No domingo o Los Angeles Times alegou que a derrubada do presidente Manuel (Mel) Zelaya é diferente – “exemplo de uma rebelião de novo tipo na luta da América Latina, no qual os líderes da esquerda desafiam o status quo e testam os limites da democracia”. Na verdade até o truque de fingir que nada tem a ver com o golpe pode ser repetição de ações passadas dos EUA. A análise é de Argemiro Ferreira.
Argemiro Ferreira *
Bastaria um mínimo de atenção às fotos da situação em Honduras (com repressão de protestos, ataque a jornalistas e reza de marchadeiras) para qualquer um concluir que o golpe militar em nada difere de outros da tradição imposta ao continente para servir aos EUA – desde os tempos da United Fruit, que deu origem à expressão “república de banana” e nas últimas décadas tem mudado de nome (foi também United Brands, mas agora virou Chiquita Brands).
No domingo o Los Angeles Times alegou que a derrubada do presidente Manuel (Mel) Zelaya é diferente – “exemplo de uma rebelião de novo tipo na luta da América Latina, no qual os líderes da esquerda desafiam o status quo e testam os limites da democracia”. Afirmou ainda: “naquela noite os militares de Honduras desligaram telefones para não ter de falar com autoridades dos EUA”.
Será? Na verdade até o truque de fingir que nada tem a ver com o golpe pode ser repetição de ações passadas dos EUA (como em 1964, quando o cínico embaixador Lincoln Gordon jurou que o golpe tinha sido “100% brasileiro”). Em Honduras outra semelhança foi a ação precipitada de grupelhos: como a de um general e dois coroneis que invadiram a casa de Zelaya de madrugada, arrancaram-no da cama e tornaram o golpe fato consumado ao enfiá-lo de pijama no avião militar.
Um golpe igual aos outros
Ao contrário do que disse o Times californiano, nada se inovou, foi “golpe no velho estilo” – expressão usada por outro jornal americano em 1964, para qualificar o que acontecia então no Brasil. Os ingredientes estão no próprio relato do diário de Los Angeles: elite indignada com gastos em programas sociais, coro da mídia golpista e a palavra piedosa de figurões da Igreja pagos pelos bushistas do National Endowment for Democracy (NED).
Observem o que ocorre agora. Pelo menos mais dois líderes de movimentos populares foram assassinados. Roger Bados (do Bloco Popular e da Resistência Popular, além de membro da coalizão do governo Zelaya), foi baleado e morto em San Pedro Sula. Ramon Garcia foi retirado por militares do ônibus em que viajava e executado. Anunciou-se a suspensão do toque de recolher, mas ele continua em vigor.
Essas e outras informações estão no website “Postcards from the Revolution” de Eva Golinger, advogada venezuelana que atua em Nova York e publicou, entre outros livros, The Chávez Code – Cracking US Intervention in Venezuela (O Código Chávez – Destroçando a intervenção dos EUA na Venezuela), sobre o golpe fracassado de 2002. Ela citou ainda a prisão e expulsão de jornalistas estrangeiros da agência espanhola EFE e de dois canais da Venezuela, Telesur e VTV.
Um jornal de Tegucigalpa citou com ligeireza o fato, atribuindo as prisões insolitamente a “roubo de carro”. Os veículos hondurenhos adotam uma linha golpista semelhante à da mídia brasileira. Filiam-se todos, como a nossa grande imprensa, à notória Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que se diz defensora da liberdade de imprensa mas tradicionalmente aplaude os golpes apoiados pelos EUA – como o de Pinochet no Chile em 1973.
O lobista e as marchadeiras do cardeal
O golpe trouxe ainda a versão hondurenha da “marcha da família com Deus pela liberdade”. Como os golpistas foram incapazes de obter reconhecimento em qualquer país (até Israel repudiou a idéia), o cardeal Andrés Rodriguez (beneficiário de verbas do NED, a organização dos EUA que patrocina golpes a pretexto de defender a democracia) faz concentrações e rezas em vários países implorando a Deus pelo sucesso do golpe.
O dado mais preocupante, revelado pelo New York Times, é sobre uma ofensiva de relações públicas lançada pelos golpistas nos EUA. Segundo o jornal, já trabalha nesse sentido junto à secretária Hillary Clinton (de quem foi conselheiro na campanha presidencial de 2008) o lobista Lanny J. Davis, ex-advogado pessoal do presidente Bill Clinton na Casa Branca. Outro ligado a Clinton que já estaria a serviço dos golpistas é Bennett Ratcliff, da Califórnia.
A ofensiva golpista nos EUA pode revelar-se decisiva. Se Barack Obama declarou-se no primeiro momento pelo imediato retorno ao poder do presidente legítimo (Zelaya), sua secretária de Estado tem sido ambígua. Agora, destacou Golinder, Hillary pode até já ter concordado com cinco condições (exigidas pelos golpistas) que ameaçam reduzir Zelaya a mera figura decorativa:
1. Zelaya teria a presidência mas não o poder;
2. Ficaria proibido de insistir no plano de reforma da Constituição ou mesmo de realizar referendos ou votações de qualquer natureza;
3. Seria obrigado a se distanciar do presidente venezuelano Hugo Chávez;
4. Compartilharia a governança com o Congresso e os golpistas até o fim do mandato;
5. Assumiria o compromisso de anistiar os envolvidos no golpe.
“El negrito que no sabe de nada”?
Também nisso o golpe de Honduras imita o Brasil – de 1961, quando militares golpistas exigiram que se retirasse os poderes de João Goulart antes de empossá-lo. Nada destoa do figurino clássico do golpe latino-americano, até por ter nascido em Honduras a expressão banana republic. Só o que difere é a reação inicial de Obama, enfático no repúdio. Terá ele depois deixado a bola para o Departamento de Estado que herdou de Bush?
Ali dois veteranos do golpe venezuelano de 2002, Thomas A. Shannon e Hugo Llorens, podem tentar sob a liderança da secretária Hillary desconstruir Obama. Shannon está onde Bush o colocou – é secretário assistente para assuntos hemisféricos, o mesmo posto no qual seu ex-chefe cubano Otto Reich encaminhara o outro golpe (revertido em 48 horas). E em Tegucigalpa está Llorens, enviado no ano passado por Bush.
Quadro perfeito para o contágio no continente, onde a mídia parece atraída por modelito “diferente” – a new kind of coup, na expressão do Los Angeles Times – para responder ao que a elite latino-americana teme como ameaça a séculos de sua perversidade social. Só não faz sentido ver Obama metido no papel de um Bush obcecado por Chávez, já que sua promessa foi o contrário: mudança.
Estará nos planos do presidente americano, a reboque da secretária de Estado, tal confraternização promíscua com a insaciável elite branca, tão bem representada na figura grotesca de Enrique Ortez Colindres, ministro do Exterior do golpe, que escancarou o racismo ao reagir ao repúdio de Obama? “Ele é só um negrinho que não sabe de nada”, disse. Colindres, claro, teve de cair fora. Mas o resto da turma golpista, de igual linhagem nobre, confia na loura Hillary.
* Da Agência Carta Maior.
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