Notícias
Home / Cultura / Sentimento do mundo | Afrânio Catani

Sentimento do mundo | Afrânio Catani

Comentário sobre o livro de Carlos Drummond de Andrade.

Imagem: Dóra Maurer

 

Quem passar os olhos por estas linhas certamente irá se recordar que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua obra já foram objeto de exaustivas exegeses por parte de literatos, historiadores, sociólogos, psicólogos… E, também, deverá se perguntar: o que é que Afrânio Catani pode acrescentar a tudo isso? Não tiro a razão dos leitores, mas argumento em minha defesa que sempre é possível escrever algo sobre Drummond que chame a atenção para algum aspecto que, mesmo reiterativo, possa se constituir em um incentivo à leitura de sua poesia.

Sentimento do mundo, publicado originalmente em 1940 com tiragem de apenas 150 exemplares, que foram distribuídos entre amigos e escritores, foi o terceiro livro de Drummond, no momento em que o poeta mineiro estava com 37-38 anos, tinha se transferido há seis anos para o Rio de Janeiro, havia sido auxiliar e, depois, oficial de gabinete (1930) de Gustavo Capanema em seu estado natal, fora nomeado chefe de gabinete do mesmo Capanema (1934) no Ministério da Educação e Saúde Pública, além de responder pelo expediente da Diretoria-Geral de Educação e de ser membro da Comissão de Eficiência do Ministério (1935). Passou todo o regime ditatorial getulista do Estado Novo (1937-1945) na chefia de gabinete de Gustavo Capanema.

Antes de Sentimento do mundo, ele publicou Alguma poesia (1930) e Brejo de Almas (1934), escreveu para o Diário de Minas e para revistas, foi auxiliar na redação da Revista do Ensino (da Secretaria de Educação), trabalhou no Minas Gerais (órgão oficial do Estado) como auxiliar de redação e redator, foi redator de A Tribuna, do Diário da Tarde e colaborador na Revista Acadêmica.

Pode-se ler numa espécie de Posfácio dessa edição, não assinado, que Carlos Drummond de Andrade escrevia pequenos contos e crônicas para muitas dessas publicações, que o tornaram ainda mais conhecido entre aqueles leitores menos versados na poesia. Sentimento…, por sua vez, reúne 28 de seus poemas, sendo que vários deles se transformaram em verdadeiros clássicos, amplamente conhecidos e citados constantemente. Esse conjunto de versos “cristaliza algumas qualidades dos livros anteriores e as projeta para o seu livro seguinte, A rosa do povo (1945), uma das obras decisivas da literatura brasileira.

O forte poder de observação da realidade e dos acontecimentos, tão importantes nesse livro gestado durante a Segunda Guerra Mundial, figurava já em Sentimento do mundo. Nada mais natural: ajustando sua lente para captar os acontecimentos de sua época – o Estado Novo de Getúlio Vargas, a ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, o declínio da vida rural e a intensa urbanização do Rio de janeiro e de outras cidades brasileiras –, o poeta conseguiu capturar o espírito de um tempo convulsionado pela política e pelas radicais transformações de um período histórico que ajudou a moldar o mundo que conhecemos hoje” (p. 75).

Em Sentimento…se mesclam humanismo, visão de mundo pouco otimista, um tom desesperançado e corrosivo, as tensões da cidade moderna, os acontecimentos políticos da época, grandes doses de lirismo, crítica ao egoísmo, homenagem aos 50 anos de seu amigo – o poeta Manuel Bandeira.

“Tenho apenas duas mãos/e o sentimento do mundo/ (…) Os camaradas não disseram/que havia uma guerra/e era necessário/trazer fogo e alimento/(…) esse amanhecer/mais noite que a noite” (“Sentimento do mundo”) – esse é o poema inicial, em tom político explícito, assim como ocorre em “Os ombros suportam o mundo” (“Chegou um tempo em que não adianta morrer/Chegou um tempo em que a vida é uma ordem/A vida apenas, sem mistificação”), em “Congresso Internacional do Medo”, em “Elegia 1938” (“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,/onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo./Praticas laboriosamente os gestos universais,/sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual./(…) Aceitar a chuva, a guerra, o desemprego e injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”).

“Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!” (“Lembrança do mundo antigo”) e “E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando” (“Menino chorando na noite”) são momentos líricos comoventes, ao lado da conhecidíssima e não menos enternecedora “Confidência do itabirano” (“Tive ouro, tive gado, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”).

O ritmo alucinante do Rio de Janeiro dos anos 1930 envolve por completo o poeta, resultando em “Morro da Babilônia” (em que se integram terror, fascínio, vozes e até “um cavaquinho bem afinado”), “Indecisão do Méier”, “Noturno à janela do apartamento”, “Privilégio do mar” (“Neste terraço mediocremente confortável,/bebemos cerveja e olhamos o mar/sabemos que nada nos acontecerá”), “Inocentes do Leblon”(“Os inocentes do Leblon/não viram o navio entrar./Trouxe bailarinas?/trouxe emigrantes ?/trouxe um grama de rádio ?/Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,/mas a areia é quente, e há um óleo suave/que eles passam nas costas, e esquecem.”).

Depois de Sentimento do mundo o poeta colabora em várias outras revistas e em jornais distintos, faz traduções, trabalha na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), torna-se chefe da Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamentos, participa em diversos programas de rádio, publica dezenas de livros de poemas, vê sua obra se consagrar em antologias editadas no Brasil e no exterior, aposenta-se em 1962, após 35 anos de serviço público, recebe muitos prêmios, recusa alguns e, em 1984, encerra sua carreira de cronista regular após 64 anos dedicados ao jornalismo.

O coração do poeta já se encontrava enfraquecido. Em 5 de agosto de 1987 morreu sua filha, Maria Julieta Drummond de Andrade (1928-1987), escritora, professora, tradutora, vítima de câncer. Carlos e Maria Julieta eram muito próximos. Doze dias depois, em 17 de agosto, ele sofreu um infarto fatal.

Afrânio Catani é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da USP e, atualmente, professor sênior na mesma instituição. Professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.

Via A terra é redonda

Veja também

De onde eles vêm, comentário sobre o livro de Jefferson Tenório | Luiz Marques

A mais recente obra de Jefferson Tenório, De onde eles vêm, publicada pela Companhia das …

Comente com o Facebook