No último domingo de março, realizou-se no Uruguai a consulta cidadã – referendo – sobre os 135 artigos da Lei de Consideração Urgente (LUC), sobre os 476 que haviam sido aprovados em um tratamento de “baixa qualidade democrática” (tramitação no parlamento em 45 dias). Sem consulta à cidadania nem aos movimentos organizados e nem mesmo ao parlamento. O SIM que expressou a anulação dos artigos mais questionados pelo movimento popular não atingiu 50% + 1 dos votos válidos e não conseguiu anulá-los. E o governo não atingiu 50% dos votos, só conseguindo a vitória quando soma os votos em branco .
O resultado tem mais de uma leitura. A primeira é que os artigos sobre os mais variados temas que foram questionados pelo movimento popular e pela Frente Ampla continuarão em vigor. Com isso o governo tentará formalmente contornar sua escassa diferença, continuar a aplicá-los e tentar avançar com outros projetos como a Lei da Mídia, Desmonopolização dos Combustíveis e Reforma da Previdência – três projetos que estão na estratégia imediata do governo de coalizão presidido por Lacalle Pou.
No entanto, a pequena diferença – um ponto percentual – significou um forte golpe para o governo, que embora mantenha as leis legitimadas, está politicamente enfraquecido, especialmente porque nas semanas anteriores as diferenças nas pesquisas ficaram em torno de 10% e termina apenas em 1%.
Devemos considerar que além das diferenças quanto aos recursos disponíveis para a campanha, o governo violou as regras em mais de uma ocasião. Seu jornal oficioso “El Pais” fez um editorial pró NÃO no meio da campanha e o presidente fez uma intervenção de mais de 5 minutos e no dia seguinte, mais uma conferência de imprensa de meia hora por Lacalle Pou.
As diferenças tão exíguas nas votações, semelhantes às do 2º turno da eleição nacional, mas ainda mais insignificantes, dão a esses três anos que faltam para as próximas eleições, caráter de disputa permanente, se a FA quiser recuperar o governo. Para isso, deve fortalecer a unidade com o movimento popular, construir o partido Frente Ampla para que atue como tal, sem esperar o que seus parlamentares definam, refletir sobre seus erros estampados nos documentos do Congresso e fazer pesar esse resultado eleitoral. Resultado que não alcançou os votos necessários, mas atingiu um patamar de empate com todos os aliados da coligação governamental, as Câmaras Patronais (definidas explicitamente pelo NÃO), os grandes meios de comunicação e todo o aparelho do Estado.
Para o governo é uma vitória de “Pirro”. Institucionalmente conseguiu manter as normas, mas nunca esperava não ultrapassar 50% e que o SI estivesse tão próximo. Com os problemas econômicos e sociais que afetam o país não será fácil para o governo a aprovação das leis que faltam em seu plano. Cada medida antipopular tomada (aumento dos preços dos combustíveis, e dos preços em geral, modificação nos direitos e reformas nas aposentadorias e pensões futuras), significará, se o movimento popular conseguir organizar uma forte oposição, uma diminuição do apoio ao governo e seu programa.
Uma coisa é governar com o mandato protegido pela pandemia e suas consequências, enfrentar os primeiros espasmos dos aumentos internacionais de preços, e nesse quadro confrontar ideologicamente sua visão liberal da economia, com a suposta visão estatizadora do progressismo, e outra é na pós pandemia manter baixos os salários já contratados, manter a informalidade do trabalho, manter a cesta de alimentos alta, aumentar os preços dos combustíveis mantendo grandes lucros dos exportadores e grandes empresários, após receber uma rejeição de quase 50% da população.
O apelo ao diálogo – com os votos na mesa — dos dirigentes da FA, se não for acompanhado de um enfrentamento constante com as medidas que o governo tenta impor, facilitará a tarefa do governo de coalizão. Se a FA não conseguir demonstrar que este “governo concentra riqueza em poucas mãos e distribui pobreza em muitas bocas”, permitirá que a disputa pela hegemonia social se mantenha em termos ideológicos: “liberdade” versus “estatismo”.
Como diz a declaração da Mesa Política da FA na segunda-feira após a votação; “Seguiremos trabalhando incansavelmente para construir um modelo alternativo ao atual que favorece a minoria em detrimento das grandes maiorias.”
Ou precisando mais: “A FA tem agora em suas mãos canalizar o descontentamento com a política de ajuste que a coalizão do governo realizou. O aumento da pobreza, o desemprego, a fome, são elementos que, somados à arrogância do governo, clamavam por uma rebelião que começou com aquelas 800.000 assinaturas e se expressou em milhares (quase um milhão e cem) de votos nas urnas”* , no passado 27 de março.
* Declaração da Executiva do Espaço 1968
- Gustavo Vazquez Quartino é militante da Frente Ampla – Espacio 1968 – Partido Socialista dos Trabalhadores.
Foto: Prensa Latina
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