As alterações da conjuntura econômica vêm exigindo um esforço de compreensão da própria dinâmica econômica e dos debates que a acompanham. Nessa entrevista, Mauro Borges Lemos, professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais e Secretário-executivo da ANPEC (Associação Nacional dos Centros de Pós Graduação em Economia), analisa os diferentes campos de interpretação neste momento.
Entrevista Mauro Borges Lemos
Os dados dos últimos meses indicam uma retomada razoavelmente forte do crescimento da economia brasileira. Como os vários campos de interpretação dos economistas têm lidado com essa alteração da dinâmica da economia brasileira no período mais recente?
A primeira questão relevante é até que ponto essa política seria, em suas linhas gerais, de continuidade à política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. Desde o segundo mandato de FHC, tem sido praticada uma política monetária muito forte, com um papel de âncora na estabilidade da economia brasileira.
Os resultados recentes dos indicadores da economia recolocaram a pergunta se de fato a política é de continuidade ou se ela tem elementos que colocam a questão da sustentabilidade de longo prazo do crescimento econômico. Existe uma corrente de esquerda no debate, já estabelecida dentro do PT, que não visualiza diferenciação entre a atual política econômica do governo Lula e a anterior.
A constatação parte de dois elementos. O primeiro, de que o crescimento econômico desse ano é de curto fôlego, em função principalmente do grande déficit público da economia brasileira. De outro lado, vê continuar uma política monetária muito forte, em função desse diagnóstico do déficit público e da questão da vulnerabilidade externa. Esses dois elementos, segundo essa visão, continuam como os aspectos fundamentais no sentido da continuidade.
Indica-se ainda a continuidade da visão liberal, em que o papel regulador do Estado se restringiria à política econômica de curto prazo – monetária, fiscal e cambial – e à função reguladora de mercados ineficientes ou imperfeitos (fundamentalmente por meio de agências reguladoras), nos setores em que atuavam, anteriormente, as empresas estatais.
E as outras visões?
Há uma segunda visão que entende que a política econômica atual abre brechas no sentido de maior intervenção do Estado, configurando-se como liberal-desenvolvimentista. Nesse sentido, a postura reguladora do Estado estaria modificada em relação à política econômica anterior. Esse aumento da participação do Estado estaria presente em alguns instrumentos antes ausentes e que hoje o governo tem dado ênfase.
Um instrumento importante seria a política industrial e tecnológica. Hoje diversos membros do governo, inclusive do Ministério da Fazenda, têm publicamente defendido a necessidade de uma política nessa linha. Nesse sentido, da própria existência de uma política industrial e tecnológica (apesar de diferenciações do que ela pode vir a ser), há uma diferenciação da visão do governo anterior, em que o ministro Pedro Malan dizia que “a melhor política industrial é a ausência da política industrial”.
As alterações da conjuntura econômica vêm exigindo um esforço de compreensão da própria dinâmica econômica e dos debates que a acompanham. Nessa entrevista, Mauro Borges Lemos, professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais e Secretário-executivo da ANPEC (Associação Nacional dos Centros de Pós Graduação em Economia), analisa os diferentes campos de interpretação neste momento.
Entrevista Mauro Borges Lemos
Que outros setores você acha que são em favor dessas mudanças, de um papel mais protagonista do Estado?
Aparece aí um terceiro viés, que se diferencia da segunda visão. Para esses, a função reguladora do Estado seria mais forte, no intuito de regular a estratégia de investimento de longo prazo da economia brasileira. A maior diferença entre as duas visões está na forma de pensar uma política industrial e tecnológica. Na segunda visão, ela seria uma política subsidiária do ponto de vista do crescimento de longo prazo. Já nesse terceiro viés, a política industrial e tecnológica é o principal instrumento de retomada de um esforço de substituição de importações no Brasil.
Há um diagnóstico, nessa terceira visão, de que o processo de industrialização brasileiro, pelas suas características periféricas, tem grandes estrangulamentos. Eles repercutiriam sobre o desempenho de curto prazo da economia, particularmente na questão da vulnerabilidade externa. Assim, uma retomada de longo prazo da economia só seria possível havendo uma política industrial não passiva e subsidiária à dinâmica dada pela regulação do mercado, mas que definisse os grandes parâmetros dos investimentos de longo prazo da economia no sentido de superação desses gargalos.
Toda a questão da infra-estrutura não seria afeta apenas à regulação das regras do jogo – por exemplo para o mercado atuar e investir no setor –, mas ela daria as grandes linhas de prioridades de investimento de longo prazo na economia. A iniciativa do setor público estaria articulada com as iniciativas do setor privado, mas tendo uma estratégia de longo prazo claramente definida.
Há uma diferença importante aí, em como pensar o financiamento e a industrialização da economia brasileira nos tempos atuais. Esse diagnóstico tem importantes diferenciações dentro do governo e esse é o debate mais importante a se travar. A pura e simples crítica da política econômica atual como uma política de continuidade é insuficiente no sentido de delimitar claramente os pontos de divergências mais importantes que estão na mesa de decisões do governo federal.
Nessa polêmica entre correntes liberal-desenvolvimentistas e nacional-desenvolvimentistas, como ficam as questões relativas à distribuição da renda?
Existe a questão da solução emergencial, que já vem sendo contemplada pelo governo, inicialmente coberta pelo Programa Fome Zero. O programa se transformou no Bolsa Família, e um desenho mais aprimorado dele, como tem apontado o Ministério do Desenvolvimento Social, poderia contemplar situações extremas de pobreza absoluta no Brasil, ainda que evidentemente não altere o padrão de distribuição de renda da sociedade.
O segundo ponto são as reformas estruturais não colocadas pelo pensamento econômico liberal, que afetam diretamente a questão da distribuição de renda. Uma das principais seria a reforma agrária, que pode adquirir uma natureza massiva, atingindo uma boa parte do território nacional. Apesar do grande êxodo rural vivido pelo Brasil, nos anos 60 e 70 especialmente, existe um grande contingente de trabalhadores rurais sem terra, produto de várias formas de desenvolvimento do capitalismo no campo. Há espaço para uma reforma agrária de grande envergadura, e hoje a postura do governo federal em relação a isso é positiva.
Um segundo tipo de reforma poderia ser descrito genericamente como reforma urbana, para viabilizar o acesso à terra urbana e habitação. Ela atinge um grande contingente de trabalhadores que estão em situação de subemprego ou desemprego, praticamente aglomerados em vilas e favelas onde há grandes bolsões de pobreza absoluta.
Esses seriam os dois eixos principais para uma alteração estrutural da distribuição de renda no Brasil, evidentemente ligados a uma política de crescimento de longo prazo, que viabilize o aumento da taxa de emprego na economia. Particularmente aí o aumento do emprego formal, em detrimento da informalidade, que hoje representa mais de 50% da população economicamente ativa no país.
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