No último dia 18 de Novembro, a democracia brasileira logrou uma importante vitória: o veto da Presidenta Dilma Roussef ao financiamento empresarial das campanhas eleitorais foi mantido pelo Congresso, com a votação na Câmara alcançando 190 votos favoráveis a 225 contrários.
Margarida Salomão, Deputada Federal PT-MG
Na ressaca política em que nos encontramos, num quadro em que as vitórias parlamentares das teses progressistas podem contar-se nos dedos de uma das mãos, esta vitória merece ser celebrada. Ela acontece na esteira de importante movimentação da sociedade civil pela diminuição do peso do fator econômico nas eleições: OAB, CNBB, UNE, CUT, dezenas de entidades consolidadas na cena pública brasileira tinham-se manifestado pelo fim do financiamento empresarial das campanhas.
O Senado, mais sensível do que a Câmara a esta mobilização, não hesitou em consagrar a tese. Não bastasse isso, o Supremo Tribunal Federal, ao fim de uma longa deliberação, prolongada desnecessariamente pelo pedido de vistas do Ministro Gilmar Mendes, determinou a inconstitucionalidade do financiamento político pelas empresas.
Mesmo assim, a Câmara insistia na legitimidade e na legalidade das doações de empresas a candidatos e a partidos. Por isso, o veto presidencial, calcado na reconhecida inconstitucionalidade desta prática, é uma importante contribuição para que se possa inaugurar uma outra história nas disputas eleitorais no Brasil. Veto mantido!
Dirão os mal-intencionados que é um absurdo tirar as empresas da jogada e passar a financiar campanhas políticas com recursos públicos, que deveriam ser prioritariamente destinados à saúde, à educação, à segurança, às políticas públicas.
Dois argumentos matam esta afirmação: a primeira é que, com as empresas na jogada, o Parlamento brasileiro hoje bate recordes em distorção da representação: mulheres, negros, indígenas, trabalhadores tem uma presença desproporcionalmente inferior às bancadas empresariais, ruralistas, de lideranças religiosas. O plenário da Câmara é um clube de homens brancos, muitos dos quais jovens rebentos de dinastias tradicionais. Tudo igual como vem sendo nos últimos quinhentos anos. Tudo em desacordo aos recentes processos de mobilidade social no Brasil, que têm como protagonistas negros, mulheres, a nova classe trabalhadora.
O segundo argumento mortal é que os recursos que financiam campanhas já são públicos. Como disse, com a lucidez dos derrotados, um dos criminosos confessos colhidos pelo tsunami da LavaJato, empresa não doa; empresa empresta o que que espera depois receber com sólidos dividendos.
Isso é fato: mesmo sem apelar à hipótese de que toda relação Estadoempresa esteja maculada por corrupção, a empresa faz doações políticas (em regra a todos os principais competidores em uma campanha) para, no mínimo, assegurar depois o privilégio de uma interlocução desembaraçada com o vencedor.
Reforço o termo “privilégio”: o Estado democrático, por definição, deveria cultivar interlocuções equânimes com todas as partes dos processos sociais, sem priorizar nenhuma destas. Ao admitir doações de empresas à política, a sociedade passa a admitir que a destinação de recursos de qualquer natureza ( das concessões de portos ao planejamento urbano, da mineração à telefonia) possam passar por crivo que não o do interesse público exclusivo.
Os lamentáveis fatos revelados semana passada, associadas às prisões de um Senador da República e de um dos mais dinâmicos representantes da nova geração de financistas brasileiros, demonstram, para nossa repugnância, o clima de compadrio, de cumplicidade mafiosa, entre elite política e elite empresarial. Mais do que comprovam a tese desta simbiose maligna.
