ó a luta política salva
A visão da Articulação de Esquerda sobre o momento político.
Valter Pomar*
O rompimento do PSTU com a Central Única dos Trabalhadores, a criação do PSOL e o anúncio de uma frente parlamentar supra-partidária em prol de outra política econômica são alguns sinais, dentre outros, de que a chegada do PT ao governo federal abriu um período de dispersão na esquerda brasileira.
Entre os que protagonizam tais movimentos, há diferentes programas e estratégias. Mas todos parecem coincidir na idéia de que a disputa pelos rumos do governo Lula, bem como a disputa pelos rumos do PT, é batalha perdida. Tratar-se-ia, portanto, de reorganizar ideológica, programática e politicamente a esquerda.
Apogeu e crise
Esta tese é desenvolvida, de maneira bastante didática, pelo texto Refundar a esquerda para refundar o Brasil. Segundo tal documento, elaborado por participantes da chamada Consulta Popular, “um ciclo na existência da esquerda brasileira está chegando ao fim. Podemos chamá-lo de ‘ciclo PT’. Cada vez menos militantes acreditam que esse partido ainda possa representar a vontade de mudar o nosso país. Entre o povo, embora de forma desigual, generaliza-se a mesma percepção”.
Mais exato seria dizer que ainda vivemos um momento de apogeu e crise do PT. Apogeu porque nunca, na história do Brasil, um partido de esquerda conseguiu tanta representatividade social e espaço institucional. Crise, em grande medida, porque este fortalecimento está combinado com um retrocesso generalizado nas condições de vida da classe trabalhadora brasileira.
O apogeu e a crise podem ser ante-sala tanto do declínio, quanto de uma mudança qualitativa do Partido. Alternativas que dependerão da manutenção ou do rompimento dos vínculos ainda profundos que ligam o PT à classe trabalhadora brasileira.
Embora seja verdade que há muito desencanto, também é verdade que a maioria dos militantes de esquerda existentes no Brasil ainda cerra fileiras em torno do PT; além disso, a maioria dos trabalhadores conscientes provavelmente votará no Partido dos Trabalhadores, em 2004 e 2006. Em qualquer caso, é óbvio que o declínio de um partido com raízes profundas na sociedade, na política e na história pode durar décadas.
Vinculado à esquerda
Claro que o PT poderia, em tese, romper seus vínculos com os trabalhadores e continuar existindo. Mas para isso seria necessário muito mais do que “oportunismo, burocratização, pragmatismo, corrupção ou adesão doutrinária a um neoliberalismo radical”. Seria preciso que um setor importante da burguesia adotasse o Partido dos Trabalhadores como um de seus representantes orgânicos.
Não basta que setores do PT queiram se transformar em “partido tradicional, integrado política e moralmente à ordem em vigor”; seria preciso, ainda, combinar com a burguesia para que integre a maior parte do Partido, não apenas alguns de seus membros. Ou, para usar os termos de um ex-petista, seria preciso que a base do Partido fosse majoritariamente composta por ornitorrincos, transformando o PT num partido socialmente “pequeno-burguês” e politicamente a serviço da classe dominante.
Acontece que o PT só tem “serventia” para setores da classe dominante se ele for capaz de canalizar política e eleitoralmente os interesses dos trabalhadores. Mas a capacidade do PT fazer isto é progressivamente corroída pela política econômica do governo federal, que arranca palmas do capital financeiro, fortes ressalvas do capital industrial e irritação das camadas populares.
Noutras palavras, o PT só “continuará a existir no espectro da política institucional”, se continuar vinculado, de uma forma ou de outra, aos interesses da esquerda, mesmo que seja uma esquerda social-democrata, defensora de uma aliança com setores do grande capital. Aliás, movimentos recentes do setor “desenvolvimentista” do Partido mostram que esta aliança pode ser revitalizada.
Recuperar o socialismo
Principalmente neste caso, o PT pode vir a cumprir, no cenário político brasileiro, um papel semelhante ao do Partido Trabalhista Britânico, ao Partido Socialista Francês ou ao Partido Social-Democrata Alemão. Forte o suficiente para retardar o surgimento de outra alternativa socialista de massas, moderado o suficiente para conter a radicalização dos trabalhadores.
