Saberes insurgentes e a revolução epistemológica em curso

Moara Saboia

Cresci ouvindo o som do congado ocupando as ruas, o toque dos tambores, as rezas nos terreiros e a fé do nosso povo ecoando pelas vilas e favelas de Contagem. Antes de qualquer sala de aula, minha formação começou ali, no território onde a política se mistura com a vida e onde a resistência é transmitida como gesto cotidiano. É desse chão que venho. É dele que falo. E é por isso que, quando discuto saberes insurgentes, não falo apenas de teoria: falo da vida que me formou.

Nas últimas semanas, ao debater saberes insurgentes na Faculdade de Direito da UFMG e ao caminhar na Marcha das Mulheres Negras 2025, ficou ainda mais evidente para mim que vivemos hoje uma disputa profunda sobre a própria definição de saber. Essa disputa não é técnica nem abstrata. Ela atravessa corpos, territórios, instituições e os sentidos de futuro que estamos construindo.

A revolução epistemológica que já começou

Quando falamos de saberes insurgentes, não tratamos de multiculturalismo raso ou de inclusão simbólica. Estamos falando de revolução epistemológica. De um deslocamento radical na forma como o Brasil decide quem tem o direito de pensar e formular o mundo.

Lélia Gonzalez já nos ensinava que nossas experiências são produtoras de conhecimento e não apenas de sobrevivência. Bell hooks afirmava que a margem é um espaço de resistência e, portanto, lugar de produção intelectual. Beatriz Nascimento ensinou que o quilombo é uma tecnologia política, civilizatória e intelectual. Sueli Carneiro demonstrou que o racismo epistêmico não é falha: é estrutura. Patricia Hill Collins reforçou que mulheres negras chegam à universidade carregando epistemes, práticas, territórios, mães, diásporas e memórias.

Nada disso é alegoria: é transformação concreta das bases do pensamento brasileiro.

Território que pensa, Estado que se opõe, um caso de Minas Gerais

Não há produção intelectual negra que se separe da luta pelo território. E isso se revela diariamente no meu mandato.

Quando enfrentamos o Rodoanel em Contagem, não enfrentamos apenas um projeto de infraestrutura. Enfrentamos uma disputa epistêmica. A Convenção 169 da

OIT, que assegura consulta prévia, livre e informada, reconhece que comunidades tradicionais, quilombolas, ribeirinhas e povos de terreiro produzem conhecimento sofisticado sobre a terra, a água, o risco, o impacto e a vida.

Quando essas comunidades dizem “esta obra ameaça nossa existência”, “esta obra ameaça o abastecimento de água da Região Metropolitana de Belo Horizonte”, estão exercendo um ato de inteligência coletiva.

Audre Lorde nomeou esse movimento como transformar o silêncio em linguagem e ação. Angela Davis nos lembra que teoria e prática não se separam: uma existe no interior da outra. É no conflito real, no chão do território, que a teoria se torna corpo.

Isso é insurgência.

Isso é epistemologia viva.

Isso é negritude organizada reconfigurando o que o Estado precisa reconhecer como saber, e o Estado de Minas Gerais, sob gestão do Zema, resiste em considerar essa inteligência coletiva de proteção do bem viver e do bem comum, promovendo uma política de destruição com recursos do crime da Vale em Brumadinho.

O mandato como prática de produção de conhecimento coletivo

No meu mandato, compreendo que a política pode ser também um espaço de produção intelectual, especialmente quando nasce da escuta profunda e da elaboração coletiva.

Criamos o Programa SOS Racismo, estruturamos políticas de cuidado para mulheres, fortalecemos o congado, o hip hop, as feiras e o teatro, impulsionamos hortas comunitárias, defendemos os territórios ameaçados, apoiamos os projetos de meliponários, avançamos na regularização do Quilombo dos Arturos, conquistamos para Contagem a Casa da Igualdade Racial, construímos a Casa da Democracia e protegemos a Várzea das Flores.

Cada uma dessas ações nasce de um saber territorializado.

De uma experiência que se transforma em análise, formulação e política pública.

Como ensina Beatriz Nascimento, trata-se de conhecimento que emerge do território, do conflito e da história viva. E que, por isso mesmo, possui potência transformadora.

A Marcha das Mulheres Negras como fundação de um outro Brasil

A Marcha das Mulheres Negras 2025, realizada com o tema Reparação e Bem-Viver, foi um marco epistemológico.

Foi o Brasil real, feminino, negro, periférico e quilombola caminhando pela Esplanada como afirmação de que nossos saberes existem, são legítimos e não pedem permissão.

As mulheres negras já falaram. Já marcharam. Já apontaram o caminho.

Agora, o que está em jogo é transformar essa potência em poder real: político, acadêmico, institucional. O país que vimos nas ruas de Brasília não cabe mais nos velhos limites da exclusão. E eu, enquanto mulher negra na política, me coloco ao lado desse Brasil que está nascendo para construí-lo de forma compartilhada.

A marcha corporifica o que Patricia Hill Collins chamaria de standpoint em sua forma coletiva, insurgente e profundamente democrática. É da união das mulheres negras de todas as gerações que corpo, território, cuidado, espiritualidade e política se articulam como fundamentos de um novo paradigma de país e do sonho da construção de uma democracia cada vez mais socialista.

Reescrever a universidade é reescrever o país

Não somos hóspedes da universidade. Somos parte de seu projeto de futuro.

E esse futuro só será possível quando saberes negros forem reconhecidos como ciência, quando a neutralidade deixar de funcionar como mito, quando territórios forem reconhecidos como sujeitos pensantes e quando a insurgência deixar de ser exceção para se tornar estrutura.

Somos a geração que entra, disputa, transforma e reescreve com teoria, com luta, com território e com coragem.

Convocação final para a militância, a universidade e o partido

Que esta coluna circule nos núcleos, nas universidades, nas plenárias e nos territórios. Que ela ajude a deslocar paradigmas e fortalecer a luta pela democratização radical do conhecimento.

A revolução epistemológica já começou. Cabe a nós radicalizá-la de forma coletiva, democrática e enraizada nos territórios. O futuro não se escreve só. Ele é compartilhado. E quando a gente compartilha sonhos, a transformação se torna possível.

Moara Saboia é Vereadora em Contagem (PT) e pré-candidata a deputada estadual por Minas Gerais

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