Estudando e convivendo com pessoas que retiravam seu sustento dos Manguezais recifenses, Josué de Castro empregou, em seu livro Homens e caranguejos, o termo Sociedade dos Mangues para definir a relação que a mesma estabelecia com tal ecossistema. Para Josué de Castro, a Sociedade dos Mangues encontrava-se esmagada pela histórica estrutura agrária, seus impactos negativos e pelo crescimento urbano excludente do Recife, que atirou para os Manguezais várias famílias da classe trabalhadora e empurrou a cidade (avenidas, ruas, moradas, industrias e seus resíduos) sobre os Manguezais. Assim, a Região Metropolitana do Grande Recife forjou-se dando as costas para os Mangues, para seus trabalhadores e trabalhadoras, suas potencialidades sustentáveis, sua Civilização do Mangue.
CRISTIANO RAMALHO
Cabe frisar que, no passado, a pesca nos Manguezais era a base de sustento de populações indígenas e, depois, de homens brancos pobres e negros escravos de aluguel e/ou alforriados que habitavam o litoral pernambucano, principalmente devido à pluralidade de recursos encontradas no mencionado ecossistema e a forte demanda por peixes exigida pela crescente população de fé católica nos engenhos e centros urbanos, fato comum a diversos estados brasileiros no período colonial. Em comunhão com os Mangues, os trabalhadores pesqueiros construíram uma série de saberes capazes de entender o ritmo das marés, épocas de pescados, importância do ciclo lunar, fabrico de tecnologias apropriadas, uso medicinal da flora e outros, integrando-se de modo sustentável e fazendo do Mangue não só um patrimônio natural e paisagístico, mas um chão de construção econômica e sociocultural de uma fração da classe trabalhadora. Hoje, os pescadores artesanais são portadores desses saberes e de suas potencialidades de gestão sustentável, que ultrapassam, no mínimo, mais de 500 anos de história. Ou seja, quando olhamos os Mangues temos que compreender que eles, junto com sua fauna e flora, também representam uma rica vida sócio-cultural, que emergiu de suas possibilidades de humanização e que, por isso, não se opõe à sua preservação. Os pescadores artesanais do passado (índios, escravos de aluguel, homens livres) e do presente produziram uma verdadeira Sociedade do Mangue traduzida em formas de sociabilidades valorizadoras do ambiente e que são viáveis economicamente. Atualmente, existe com pífio apoio governamental no Brasil, quando comparado à pesca industrial e à criação de camarão (os agronegócios do mundo pesqueiro), cerca de 400.000 homens e mulheres pescando artesanalmente em águas nacionais. Ademais, há varias pessoas vinculadas ao setor de bares, restaurantes, comerciantes, atravessadores e outros, que sobrevivem do capital gerado a partir dos produtos da pesca artesanal e que fogem as estimativas oficiais.
Há ainda – mesmo com a construção da SEAP (Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca) pelo Governo Lula – uma dívida histórica do Estado brasileiro e da sociedade para com os pescadores e pescadoras (pescadeiras em algumas localidades) artesanais, porque os mesmos, dentre outras questões, conseguiram preservar os Manguezais – em mais de 5 séculos – e permitiram, como isso, que todos se beneficiassem das características deste ecossistema (farta biodiversidade, berçário de incontáveis espécies, reciclagem de dejetos, local de produção de biomassa, valor estético e turístico, proteção contra a invasão do mar, produção de alimentos ricos em proteínas para a população local e etc). Todavia, alguns técnicos e políticos (uns até de esquerda), continuam negando o potencial da pesca artesanal, ora pelo negligenciamento sistemático, ora buscando vinculá-la ao atraso, para justificar a ineficácia de grandes investimentos públicos para o setor. Para eles, o fundamental é que os Mangues, estuários, assumam o tamanho (diminuto) definido pelo lucro fácil e rápido e/ou pelos programas insustentáveis de crescimento econômico. Por isso, reforçam a ideologia de apoio a outros empreendimentos que consideram mais “modernos” e representativos economicamente, encarando o trabalho da pesca artesanal e sua relação com os Manguezais como um empecilho a ser vencido, um mundo passado que insistiu em sobreviver. Também, por outro lado, existem concepções românticas e bucólicas de compreensão do modo de vida dos pescadores e pescadoras artesanais, vendo nele quase um quadro impressionista ou, quando muito, um sujeito a-histórico, cujo efeito analítico disso é o empobrecimento do olhar sobre o trabalho e cotidiano desses homens e mulheres.
