No último sábado, 21 de junho, a Folha de S.Paulo publicou uma pesquisa das mais relevantes dos últimos tempos sobre o mundo do trabalho no Brasil. E o que imediatamente me chamou a atenção foi a maneira como essa pesquisa foi apresentada na manchete do jornal, que afirmava, sem nenhum constrangimento, que “a maioria gostaria de trabalhar por conta própria no Brasil”. A afirmação simplesmente não encontra respaldo nos dados do próprio levantamento.

É muito grave que um veículo do porte da Folha estampe uma manchete desse tipo. A leitura atenta dos números mostra que ela não dialoga, em nenhum nível, com o conteúdo real da pesquisa. Trata-se de uma simplificação grosseira, que não corresponde nem de perto aos percentuais apresentados e, mais grave, distorce o próprio sentido do que foi apurado.
O objetivo central da pesquisa foi identificar como a população brasileira se posiciona em relação ao vínculo empregatício, à carteira de trabalho assinada e à relação disso com a remuneração. Foram feitas duas perguntas-chave: se o trabalhador preferiria ter carteira assinada mesmo recebendo menos, ou se preferiria trabalhar sem carteira, mas ganhando mais. Até aí, tudo bem. O problema começa exatamente na ausência de uma terceira pergunta, absolutamente óbvia, que jamais poderia ter sido deixada de lado: se o trabalhador gostaria de ter carteira assinada e, ao mesmo tempo, ganhar mais. Essa pergunta não apareceu.
Ora, por que ela não apareceu? Por que não se quis perguntar se as pessoas desejam, ao mesmo tempo, proteção social, direitos e uma remuneração justa? Se essa questão estivesse na pesquisa, não tenho dúvida de que os resultados seriam ainda mais contundentes e absolutamente reveladores.
De toda forma, mesmo com essa omissão metodológica inexplicável, os dados já desmontam, por si só, a tese defendida na manchete. A maioria da população brasileira — 67% — prefere trabalhar com carteira assinada, mesmo recebendo menos, contra apenas 31% que optariam por trabalhar sem carteira, desde que ganhassem mais. Isso, por si só, já seria suficiente para derrubar qualquer tentativa de dizer que o país virou as costas para a proteção social.
Os recortes da pesquisa são extremamente reveladores. As mulheres, por exemplo, têm uma percepção muito mais aguçada da importância da carteira de trabalho. Nada menos que 71% das mulheres preferem o vínculo formal, mesmo com remuneração menor, contra 26% que aceitariam a informalidade. Entre os homens, os números também são majoritários, embora um pouco menores: 62% preferem a carteira assinada, contra 36% que aceitariam não tê-la.
Esse dado sobre as mulheres me toca profundamente. O olhar do público feminino sobre a proteção do Estado, sobre os direitos que decorrem do trabalho formal — licença-maternidade, estabilidade, acesso à previdência — é de uma força imensa. E é absolutamente compreensível. Quem já precisou, como eu, conversar com mulheres trabalhadoras, ouvir suas histórias, sabe exatamente do que estou falando. Pense numa mãe, muitas vezes solo, que descobre uma gravidez. Sem a carteira assinada, quem garante a renda dela nos meses em que ela precisa cuidar do filho recém-nascido? Quem paga o sustento dessa casa? Quem assegura que ela poderá acompanhar o desenvolvimento dessa criança sem, ao mesmo tempo, mergulhar na insegurança econômica? É por isso que o apego das mulheres à carteira não é um dado estatístico qualquer — é uma expressão concreta da luta pela sobrevivência, pela dignidade, pela proteção da família.
O mesmo raciocínio vale para os mais pobres. É evidente, quase intuitivo, que quem vive na base da pirâmide social dá um valor enorme à carteira de trabalho. Porque sabe, na pele, o que significa não ter proteção. Sabe o que significa sofrer um acidente, quebrar a mão, machucar o pé e, simplesmente, não ter para onde correr. A pergunta é direta, concreta, sem rodeios: o sujeito se machuca, cai da moto, se corta na obra, e faz o quê? Senta no sofá e espera o quê? Vai viver de quê? Fica dois, três meses parado, e recebe o quê? Nada. A carteira, para essa imensa parcela da população, não é apenas um documento — é a linha tênue entre a dignidade e a completa insegurança.
Por isso, a opção pela formalização, mesmo que com salários menores, tem um peso enorme entre os mais pobres, na classe média baixa, na classe operária. É uma escolha que não se dá apenas no campo da preferência subjetiva, mas nas condições objetivas da vida, na dureza da existência cotidiana de quem, todos os dias, vive à beira do infortúnio.
