A sociedade brasileira vivencia no último período o mais ofensivo ataque à liberdade e autonomia das mulheres, minimamente conquistadas, orquestrado nos bastidores pelas forças conservadoras alinhadas. O avanço rumo à aprovação do chamado “Estatuto do Nascituro”, deve ser visto como uma franca ameaça aos mais caros direitos das mulheres.
Sirlanda Selau, Analine Specht e Cláudia Prates *
Nele, estão reunidas as pautas mais retrogradas e de submissão, ostentadas pelo patriarcado e as instituições que o perpetuam, ao longo dos séculos: controle sobre o corpo das mulheres, a institucionalização da violência sexual, o domínio ainda mais amplo sobre o destino da vida das mulheres. Pautas, novamente travestidas de um discurso “pró-vida”. Esse mesmo discurso repetido à exaustão para pressionar a retirada da pauta da descriminalização e legalização do aborto do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), deslegitimando o processo democrático e amplo de diálogo que o construiu. As contradições de um Estado que se propõe laico se manifestam cada vez mais complexas e profundas. De um lado se promovem ações afirmativas através das políticas públicas e da ampliação e garantia dos direitos das mulheres. De outro se inviabiliza e restringe os direitos às mulheres, de forma punitiva e de forte caráter medieval capitaneadas pela igreja. Passivamente as instituições do governo federal se colocam na condição de meras expectadoras frente aos retrocessos históricos em curso.
Trata-se então de um reforço na ofensiva conservadora e fundamentalista, que usa como cortina de fumaça uma pseudo-proteção a uma pretensão do que pode se tornar vida humana. Tudo isso para atingir o cerne da contraposição entre as mulheres e o patriarcado, qual seja: a autonomia delas perante o que lhes pertence.
Dito de outra forma, o Estatuto do Nascituro, é a mais recente forma, pela qual se busca legitimar a barbárie que ameaça a vida, a segurança e as expectativas das mulheres brasileiras. E é também uma afronta a democracia, a liberdade, e a garantia constitucional de um Estado laico, que seja promotor da igualdade, desta feita, atingindo conquistas de toda a humanidade.
Através dele, pretende-se estabelecer a vedação irrestrita ao aborto. Mesmo aquelas formas, já permitidas, como em decorrência de estupro; ou quanto ao aborto terapêutico e em casos de anencefalia, situações estas últimas, que não possuem jurisprudência consolidada, isto é, existem decisões do judiciário divergentes em relação ao tema. Mas os absurdos e a hipocrisia não param por aí! Querem através desta legislação, institucionalizar e legalizar, a violência sexual, especialmente aquela aplicada contra as mulheres através do estupro. Tornando inadmissível o aborto oriundo desta violação e instituindo o pagamento de auxilio para sustentação do nascido desta violência, a chamada “bolsa estupro”. Desta forma, a punibilidade do estupro, recairá sobre a própria mulher, obrigada a gestar o fruto de uma violência sexual que jamais será esquecida, quando é sabido que na maioria das vezes o estuprador não é punido ou não cumpre sua condenação. Sem contar que o texto abre brecha para a proibição, inclusive, de algumas medidas contraceptivas, como a pílula do dia seguinte.
Afora a hipocrisia, o que se destaca é a empáfia do legislador, em querer determinar quando começa a vida, fato que nem a ciência ousou ainda determinar. Caindo assim, em uma descabida incongruência legislativa, em querer proteger o que nem a ciência jurídica situa no campo do direito subjetivo. Ademais, ao analisar outros dispositivos desta proposta cai por terra o discurso de “proteção da vida”, pois não se vê nada além do que já tratam as legislações vigentes, sobre direitos de personalidade, direito a saúde e patrimônio dos recém nascidos.
Pesquisa recente realizada pelo IBGE, publicada pela Folha de São Paulo mostrou quem são as mulheres que recorre ao aborto. Que pode ser uma mulher comum – uma de nós. Geralmente tem companheiro, tem filhos e segue uma religião e pelo menos a metade precisou ficar internada por complicações. Segundo o Ministério da Saúde, o aborto inseguro é a terceira e quarta causas de mortalidade materna. Não olhar para isto sim é um crime!
Entendemos que a proposta do “Estatuto do nascituro” deve ser rechaçada, pois ela significa mais um dos ataques dos conservadores, machistas e opressores para condenar ainda mais, as mulheres a submissão, mantendo-as expostas a insegurança, a violência e a ameaça a sua vida e suas expectativas. Este é mais um momento de cabal hipocrisia da estrutura legislativa do país, que se omite em tratar do aborto, como uma questão indispensável para a preservação da vida das mulheres, e de garantia da sua autonomia como direito fundamental.
Esta iniciativa não pode ser admitida, sob pena, de estarmos aprovando a efetivação de um golpe contra a democracia, o ideal de igualdade e justiça, atingindo os bens e valores mais caros conquistados pela humanidade ao longo dos tempos.
Precisamos de ações afirmativas e de políticas públicas para as mulheres, que avancem na luta contra a mortalidade das mulheres e não o que se vê – dez passos atrás e o aumento da criminalização das mulheres.
Mas se queremos mudar de fato, este ano em que teremos eleições para a renovação do legislativo estadual e federal, será fundamental que façamos uma campanha nacional contra os (as) parlamentares que tem, cotidianamente, se voltado contra os direitos das mulheres, e mais, aprovando leis que ferem nosso direito fundamental de autonomia plena.
Marcharemos até que todas sejamos livres!
* Sirlanda Selau, Analine Specht e Cláudia Prates são militantes da Marcha Mundial das Mulheres no Rio Grande do Sul.
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