Pronunciamento de Raul Pont na Assembléia Legislativa do RS (15/02/12)
Há 32 anos, no memorável 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em São Paulo, delegações de 17 estados brasileiros fundaram o Partido dos Trabalhadores. Por ironia da história, o aristocrático bairro de Higienópolis serviu de berço para a nova vanguarda do movimento sindical dos anos 70 liderar a formação de um partido classista no país.
Nascemos numa conjuntura de declínio e crise do regime militar de 1964. O autoritarismo da ditadura e seu sistema político bipartidário imposto não mais suportavam o rápido desenvolvimento industrial e os novos atores sociais que o crescimento econômico do “milagre brasileiro” produzira.
O PT foi uma expressão política daquele momento histórico do Brasil. Crescemos no bojo das grandes greves do final dos anos 70 no ABCD e em várias capitais, sob a liderança dos principais dirigentes sindicais que as lutas sociais produziram no período.
A singularidade histórica daquele momento foi a conjunção de uma profunda crise de dominação do regime militar, com um ascenso dos movimentos sociais, em especial o sindical, e a reorganização partidária para superar a falência representativa do bipartidarismo consentido desde 1965.
Desde os primeiros passos do Movimento Pró-PT em 1978, soubemos integrar nessa construção os mais expressivos líderes sindicais e a maior parte dos grupos e personalidades da esquerda marxista que nos anos 60 romperam com o populismo trabalhista e com as concepções predominantes da esquerda do país. Sabíamos que a heterogênea frente de resistência democrática em torno do MDB encerrava seu ciclo. A conquista da reorganização partidária exigia a ousadia de um partido classista e socialista.
A luta pela organização partidária independente dos trabalhadores, herança das tentativas buscadas desde as primeiras décadas do século, tornou-se realidade pelo amadurecimento capitalista no Brasil e o surgimento de uma nova vanguarda ancorada nas experiências e avanços teóricos programáticos desenvolvidos a partir dos anos 60 por setores da esquerda brasileira.
Apesar do golpe de 64 e a traumática conseqüência para o campo popular, a esquerda na segunda metade da década produziu uma profunda reinterpretação da história do País, de sua formação socioeconômica e do comportamento das classes sociais e dos partidos.
A presença de uma nova geração de lideranças sindicais, crítica à estrutura sindical atrelada ao Estado que vinha do autoritarismo populista de Getúlio Vargas, encontrou respaldo numa nova geração de socialistas, que se forjou na resistência do regime militar, na crítica ao reformismo e nas lutas estudantis dos anos 60 e 70. À nova vanguarda, aderiram amplos setores do movimento eclesial de base da Igreja progressista. Essa origem tornou o PT inédito, entre outras experiências na esquerda internacional.
O PT nasceu das lutas sociais daquela conjuntura e soube fazer a fusão de vertentes sociais que vinham do sindicalismo combativo, da resistência dos grupos de esquerda e dos movimentos comunitários urbanos. Não nascemos dentro do Congresso – como a lei previa e possibilitava facilidades – mas da base, da livre organização dos movimentos sociais que enfrentavam o regime militar mas não se sentiam representados nos partidos de elite e nas tradicionais conciliações das classes dominantes brasileiras.
A presença de figuras históricas e simbólicas na fundação do Partido (Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Apolônio de Carvalho, Manuel da Conceição, Hermínio Sachetta, Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros) lembrava às novas gerações de sindicalistas (Jacó Bittar, Henos Amorina, José Ibrahim, Lula, Olívo Dutra, Paulo Skromov, Wagner Benevides e outros), e de jovens socialistas e cristãos progressistas que retomávamos, também, fortes tradições das lutas revolucionárias e anti-stalinistas da esquerda no Brasil.
No 1º Congresso, em 1991, o direito de tendência foi reafirmado, com a adoção de proporcionalidade nas direções executivas, conforme aprovado no VII Encontro e com a regulamentação das correntes no interior do Partido. O 1º Congresso marcou a grande vitória alcançada pelas companheiras mulheres que garantiram um mínimo de 30% em todas as instâncias diretivas do partido.
Essa concepção democrática plural, que não é contraditória com a unidade partidária, constituiu-se na nossa maior virtude orgânica e o nosso principal patrimônio político. A experiência que garantiu a unidade e o crescimento ao longo destes 32 anos de existência. Esta democracia interna nos possibilita corrigir ou mudar rumos da nossa própria prática e experiência vivida nos parlamentos, nas administrações e nas políticas públicas que desenvolvemos na sociedade.
Inauguramos uma nova prática e uma nova ética na política brasileira: controle dos eleitos pelo Partido, para evitar tentações da burocratização e dos privilégios; bancadas sintonizadas com o Partido e com os compromissos com os eleitores, através da voluntária adoção da fidelidade partidária, democraticamente construída; e uma ação parlamentar e administrativa que coíbem privilégios, vantagens pessoais e a histórica visão patrimonialista que os políticos brasileiros tem do Estado e dos bens públicos.