Por outro lado, quando olhamos para quem tem ensino superior, a percepção é diferente — e faz sentido que seja. Afinal, quem tem formação universitária, muitas vezes, já conquistou certa estabilidade: tem um plano de saúde, uma reserva financeira, um imóvel, um carro. Construiu, ao longo da vida, um pé de meia. Essa pessoa olha para a carteira de trabalho de outra forma. Seu senso de proteção não está mais necessariamente ancorado no contrato formal, mas naquilo que ela própria conseguiu acumular. E, aqui, cabe uma reflexão incômoda: essa conquista, muitas vezes, não foi uma vitória individual, como gostam de acreditar os discursos meritocráticos. Foi, sim, fruto de um esforço coletivo da sociedade — que financiou universidades públicas, que investiu em educação, que criou condições para que engenheiros, médicos, arquitetos e outros profissionais se formassem. É preciso lembrar disso.
Os recortes geracionais também são absolutamente elucidativos. Entre os mais jovens, especialmente na faixa de 16 a 24 anos, predomina a lógica do presente. 66% preferem não ter carteira, desde que ganhem mais. E quem pode culpá-los? Para essa juventude, a aposentadoria, o auxílio-doença, a proteção previdenciária são conceitos distantes. O que importa é o agora. Querem liberdade, querem fazer seu próprio caminho, fugir das amarras das jornadas de seis dias por semana, oito horas por dia. E não estão errados. Essa é a percepção que a própria sociedade — marcada pela precarização, pela falta de perspectivas, pelos baixos salários — construiu para eles.
Aliás, isso não é uma suposição. Falo disso a partir da minha própria experiência. Na Superintendência do Trabalho aqui em Minas Gerais, tenho dialogado com muitos desses jovens. E eles me dizem, sem rodeios, que não se trata de rejeitar a carteira de trabalho em si. Trata-se de querer autonomia, liberdade. Não querem ficar presos no ônibus, na obra, na construção civil, no escritório, no chão de fábrica. Querem mais liberdade para conduzir sua vida, seu trabalho, seus horários. E quem pode dizer que estão errados?
Na outra ponta, entre os trabalhadores com mais de 60 anos, o quadro se inverte completamente. Não se trata nem tanto de uma necessidade concreta — afinal, muitos já estão aposentados —, mas de uma memória geracional. É a geração que viveu sob a proteção da CLT, que viu na carteira assinada o caminho para construir uma vida, garantir a aposentadoria, criar os filhos, comprar a casa. É por isso que, nesse grupo, nada menos que 79% preferem a carteira assinada, mesmo que isso signifique ganhar menos.
O que essa pesquisa revela, portanto, é um Brasil dividido, mas não no sentido que a manchete da Folha tentou vender. O que ela escancara é que a classe trabalhadora brasileira — especialmente os mais pobres, as mulheres, os mais velhos — segue valorizando enormemente o contrato formal, o vínculo empregatício, a proteção social. Ao mesmo tempo, denuncia, de forma silenciosa, o fracasso coletivo da nossa sociedade em oferecer salários dignos, condições de trabalho decentes e perspectivas reais de futuro para a juventude.
E volto, mais uma vez, à omissão mais grave desta pesquisa: a pergunta que não foi feita. Se os pesquisadores do Datafolha tivessem perguntado se os brasileiros gostariam de ter a carteira assinada e, ao mesmo tempo, ganhar mais, não tenho nenhuma dúvida de que o resultado seria esmagadoramente favorável à formalização. A ausência dessa pergunta não é um detalhe técnico — é um vício metodológico que permitiu, deliberadamente ou não, a construção de uma manchete enganosa, que tenta sustentar uma tese que simplesmente não encontra respaldo nos dados.
Por isso, o que a pesquisa faz, de fato, é desmontar — e desmontar com força — essa imagem profética que se tentou vender à sociedade brasileira nos últimos anos. Uma narrativa que tentava naturalizar a ideia de que a informalidade é sinônimo de modernidade, de que a ausência do Estado seria liberdade, de que viver sem direitos é uma escolha da maioria. Tentaram, por muito tempo, convencer o povo brasileiro de que não ter carteira assinada é ser empreendedor, é ser empresário de si mesmo, é ser moderno, é ser livre. De que o liberalismo selvagem, a desregulamentação e a precarização seriam caminhos desejáveis. A pesquisa destrói essa fantasia. Mostra, com números irrefutáveis, que a classe operária brasileira — sim, ela existe, resiste e está viva — rejeita essa falsa promessa. E reafirma, de maneira clara, que o povo trabalhador quer é proteção, é segurança, é vínculo, é direito. Quer a carteira de trabalho, quer o Estado, quer a legislação, quer aquilo que a história lhe ensinou que é o único caminho possível para garantir dignidade: trabalho decente e protegido.
Em outras palavras, a classe trabalhadora brasileira, a boa e velha classe operária, segue resistindo. Surpreende. Dá, mais uma vez, uma aula de consciência coletiva, de resistência, de clareza sobre o que significa ter direitos, proteção social, estabilidade, segurança. E isso, gostem ou não, permanece como um traço estruturante da sociedade brasileira.
Carlos Calazans é superintendente regional do Trabalho em Minas Gerais, especialista em Direito Internacional do Trabalho, ex-presidente da CUT-MG e histórico militante das lutas sindicais e sociais no Brasil.