Não nego que haja, em alguns contextos, ação predatória desenvolvida por pescadores e pescadoras sobre o meio ambiente, porém isso se deve mais à situação de aumento da exploração e miséria, as quais estes(as) trabalhadores(as) estão submetidos(as), do que ao seu modo de vida; elemento que difere de alguns empreendimentos econômicos, que por essência já ameaçam os Manguezais. Durante décadas, usinas de açúcar e diversas industrias foram as principais responsáveis pelos impactos negativos sobre o estuário, fato denunciado por estudiosos de diversas concepções teóricas como Gilberto Freyre e Manuel Correia de Andrade. Atualmente, oriunda da Revolução Azul, as Fazendas de Camarão (carcinocultura) transformaram-se na nova vedete do velho discurso da modernização conservadora. Tais Fazendas já angariam grandes aportes de dinheiro público (recebido do BNB e BNDES), concentram renda (grandes empresas), geram poucos empregos e só distribuem mais eficientemente seus negativos impactos ambientais, distintamente do que acontece com a pesca artesanal que distribui melhor seus resultados socioeconômico e ecológico para a sociedade, ou seja, a pesca artesanal pode ser uma forte aliada de políticas voltadas à concretização da Economia Solidária em nosso País.
A carcinocultura pode ser nova nos Estados Nordestinos, porém trás um rastro de destruição de Mangues e depredação de estuário em incontáveis países, que não devem ser esquecidas, como mostra sua história nos Continentes Asiático e na América Latina (só na Tailândia 100.000 hectares de Mangue deram lugar a viveiros de camarão e 20% dos Manguezais equatorianos sumiram por causa de tais Fazendas, por exemplo). Apesar disso, para a instalação das Fazendas de Camarão, não foram efetivados Relatórios de Impactos Ambientais. Mesmo que alguns viveiros não estejam diretamente sobre os Manguezais, eles continuam inseridos no ecossistema estuarino do qual o Mangue faz parte; e já existe diminuição inegável de Manguezais – por causa desses empreendimentos – e inúmeros conflitos com pescadores e pescadeiras, devido à privatização de espaços antes públicos (de uso comum), despejos em estuários dos resíduos poluentes (rações, remédios para combater pragas e outros) advindos dos viveiros, quebra da beleza natural (fato negativo também ao turismo), perda da biodiversidade em favor do monocultivo do camarão para exportação. Nos termos em que está posta, a carcinocultura tem que ser repensada, pois ele poderia oferecer outra contribuição e não esta, que condena, inclusive, alternativas de concretização da segurança alimentar e da justiça social.
Por fim, cabe frisar que a condenação dos Manguezais ao desaparecimento é a condenação econômica de homens e mulheres, dos seus saberes históricos e sócio-culturais capazes de promover a sustentabilidade de estuários, rios, mares, Mangues, e a diminuição da beleza natural de nossa região costeira e da produção de ricos alimentos; como também a condenação ao desaparecimento dos pescadores e pescadoras, da Civilização do Mangue, significa negar, ao mesmo tempo, a construção de um modelo de desenvolvimento em bases mais justas e sustentáveis para o Brasil e seus Manguezais.
Cristiano Ramalho é Doutorando em Ciências Sociais (Unicamp) e autor do livro “Ah, esse povo do mar!”: um estudo sobre trabalho e pertencimento na pesca artesanal pernambucana. São Paulo, Editora Polis; Campinas, SP, Ceres, 2006. E-mail: cramalho@unicamp.br
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