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Construir uma agenda climática latino-americana | Marília Closs

Se não queremos que o clima continue sendo pautado pelos interesses dos países do Norte Global, devemos aproveitar o novo ciclo de governos de esquerda na América Latina para articular uma agenda climática independente. A tarefa é conectar justiça e ecologia para impulsionar uma integração soberana, solidária e sustentável.

Marcha para o Clima – Foto: Nuno Cruz/NurPhoto via Getty Images.

Em 19 de junho de 2022, logo após ser eleito presidente da Colômbia, em seu discurso de vitória, Gustavo Petro afirmou que seu governo seria baseado em três pilares: paz, justiça social e justiça climática. Petro não apenas foi eleito com um programa político que promete a transição energética e a descarbonização da economia, mas tendo junto de si a vice-presidenta Francia Marquez, ativista negra e militante anti-extrativismo. Petro e Marquez chegam ao poder carregados pela onda dos estallidos sociales de 2019 e 2021 que, nas ruas, nas praças e nos bairros, reivindicavam um modelo econômico e social menos predatório com a natureza e mais justo socialmente. Na Assembleia Geral das Nações Unidas e na COP27, com seu decálogo, Petro reforçou que a Colômbia “potencia mundial de la vida” que quer construir está estruturalmente ligada a um projeto climático e ambiental.

Em 30 de outubro de 2022, logo após ser eleito presidente do Brasil, Lula dedicou boa parte de seu discurso da vitória a questões climáticas e ambientais. Prometeu lutar pelo desmatamento zero na Amazônia, enfatizou que seu governo irá reassumir os compromissos ligados à proteção dos biomas, criticou a extração ilegal de madeira, o garimpo ilegal e ocupação agropecuária indevida e defendeu medidas ligadas ao combate à violência contra populações indígenas. Poucos dias depois, durante a COP27, em Sharm el Sheikh, no Egito, em seu discurso oficial reafirmou os compromissos e falou que, no mundo todo, a agenda climática só vai avançar se os países ricos cumprirem seus acordos, inclusive em termos de repasses financeiros. Afinal, como notou Lula, a crise climática é sentida principalmente pelos países pobres, mas foi criada pelos países ricos.

Estes foram dois dos momentos mais importantes para a agenda climática da América Latina nas últimas décadas. Os presidentes eleitos pelas duas maiores populações sul-americanas se comprometeram em colocar políticas climáticas e ambientais como prioridades em seus governos. Mas foi mais que isto: Lula deu centralidade ao combate ao desmatamento, relacionou este a outras questões de justiça social e enfatizou a importância da reforma do sistema financeiro e de governança climática internacional, em uma posição que claramente reivindica recursos para os países do sul global. Petro não falou apenas de clima: falou também de justiça.

A justiça climática tornou-se o conceito central para a construção de uma agenda latino-americana.

Fim de ciclo: a integração latino-americana que já tivemos

A América Latina já sente os impactos da crise climática. Por aqui, assim como em todo sul global, pessoas morrem ou perdem suas condições de vida digna por inundações, secas, avanço do nível do mar, ou para desastres como deslizamentos de terra. Os eventos climáticos extremos se agravam e se tornam mais frequentes. No Brasil, por exemplo, somente em 2018 mais de um milhão de pessoas foram afetadas por enchentes, quase 43 milhões foram atingidas por secas e estiagem. Mais de 85 mil pessoas foram deslocadas internamente em função de desastres ambientais e climáticos. Como sempre e em todo lugar, são os trabalhadores pobres e as populações mais vulnerabilizadas que sofrem de forma desproporcional com a crise climática. Clima é questão de subsistência e de sobrevivência. Sempre foi questão de classe, de gênero e de raça.

Em um espaço marcado estruturalmente pela desigualdade como a América Latina, o cenário que se impõe é o de populações periféricas, sobretudo negras e indígenas, atravessadas pela insegurança em suas formas básicas de subsistência em função das emergências climáticas. Isto se acentuou com o cenário atual de crise econômica e de acirramento no conflito capital x trabalho – ou capital x vida, como costumamos falar nos movimentos feministas populares.