O PT contribuiu, igualmente, para estimular e organizar a ação independente dos movimentos sociais. A construção da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 1983 constituiu-se numa referência na ruptura do sindicalismo de Estado praticado no Brasil desde o Estado Novo (1937/45)
Ao longo destes 32 anos estivemos na vanguarda das grandes jornadas nacionais como a luta pela Anistia, pelas Eleições Diretas, pela convocação de uma verdadeira Assembleia Nacional Constituinte soberana e exclusiva e no impedimento de Collor de Mello em 1992.
No Rio Grande do Sul, governamos por 16 anos a prefeitura de Porto Alegre (1989/2004), onde construímos uma nova experiência de gestão pública que vai além da democracia representativa. Mostramos através do Orçamento Participativo e dos variados instrumentos de democracia participativa, que a população, quando tem o poder de decisão, aprova mais e melhores serviços públicos.
Provamos que autarquias e empresas públicas são superavitárias quando administradas sem corrupção, com transparência e controle democrático da população. E também que são possíveis novas políticas educacionais, manter públicos e gratuitos os serviços de saúde, inovar e ser criativo na política de habitação social como um direito de cidadania.
Em 1998, chegamos ao Governo do Estado, pela primeira vez, com Olívio Dutra e a Frente Popular. Na primeira gestão do PT , apesar das dificuldades impostas pelo cenário federal e da conjuntura internacional adversa, o Rio Grande do Sul foi o estado brasileiro com maior crescimento industrial. Além disso conseguiu avançar na educação, saúde, transportes, turismo, segurança pública e bem-estar da população, com participação popular, através do Orçamento Participativo, dos conselhos setoriais e dos movimentos sociais, e sem vender patrimônio público.
Em janeiro de 2001, vivemos em Porto Alegre um salto de qualidade nesse processo. Para se contrapor ao 31º Fórum Econômico Mundial, em Davos, um conjunto de instituições e movimentos convocou para a capital gaúcha o 1º Fórum Social Mundial. Atividade que se tornou exemplo na luta contra o neoliberalismo e que ocorreu por cinco vezes na cidade.
Foram essas experiências e seu efeito demonstração – a trajetória singular de mais de três décadas de uma nova forma de fazer política com democracia, participação popular, transparência administrativa – que garantiram a identidade política para alcançar o Palácio do Planalto. É bom recordar que esse processo ocorreu exatamente na contramão da hegemonia mundial do neoliberalismo. Ao longo dessas décadas por mais que avançasse o neoliberalismo no mundo e no Brasil, o PT resistia e continuava crescendo.
Em 2002, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidente inauguramos um novo período histórico no país, de inclusão social, desenvolvimento econômico e soberania nacional como nunca tivemos em nossa história. Esta experiência recente comprovou que o investimento social, a distribuição de renda e o crescimento são caminhos para solução dos problemas estruturais.
Em 2010, reelegemos nosso projeto nacional com a eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher presidenta do Brasil. A eleição da companheira Dilma corresponde ao novo período político marcado não só pela superação do neoliberalismo como, sobretudo, pela possibilidade da construção de uma nova hegemonia no Brasil. Com Dilma, queremos construir uma alternativa antagônica à do privilégio e da miséria aviltante. Nossa proposta se baseia nos valores da igualdade social, da inclusão, da democracia participativa e da pluralidade. A defesa desse projeto é questão central e estratégica do nosso partido e define o conjunto das ações governamentais.
No Rio Grande, retomamos o governo do Estado, elegendo Tarso Genro governador. Ao longo dos últimos anos, nosso Estado não vinha conseguindo acompanhar o processo de desenvolvimento com distribuição de renda, propostos pelo Governo Lula. Ademais, este período representou para o Rio Grande, um retrocesso na participação popular e nos princípios de uma gestão pública republicana. Com Tarso no governo do Estado e Dilma na Presidência da República, queremos retomar nossa política de democracia participativa e do OP Estadual, da implantação do Programa Estadual de Economia Solidária, de descentralização e democratização da política cultural, de recuperação da UERGS e ampliação do Ensino Médio e de um projeto de desenvolvimento econômico e social, com distribuição de renda e com base no mercado interno e no papel indutor do Estado.
Recuperação da identidade programática
Passaram-se 32 anos e o PT afirmou-se como um dos grandes partidos do país. Profundamente democrático, com seus organismos de base, com o direito de tendências internas e proporcionalidade de suas representações, com igualdade de gênero em todas as direções partidárias, e a incorporação à política partidária das questões ambientais, do combate ao racismo e na defesa da livre orientação sexual. Estas conquistas foram consolidadas no recente 4º Congresso do Partido, realizado em 2011, em especial a igualdade de gênero nas direções partidárias.
