri: século XXI.

Samary, Catherine (2010) “A autogestão yugoslava. Por uma apropriação plural dos balanços. Contra um enterro programado”, Viento Sur, 12/05

Notas

[1] Texto escrito na prisão em 1918 e publicado postumamente por Paul Levi em 1922. Citemos, por exemplo, este parágrafo: «Lênin e Trotsky substituíram as instituições representativas, decorrentes do sufrágio popular universal, pelos sovietes, como a única representação genuína das massas trabalhadoras. Mas como a vida política em todo o país está sufocada, a vida nos sovietes também deve parar. Sem sufrágio universal, liberdade ilimitada de imprensa e reunião, e sem livre contraste de opiniões, a vida de todas as instituições públicas se extingue, torna-se uma vida aparente, na qual a burocracia permanece como o único elemento ativo.

  • Jaime Pastor é Politólogo e editor da revista Viento Sur

Publicação original: Jacobin América Latina

Imagem: Pinterest

Veja também

Trabalhadoras domésticas, a maior categoria de trabalho do país | Rosane Silva

A presença das mulheres no emprego doméstico tem raízes na divisão sexual do trabalho, que …

Comente com o Facebook