Desde 2015, o que se vê na região é o esgotamento do ciclo de desenvolvimento e inclusão social por meio do extrativismo tradicional. Parte disto se dá pelas dinâmicas e instabilidade nos preços das commodities, e seus impactos em economias dependentes da exportação destes produtos. No entanto, o esgotamento desse ciclo também se dá com a consolidação de novos programas políticos, nas ruas e nas urnas, que afirmam que uma relação exclusivamente predatória e extrativa com a natureza é insuficiente.

Ainda que existam alternativas sendo construídas localmente nos territórios, e que programas políticos alternativos estejam chegando ao poder, o cenário regional ainda é de desmonte da integração regional latino-americana. Nos últimos sete anos, a arquitetura institucional regional de cooperação na América Latina foi profundamente enfraquecida. O Mercosul, organismo central para a integração econômica e política do Cone Sul, foi sendo gradualmente flexibilizado e perdendo sua identidade. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul) foi esvaziada com a saída de sucessivos países e, consequentemente, descaracterizada – o que, na prática, desmontou a integração sul-americana.

Chegou ao fim – ou ao menos a um hiato – o momento político em que a cooperação e a construção regional eram prioridades nas políticas externas dos países latino-americanos. Parte disto se deve às crises econômicas e políticas, mas sobretudo à interrupção do ciclo político de vitórias eleitorais de governos de esquerda e centro-esquerda na região, popularmente conhecido como “onda rosa”. A eleição de Mauricio Macri na Argentina em 2015 é provavelmente o momento chave para compreensão de que a onda rosa estava chegando ao fim. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 trouxe à tona que, mais que desestruturação dos governos à esquerda, estávamos lidando também com a radicalização da direita.

A longa crise na Venezuela mostrou que o sistema interamericano tampouco sustentou ou garantiu o grau de diálogo para uma saída do conflito. Pelo contrário: a Organização dos Estados Americanos (OEA) mostrou-se não apenas pouco útil para a solução da crise mais complicada do hemisfério, como também tem sido um problema para a situação institucional neste e em outros países, como a Bolívia, portando-se como porta-voz de grupos e partidos à direita no continente. Ao mesmo tempo, as organizações e coalizões regionais construídas pelos governos à direita nos últimos anos tampouco tiveram resultados: o Grupo de Lima foi incapaz de oferecer respostas à crise venezuelana. O Prosul, na prática, não foi mais que uma sigla e provavelmente sua morte foi declarada com o anúncio de que o Chile, país sede, iria se retirar do movimento. Por isso, nas palavras de Hirst, Tokatlián e outros autores, há uma dupla crise: do regionalismo latino-americano e do multilateralismo interamericano, que se materializa em um misto de estagnação, fragilidade e decadência nas principais organizações regionais.

A região enfrenta também uma série de desafios geopolíticos. A América Latina possui recursos naturais estratégicos de importância crescente para a transição tecnológica e energética, com destaque para o lítio, já que estão em nosso território mais de 70% das reservas mundiais. Em função da Guerra da Ucrânia, combustíveis fósseis, como petróleo e gás, voltaram a ser objeto de disputa mais intensa, revertendo o cenário de desfinanciamento. Ou seja, na América Latina há uma quantidade significativa de recursos que são objeto de disputa global. No entanto, frente ao desmonte da arquitetura regional de cooperação e diálogo, não há coordenação multilateral para a construção de regulamentações e instrumentos para garantir a soberania, o que, em diversas medidas, enfraquece as condições de barganha e dos países latino-americanos frente às grandes potências. Em um momento de acirramento de disputa econômica, política e militar sobre territórios periféricos ou semi-periféricos isso se mostra dolorosamente grave.

Ainda no âmbito geopolítico, é possível visualizar a complexificação do crime organizado transnacional na América Latina, que por sua vez tem ampla conexão com a agenda ambiental. Crimes ambientais ligados a queimadas e invasões de terra e garimpo e extração de madeira ilegal, por exemplo, já estão ou inseridos em fluxos e cadeias criminosas internacionais ou intimamente conectadas com elites econômicas ligadas ao agronegócio – isto quando as duas coisas não acontecem simultaneamente. Estas mesmas redes muitas vezes estão conectadas com o tráfico internacional de drogas e entorpecentes, cujos resultados são a reprodução de ciclos de violência em espaços urbanos.

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