No entanto, não passamos incólumes esses 32 anos. As vantagens e a hegemonia alcançadas pela implantação e o crescimento através das vitórias parlamentares e das experiências administrativas nos desafiam, dialeticamente, com a cooptação e o envolvimento numa teia poderosa de um Estado capitalista que objetivamos transformar.
Sabemos que o crescimento do Partido e a ampliação de seus espaços parlamentares e administrativos tensionam cada vez mais esses princípios e valores. Vivemos, em 2005, após chegar à Presidência da República, nosso maior teste na manutenção de nossa coerência e dos objetivos históricos desses 32 anos de existência. A crise vivida pelo PT no período foi resultado da ruptura com os princípios do Partido e sua história, onde nossas raízes ideológicas e valores socialistas foram diluídos em práticas políticas e alianças partidárias marcadas pelo pragmatismo, pela visão de que os fins justificam os meios. Muitos quadros e dirigentes nessa caminhada foram tragados pelos atalhos imediatistas dos cargos e por interesses pessoais concretos, sempre presentes na permanente disputa político-ideológica numa sociedade de classes.
Mantemos a tarefa de reconstruir o Partido, sua estrutura organizativa, seu programa e suas utopias. Temos convicção e esperança de que nestes 32 anos enraizamos experiências suficientemente fortes para que possamos superar as dificuldades e obstáculos e consolidar nosso projeto de transformação social com a mesma determinação que resistimos à ditadura militar e enfrentamos os duros anos de avalanche neoliberal.
A mesma ousadia que nos deu coragem de existir e construir o PT na adversidade, que construiu ricas experiências de lutas sociais nos impulsiona para novos enfrentamentos. Um programa de transição ao socialismo exige-nos desenvolver, a cada momento, propostas e lutas que signifiquem saltos de qualidade na prática e na consciência de seus protagonistas.
A utopia, a conquista de uma sociedade socialista, que nos impele a continuar lutando, não é e não será fruto de um decreto ou da crença em um momento mágico no futuro. A construção dessa estratégia passa pelas conquistas que sejam compreendidas pelo nível de consciência das pessoas, que as estimulem a lutar e as preparem para novos enfrentamentos.
Democracia e socialismo são indissociáveis. Não há utopia sem alteração na correlação de forças, sem disputa concreta de relações de poder político onde, permanentemente, as classes dominadas façam sua experiência de organização e consciência. Esta se constrói no dia a dia das conquistas parciais, no acúmulo de forças, na construção partidária, na educação política e na confiança de dezenas de milhões de pessoas para quem somos alternativa.
As tarefas centrais do período que se abre com as eleições de 2010 são as de consolidar e aprofundar o crescimento econômico do país, com expansão do emprego e forte distribuição de renda, equilíbrio macroeconômico e redução da vulnerabilidade externa e preservação ambiental.
No centro dessas tarefas está a meta de eliminar pobreza absoluta, objetivo maior para lograr uma efetiva democracia econômica e social. O fortalecimento desta, da qual depende em grande parte a democracia política, passa igualmente pelo aprofundamento de políticas públicas para as áreas da educação, saúde e segurança pública, bem como pela instituição de um novo marco regulatório para as comunicações no Brasil. O país necessita dar continuidade ao fortalecimento de sua infraestrutura física e energética e à implementação de uma política industrial baseada em grande medida na inovação tecnológica. Todos esses fatores, junto com uma acertada política comercial, serão fundamentais para aumentar nossa competitividade externa. A redução do custo do crédito e a reforma do sistema tributário são elementos fundamentais para isso.
O fortalecimento desse novo desenvolvimentismo, que o Brasil vem implementando nos últimos anos, é condição essencial para assegurar nossa presença soberana no mundo, mediante o prosseguimento de uma política externa altiva e ativa que assegure lugar privilegiado para o Brasil e para a América do Sul no mundo multipolar em formação. Cabe ao PT ser a principal base de apoio do Governo Dilma e do Governo Tarso, mas também lhe corresponde a tarefa de servir de elo com a sociedade, especialmente com as demandas dos trabalhadores e dos excluídos.
Cabe, também, ao PT empenhar-se no aprimoramento de nosso sistema democrático, mediante a realização de uma Reforma Política, que é condição necessária para o fortalecimento de democracia e do sistema representativo, bem como para aprofundarmos o desenvolvimento de instrumentos de democracia participativa. Ela é indispensável para a consolidação de um sistema partidário baseado em valores democráticos, republicanos e que consolidem uma soberania popular. A democracia participativa precisa ser uma estratégia central na nossa luta por uma sociedade socialista.
Temos a missão de dar continuidade a esta trajetória militante e combativa. Este é o partido que construímos. Esta é a estratégia que reivindicamos. Esta é a utopia que nos mantém militando.
*Raul Pont é deputado estadual, presidente do PT/RS e militante da DS.
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