Esta é uma das dificuldades que serão enfrentadas por quem pretenda “refundar a esquerda”: haverá muita competição, tanto por parte da ultra, quanto do próprio Partido dos Trabalhadores que, ocorra o que ocorrer, continuará por muito tempo ocupando um lugar à esquerda na política nacional.
Isso nos remete a uma segunda questão: achamos que a principal tarefa dos socialistas não é “refundar a esquerda”, mas sim recuperar a influência do socialismo entre os trabalhadores brasileiros.
Para isso, será preciso fazer uma crítica profunda das posições – nacionalistas, desenvolvimentistas, reformistas, social-democratas –, que são hegemônicas na esquerda brasileira, inclusive em parte dos que criticam o próprio PT. Trata-se, por exemplo, de mostrar que a “estratégia” institucional e a ênfase acrítica na “retomada do crescimento econômico” são sub-produtos da rendição a teses pró-capitalistas e anti-socialistas.
Estratégias para intervir
Nesse particular, o documento “Refundar a esquerda para refundar o Brasil” comete os mesmos equívocos do livro A opção brasileira. Dizer que vivemos uma crise “de destino” e apontar, como objetivos centrais, constituir um “povo de cidadãos” e “refundar o Brasil” não ajuda, em nossa opinião, a esquerda socialista brasileira a sair do pântano ideológico e teórico em que estamos, majoritariamente, metidos.
Tampouco ajuda subestimar a capacidade das elites brasileiras, elites que continuam se mostrando capazes de “organizar a vida da nação e propor a ela um projeto”, “projeto” capitalista cujo preço social é pago cotidianamente pela maioria do povo. A conversão experimentada pelo PT, nos últimos anos, é uma prova a mais da capacidade e dos meios variados que a burguesia possui, de manter sua hegemonia sobre a sociedade brasileira.
Isso nos remete a uma terceira questão: a política. O documento “Refundar a esquerda para refundar o Brasil” tem o mérito de apontar que “a decisão de concentrar (…) forças apenas nos movimentos sociais, abandonando a problemática especificamente política, teria o mesmo efeito de uma omissão”.
Ocorre que a problemática “especificamente política” não se reduz ao necessário exercício de elaborar, teoricamente, um programa e uma estratégia. É preciso intervir na luta política, na luta de classes real, existente na sociedade, aqui e agora.
Isso significa tomar posição frente a questões corriqueiras, como em quem votar nas eleições de 2004; e outras nem tanto, como qual a política que devemos adotar frente ao governo Lula.
Questão de estratégia
Nesse sentido, o problema principal do PSOL não é estar “um passo atrás em relação às formulações originais do PT”; o problema principal do PSOL (e do PSTU) é de estratégia: ambos acham ser possível, no atual período histórico, derrotar ao mesmo tempo o governo Lula e a direita tradicional.
Pelos mesmos motivos, não basta criticar os limites da esquerda petista. É preciso reconhecer que a disputa que esta esquerda trava, limitada ou não, é imprescindível, ao menos para quem acredita que a derrota do governo Lula reforçará brutalmente a direita tradicional.
Apesar dessas e de outras divergências, saudamos com entusiasmo a disposição expressa pela Consulta Popular, pelo menos dos autores do documento, em constituir uma “organização política”, superando a “postura politicamente passiva e (a) incapacidade de encontrar caminhos estratégicos (que) conduziram a Consulta até a virtual paralisia na maioria dos estados”.
A disposição de construir “um instrumento político novo”, “um instrumento político que seja radical, pois a crise brasileira exige soluções radicais, sem ser sectário, de modo a conter dentro de si a diversidade, a generosidade, a espiritualidade e a alegria do povo, condição para ser parte dele” mostra o vigor de uma antiga idéia: a de que não há saída para a classe trabalhadora fora da luta e da organização política. Motivo pelo qual seguimos disputando, enquanto for possível, os rumos do PT e do governo Lula.
*Valter Pomar é Terceiro-vice presidente nacional do PT.
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