Claro que nada disso é novo: um monumento da prosa barroca em Português, por séculos atribuída ao Padre Antonio Vieira, mas hoje com autoria corretamente atribuída ao também jesuíta Padre Manuel da Costa, é um opúsculo panfletário do século XVII , A Arte de Furtar (de 1652!) divulgado ainda em vida do rei D. João IV de Portugal. Tratava-se então de enumerar elaboradas maneiras de furtar a Coroa Portuguesa: trata-se hoje de saquear a República Brasileira. As estratégias, como se poderá observar pelo exame desta longa genealogia, não inovam muito.
Afora contestar os mal-intencionados, o diálogo democrático precisa também debater as contrarrazões dos cínicos: dirão estes que o fim da legalidade das doações empresarias vai abrir as comportas para o caixa-dois no financiamento das campanhas.
Não negamos que isso possa acontecer mas uma coisa é certa: a restrição legal (constitucional) às doações empresaria aumenta a vulnerabilidade das campanhas políticas que aparentem ( ou efetivamente pratiquem) gastos acima daqueles que tenham sido legalmente declarados.
Tendo em vista o papel de guardiães da ordem institucional, programaticamente assumido pelo Ministério Público e por setores do Judiciário brasileiro, é fácil prever que os transgressores da legislação eleitoral não terão vida tão fácil. Só o que esperamos é que a investigação dos malfeitos eleitorais obtenha mais equilíbrio e mais imparcialidade do que temos visto até aqui. Ressalvada esta condição, esperamos que Juízes e Promotores plenamente cumpram o seu dever.
Deste modo, o fim do financiamento empresarial é uma importante vitória: na verdade, a única vitória neste funeral de boas ideias que foi a chamada “reforma política”. Concluída sua votação, continuamos com um sistema partidário superfragmentado e irrelevante do ponto de vista da representação organizada da sociedade.
Piada que se soma a piadas, estamos testemunhando agora a emergência de um Partido da Mulher Brasileira, que reúne vasta maioria de deputados homens, nenhum dos quais, no curso de sua trajetória, aparece como defensor de algum ponto especial da pauta feminina…Na verdade, o PMB será apenas mais um ingrediente na nossa própria sopa de letrinhas, preparada para validar aspirações políticas individuais, em acordo com o atual sistema eleitoral que prestigia nomes pessoais em detrimento de posições políticas construídas coletivamente.
Assim é que, sem surpresa, as pesquisas de opiniões revelam que pouquíssimos eleitores brasileiros se lembram do nome do parlamentar em que votaram na última eleição. Verdadeira miséria da representação, realçada pelo preocupante aumento de votos em branco para as eleições legislativas.….
O desprestígio do parlamento, ilustrado pelos números de maciça reprovação obtidos na última pesquisa DATAFOLHA, de 29 de Novembro de 2015, apontam duas possibilidades que, nas duras circunstâncias que enfrentamos, podem oferecer uma esperança mínima.
A primeira é que as eleições de 2016, menos influenciadas pelo poder econômico, abram uma brecha à representaçãoda juventude (não-dinástica), de lideranças femininas, sindicais, populares, um raio de sol democrático na estagnação personalista e despolitizada que ora corresponde aos plenários legislativos.
A segunda é a retomada na próxima legislatura do tema da reforma política, talvez em condições menos ingratas do que a que encontramos na legislatura presente. As mobilizações não partidárias ocorridas nestes dois últimos anos ( das jornadas de junho de 2013 até a primavera das mulheres de 2015, passando pela espetacular ocupação das escolas públicas pelos “secundas” de São Paulo) assinalam o esgotamento do sistema de representação tradicional. Fenômeno que não é apenas brasileiro, mas que no Brasil se casa com a tumultuada vontade de expressão dos sujeitos da mudança vivida neste início do século XXI, a emergência de outras formas de participação aparece como um imperativo.
Apesar das novas modalidades do “ódio à democracia” (Ranciére 2005) que têm encontrado vazão na cena pública, o desígnio democrático de sociedades complexas, como o são as sociedades contemporâneas, desafia a nossa imaginação em favor de uma sociabilidade mais solidária, mais justa, mais livre, mais comprometida com as infinitas possibilidades da construção humana. Em outras palavras, uma sociabilidade socialista
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