Introdução ao artigo do Chico Louçã
Reproduzimos aqui artigo do Francisco Louçã, publicado no Portal Esquerda.net. Nele, o autor nos propõe uma importante reflexão sobre os desafios da esquerda mundial, a partir dos resultados das eleições legislativas em Portugal, no mês passado.
Duas observações, no entanto, se fazem necessárias. A primeira diz respeito ao título do artigo, uma referência à parábola bíblica sobre a mulher de Lot. Entendemos que a figura de linguagem de uma mulher castigada por desobediência a uma determinação divina não é a mais apropriada para ilustrar os impasses e dilemas que permeiam a atuação da esquerda no cenário internacional.
A segunda observação se refere à ideia do presidente norte-americano como “rei do mundo”. Em que pese o poder de fogo dos EUA, não podemos desconsiderar as contradições sociais e econômicas que explodiram em mobilizações sociais nos proprios EUA e em conflitos interimperialistas. Também é necessário incluir no cenário a China, entre outros fatores que pesam na dinâmica de conflitos nas relações internacionais.

A mulher de Lot olhou para trás e morreu
O PS ficou atrás da extrema direita. O Bloco e o PCP sofreram as suas piores derrotas eleitorais. Ninguém no centro ou na esquerda determina a política e a consequência imediata destes desastres tem sido confusão e medo. Por isso, e como seria de esperar, instalou-se uma cacofonia de ajustes de contas: editoriais sanguinolentos anunciam a extinção da esquerda e comissionistas esfuziantes festejam a vitória, enquanto a oposição não se entende sobre o que fazer, como fica demonstrado pela multiplicação de putativos mini-candidatos nas presidenciais, a começar pelos do PS, onde se prenunciam três que são zero. Contra esse caos, venho aqui apresentar duas teses: a de que o regime já mudou e a de que, em consequência, a alternativa não é (só) resistir.
O regime cinquentenário acabou
A nova república instaurada pela revolução de Abril alicerçou-se em três realidades: os efeitos reais desse tempo inaugural, a reconfiguração fixada pelo 25 de novembro e um sistema de alternância entre dois partidos dominantes. Esses pilares deram origem ao compromisso consagrado na Constituição, que é de 1976, e o modelo adaptou-se nos cinquenta anos seguintes. Agora esgotou-se. Logo, não estamos a viver um novo ciclo eleitoral, por definição passageiro, mas sim a instalação de um novo regime.
A desagregação do compromisso anterior responde a uma mudança estrutural da relação de forças. Ela resulta da imposição, pelos sectores dominantes da finança, de uma tripla garantia: primeiro, corrigir a estagnação da acumulação de capital nas últimas décadas por via do abaixamento histórico dos salários (e daí a precarização do trabalho qualificado e a promoção da imigração sem papéis); segundo, assegurar as rendas amparadas pelo poder político, do que depende a fortuna dos oligarcas; e, terceiro, que a desigualdade extravagante, a matriz deste regime, seja blindada pela intensidade da submissão social. Esse é o combustível da vaga de fundo que leva o liberalismo económico a escolher o autoritarismo. A viragem de milionários e operadores políticos para o fascismo é a sua expressão, pelo que Trump não é uma anedota, é o rei do mundo. O novo regime não é uma minhoca ocasional, é o fruto designado; não é um azar, é o triunfo de um novo sistema de poder em que a extrema-direita se torna o vector do governo.
Ora, espantosamente, o que predomina na esquerda é a negação da evidência desta mutação. A esquerda está desarmada por não querer ver o inimigo. Multiplicam-se explicações contextualizantes (que há um ressentimento social pela inconsistência das políticas públicas), que conduzem a desculpabilizações facilitistas (os inocentes não se fascistizam) e a conclusões débeis (bastaria corrigir essas raízes materiais da frustração) e sobretudo inoperantes, pois suplicam aos que cavaram a crise de confiança que façam o contrário do que determinam. Ora, a crise social não resulta de erros; pelo contrário, é o resultado do sucesso do mercado e o mercado é insaciável. Por isso, nenhum governo deste regime brutalista corrigirá o colapso na saúde ou na habitação, antes estará empenhado no desmantelamento do SNS e na subida dos preços das casas, duas das condições para a acumulação das rendas oligárquicas.
Criar povo
Nos escombros do antigo regime brilham ainda algumas pepitas, como as dos direitos constitucionais que dificultaram o corte nas pensões na troika (embora não impedissem a bazuca do mercado na habitação ou na corrosão da democracia). Nelas se pode apoiar uma resistência frentista que não abdique de nenhum terreno de luta onde possa juntar povo. Contudo, não haja ilusões: esperar uma mão salvadora vinda das glórias do passado, ou olhar para trás como na lenda da mulher de Lot (a Bíblia ignora o seu nome), só nos transformará em estátuas de sal.
Dessa inquietação resultam as respostas fugidias que nos são apresentadas no caos actual e que merecem atenção. Uma é a renúncia: a morte da alternância deu lugar à cínica “teoria dos três corpos”, que apela a que a esquerda apoie o PSD para que este fique puro, sem sequer perceber que esse navio já zarpou e que o único corpo político que beneficiaria do vazio da esquerda seria o Chega. Outra é a adaptação por via de partidos Zelig que, como no filme de Woody Allen, digam a cada pessoa o que gosta de ouvir, esperando que a banalidade seja uma barragem aos maus espíritos. A terceira é abdicar dos direitos das mulheres ou LGBT porque excitam os inimigos e é preciso aplacá-los aceitando a dose certa de machismo. A quarta, ainda mais perigosa, é uivar com os lobos, desumanizando os imigrantes ou apoiando o exterminismo armamentista, fugindo assim de qualquer aresta em que a oposição seja a exigência da decência. Nestas opções a esquerda morreria e todas elas estão aí ao seu dispor.
A alternativa depende, creio, de um novo começo em duas ousadias para criar povo. A respiração, primeiro: só haverá esquerda viável fora das redes Zuckerberg-Musk, onde se podem dinamitar adversários – o encarniçamento reaccionário contra a Mariana é um caso de estudo, uma mulher jovem é lapidada se dirigir uma força de esquerda – e trivializar a cultura da ilusão, endeusando a meritocracia ou a superioridade rácica. Não se pode vencer esse poder algorítimo da bolhificação e do fascismo emocional no seu próprio terreno. E, se devem ficar alguns guerrilheiros por detrás das linhas inimigas, só haverá esquerda popular se viver em modos de comunicação livres. É preciso criar um novo espaço público, sem a toxicodependência que nos degrada. Só fugindo da cloaca o povo se reconhecerá nas suas comunidades.
E a política, depois: se o novo regime se define pela desigualdade classista da acumulação de capital, apoiada em rendas e no terror do empobrecimento, é aí que se deve definir o combate. Não serão promessas de remendos do velho regime que mobilizarão quem sofre a espera das consultas hospitalares ou quem sabe que só terá casa se morrer um familiar. Faltar-lhes-ia credibilidade e, pior, abdicariam do futuro. Por isso, juntar só para resistir seria aceitar a derrota passo a passo, o destino da mulher de Lot. Seria renunciar a uma esperança que levante. Em contrapartida, quando congressos unitários para alternativas declararem oposição a este novo regime e enunciarem caminhos constituintes de uma política social transformadora, praticável e consistente, o movimento falará a uma voz forte e teremos o início da ofensiva da esquerda para derrubar esta nova prisão. É no tempo da sombra que a luz é mais necessária.
Francisco Louçã é Professor universitário e Ativista do Bloco de Esquerda.
Via Esquerda.net