“Divulgo abaixo a nota do PolCrim – Laboratório de Estudos de Política e Criminologia sobre a chacina do Guarujá, com a qual estou de acordo. Parabenizo a equipe do PolCrim pelo posicionamento.” – Prof. Wagner Romão
NOTA PÚBLICA
No dia 28 de julho de 2023 o governo de São Paulo iniciou na Baixada Santista uma megaoperação policial denominada “Operação Escudo”. A operação, que reúne o efetivo de 600 policiais militares, foi iniciada um dia após a morte de Patrick Reis, policial das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, na cidade do Guarujá. Segundo o Secretário de Segurança Pública, o autor da morte seria um indivíduo ligado ao tráfico de drogas na região. Deflagrada sob a justificativa de reprimir o tráfico de drogas e o crime organizado na região, a operação resultou em 58 pessoas presas até o momento, e 16 mortes de civis reconhecidas pelo governo do Estado. Desde os primeiros momentos da operação, a imprensa independente e a Ouvidoria das Polícias do estado já tinham registro de invasão de domicílios, tortura e execuções sumárias práticas pela Polícia Militar, inclusive com a divulgação pública de mensagens de WhatsApp trocadas por policiais contabilizando e comemorando as mortes de civis.
Dadas as informações conhecidas até o momento, é possível reconhecer que a Operação Escudo assume as características de uma chacina, termo utilizado por pesquisadores e observadores de direitos humanos para designar execuções com três vítimas ou mais, no mesmo território, pelos mesmos executores, de modo extrajudicial. Além disso, apresenta características de um movimento já notado por pesquisadores dedicados a ações letais no Brasil, especialmente no contexto paulista: mortes em série iniciadas sob o sentimento de vingança e como reação a mortes de policiais.
Apesar das fortes evidências de execuções sumárias e outras arbitrariedades, o governador do estado tem insistido em caracterizar a operação como um sucesso, dizendo estar “extremamente satisfeito” com o resultado das ações, e minimizando as mortes entre outras estatísticas de apreensão de veículos, armas e drogas. Mesmo que afirme que “irregularidades” praticadas pela Polícia Militar serão apuradas, o governador tem insistido na confiança dos relatos policiais, segundo os quais as mortes de civis se deram em contextos de confrontos e reações armadas à operação. Segundo seu secretário de Segurança, essa confiança está baseada na “fé pública” dos agentes policiais.
A confiança cega nas narrativas policiais é identificada pela literatura especializada como uma das causas do aumento e da legitimidade da violência policial no Brasil, seja na figura dos “autos de resistência” que caracterizavam os supostos confrontos de civis com policiais, seja na produção em série de prisões em flagrantes baseadas unicamente nos testemunhos policiais. Ambos dispositivos de legitimação jurídica da violência policial têm sido questionados, como aconteceu com a proibição formal do registro de “autos de resistência” e com recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a inadmissibilidade de produção de prova baseada exclusivamente no testemunho policial.
O princípio da fé pública é um fundamento geral da administração pública que busca garantir confiabilidade e segurança jurídica dos atos praticados por funcionários públicos, e não pode ser simplesmente transposto para a legitimação jurídica da violência estatal e para bloquear tentativas de controle da atividade policial. Nesse sentido, a atual gestão estadual tem demonstrado resistência aos esforços de controle e redução da violência policial: segundo dados da própria Secretaria de Segurança Pública houve um aumento de 26% de mortes decorrentes da ação de policiais militares no primeiro semestre deste ano, os primeiros seis meses do novo governo estadual. Esse crescimento é alarmante e representa um retrocesso dos avanços que pareciam ter sido alcançados com o uso das câmeras corporais nas fardas policiais, ao qual o Fórum Brasileiro de Segurança Pública relacionou uma redução de mais de setenta por cento da letalidade da Polícia Militar paulista entre 2019 e 2022.
Ao contrário de chacinas anteriores conhecidas, com participação de policiais e motivadas por vingança contra a morte de outros policiais, a fronteira entre a atuação legal e ilegal das forças de segurança na Operação Escudo se torna ainda mais obtusa: a tradicional balaclava usada por grupos de extermínio se tornou um adereço desnecessário, sem a preocupação de se garantir o anonimato de uma atuação clandestina, legitimada pelo seu caráter oficial e pelos discursos dos dirigentes paulistas.
A continuidade da Operação Escudo reforça o papel das chacinas policiais como instrumentos do genocídio negro, agravada pela oficialidade e legitimidade que o governo do estado tem buscado garantir.
Diante disso, torna-se urgente o imediato encerramento da Operação Escudo para evitar a continuidade da violência na Baixada Santista, e que sejam investigadas as ações que resultaram nas mortes de civis.
É imprescindível que o Ministério Público assuma sua responsabilidade na apuração dos fatos, exercendo a função de controle externo da atividade policial determinado pela Constituição Federal de 1988. É preciso, ainda, que Ouvidoria das Polícias, movimentos sociais, organizações de direitos humanos e imprensa tenham garantido o acesso à informação e as condições de seu trabalho livre na apuração independente da violência policial na Operação Escudo. Por fim, sugerimos que o Ministério da Justiça e o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do governo federal acompanhem a Operação, seus desdobramentos e os procedimentos de apuração de violência, e que garantam a segurança e o acesso à justiça das famílias e comunidades afetadas pela ação policial
Campinas-SP, 02 de agosto de 2023.
Via Blog do Prof. Wagner Romão
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