As enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul não foram apenas um evento climático extremo, mas a materialização brutal das desigualdades estruturais forjadas por um sistema que coloca o lucro acima da vida. Mais de 2,4 milhões de pessoas foram atingidas em 478 dos 497 municípios gaúchos. Entre os escombros e o abandono estatal, o que emergiu foi o peso histórico carregado pelas mulheres – especialmente as pobres, negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e periféricas – que, novamente, foram as mais afetadas e menos assistidas.
A catástrofe escancarou a face genocida do capitalismo patriarcal, que precariza vidas para sustentar a acumulação de riqueza por uma minoria. A destruição de territórios, a omissão governamental e a apropriação das águas por transnacionais são expressões do mesmo modelo que transforma a natureza, os bens comuns e os corpos das mulheres em mercadoria. Ao serem flexibilizadas quase 500 normas do Código Ambiental Estadual, em 2019, foi o prenúncio do que veio a ser o maior desastre ambiental do Rio Grande do Sul em 2024, onde as enchentes levaram consigo vidas, solos, territórios, fauna, flora e roçados gaúchos. Agora, em dezembro de 2025, as chuvas, mesmo em menor densidade, seguem alagando vidas e sonhos, daquelas e daqueles que nem sequer conseguiram se reerguer. Neste contexto, a crise climática não é um fenômeno natural, mas um projeto político de morte do neoliberalismo.
Feminicídios: A Manifestação Mais Cruel do Patriarcado
Enquanto a mídia focava na “tragédia ambiental”, silenciava o avanço da barbárie patriarcal. O Rio Grande do Sul segue entre os estados com mais feminicídios do país. Em 2024, 72 mulheres foram assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. Em 2025, até abril, mais de 30 feminicídios já haviam sido registrados, incluindo 10 casos apenas durante o feriado da Semana Santa, dados mais recentes, de novembro deste ano, apontam para 69 feminicídios registrados, sendo que no primeiro semestre foram registradas cerca de 19,92 mil ligações ao Ligue 180, ou seja, tendo em vista a vasta subnotificação e tipificação dos crimes, podemos acreditar que o dado real seja ainda mais grave. Esses números não são estatísticas isoladas são o retrato de uma estrutura que legitima a violência masculina como instrumento de controle sobre os corpos e vidas das mulheres.
Durante as enchentes, milhares de mulheres foram forçadas a abrigos improvisados sem qualquer garantia de segurança ou dignidade. O aumento das violências sexuais, o desaparecimento de crianças e a ausência de políticas públicas de acolhimento revelam um Estado que abandona deliberadamente quem historicamente sustentou a vida nas periferias e nos campos. A crise, longe de ser emergencial, é contínua e estrutural.

Capitalismo Verde e o Lucro com a Morte
Empresas transnacionais, que lucram com o desmatamento, a mineração e o agronegócio predatório, seguem sendo tratadas como parceiras no processo de reconstrução do estado. Este “capitalismo verde” recicla a destruição sob o discurso da sustentabilidade, transferindo a responsabilidade da crise ambiental para os indivíduos, enquanto perpetua a lógica de exploração e dominação. A resposta institucional – lenta, ineficiente e tecnocrática – ignora propositalmente as pautas feministas, que colocam a sustentabilidade da vida no centro da política.
O Feminismo é uma Força de Reconstrução Popular
Enquanto o Estado se omitia, foram as mulheres organizadas que criaram redes de solidariedade, garantiram alimento, proteção e escuta. Nós da Marcha Mundial das Mulheres, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), MST e MTST em conjunto com coletivos feministas, sindicais e de base territorial fomos fundamentais na resistência. Essas ações demonstraram e continuam afirmando que outro modelo é possível: um que valorize o cuidado, a justiça social e a soberania dos povos sobre seus territórios e corpos.

Por uma Reconstrução Anticapitalista e Antipatriarcal
A reconstrução do Rio Grande do Sul não pode seguir sendo gerida por quem destruiu o estado. É urgente que os recursos sejam direcionados para fortalecer a organização popular, garantir moradia digna, acesso à saúde integral, segurança contra a violência de gênero e políticas climáticas com centralidade nas mulheres, dando o devido destaque aos recortes de raça, classe e território.
Denunciar o feminicídio, enfrentar o colapso ambiental e combater o avanço das transnacionais são partes de uma mesma luta: a defesa da vida contra o lucro. O feminismo popular é a única resposta realista e radical para a crise civilizatória que vivemos.
Texto escrito em abril/2025 – dados atualizados em Dezembro/2025
Drika Cordonet é historiadora, militante da Marcha Mundial das Mulheres do Rio Grande do Sul/RS e integrante da RESF Nacional (Rede de Economia Solidária Feminista)