“É como se nos dissessem: vocês negros têm o direito de lutar pela sua liberdade, pela sua vida, desde que seja do jeito e da forma que nós consideramos justa e correta. Só que esse ‘nós’ parte deles que têm o privilégio de manter a sociedade racista e desigual”, aponta Renato Freitas.
No último dia 05, a desembargadora Maria Aparecida Blanco de Lima, do Tribunal de Justiça do Paraná, determinou o cancelamento dos efeitos das sessões plenárias da Câmara Municipal de Curitiba, realizadas nos dias 21 e 22 de junho. Na ocasião, a maioria dos vereadores aprovaram, em 1º e 2º turno, a cassação do mandato do vereador petista Renato Freitas, o que resultaria, ainda, na perda dos direitos políticos por oito anos. A desembargadora atendeu pedido da defesa de Renato, reconhecendo que o Legislativo Municipal não cumpriu os prazos legais para marcar as sessões que votaram o processo de cassação, o que torna nulo seus resultados.
Esta não foi a primeira vez que a maioria conservadora da Câmara Municipal tentou cassar o mandato de Renato Freitas, jovem e negro. Em entrevista ao programa 20 Minutos com Breno Altman, o vereador relatou que já havia passado por duas tentativas anteriores. A primeira, no início da pandemia, por ter denunciado o “charlatanismo” da bancada evangélica que levou, à tribuna do Legislativo, um médico para propagandear a eficácia da ivermectina contra a Covid-19. “O próprio laboratório que produz o remédio lançou comunicado ao mercado dizendo que era fake news”, lembrou o vereador.
A segunda ameaça ao seu mandato foi por conta da sua participação no protesto realizado em frente ao Carrefour da cidade, em denúncia ao racismo que vitimou Beto Freitas num supermercado da rede em Porto Alegre, no dia 19 de novembro de 2020. O trabalhador autônomo foi espancado até a morte por dois seguranças da empresa. “Na ocasião, escrevemos com spray, no muro do supermercado a frase de Martin Luther King – A injustiça em um lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar – e isto foi suficiente para me rotularem como vereador pixador e vândalo”. Na ocasião, a tentativa de cassação não prosperou e Renato teve sua primeira vitória contra o racismo.
Em 25 de fevereiro deste ano, Renato Freitas participou de protesto organizado pelo Coletivo Núcleo Periférico em repúdio ao assassinato do congolês Moïse Kabagambe e de Durval Teófilo Filho. Os manifestantes entraram na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que possui uma relação histórica com a população negra da cidade. A presença no protesto foi o motivo encontrado pela direita conservadora do parlamento para abertura de novo processo de cassação do mandato de Renato Freitas, sob alegação de falta de decoro, apenas dois dias depois do ato.
Nem o pedido formal de desculpas apresentado por Renato Freitas na sessão plenária do dia 9 de fevereiro, nem o documento da Arquidiocese de Curitiba, encaminhado ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara no dia 28 de março, sugerindo que não houvesse a cassação, foram suficientes para demover a sanha daqueles que não toleram conviver com os diferentes. No dia 22 de junho, com 25 votos favoráveis e 5 contrários, os vereadores aprovaram projeto de resolução que determinou a perda do mandato de Renato.
No entanto, o atropelo do Regimento Interno da Câmara Municipal e à legislação permitiu a anulação da decisão pelo Judiciário. Apesar de ter garantido o seu mandato nesta segunda vitória contra o racismo, o jovem vereador não terá tréguas da maioria conservadora. Uma nova sessão especial já foi anunciada pela Mesa Diretora da Câmara Municipal para votar em agosto o projeto de resolução de cassação do mandato de Freitas.
Para o vereador, essa perseguição ferrenha que vem sofrendo no Legislativo faz parte da “sanha punitivista” de uma elite branca e conservadora que predomina no Parlamento. Na entrevista a Breno Altman, o jovem desabafou: “Ninguém quer saber do conteúdo dos protestos, do motivo pelo qual as pessoas estão protestando, só querem saber da forma”. Para ele, a contestação das formas de manifestação é uma tentativa de tirar a legitimidade do conteúdo do protesto. “É uma prepotência da elite branca achar que é ela que tem poder de conferir legitimidade às lutas da população negra”, comentou.
A tendência interna do Partido dos Trabalhadores Democracia Socialista lançou nota pública no final de junho em defesa de justiça ao vereador, com a chamada “Mandatos negros importam”. A nota destaca que “para parlamentos marcadamente racistas, não basta um sistema eleitoral que dificulta a eleição de representantes negros, é preciso expurgar do legislativo os poucos que conseguem superar as barreiras econômicas e os preconceitos. A intolerância que impera – sob o incentivo de Jair Bolsonaro – não suporta as vozes que se erguem na defesa dos pobres e do povo negro.”
É o que Renato tem constatado na sua luta de cada dia contra o racismo institucional. “É como se nos dissessem: vocês negros têm o direito de lutar pela sua liberdade, pela sua vida, desde que seja do jeito e da forma que nós consideramos justa e correta. Só que esse ‘nós’ parte deles que têm o privilégio de manter a sociedade racista e desigual”, aponta Freitas.
Eliane Silveira é jornalista e coordenadora de comunicação na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
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