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A aventura da emancipação | Luiz Marques

O movimento neofascista ficou mal acostumado, após o impeachment que resultou do conluio entre a mídia corporativa, o Legislativo venal para perpetuar o clássico padrão de mando e obediência a serviço dos poderosos, e o Judiciário servil às inúmeras ilegalidades lavajatistas. Para Jessé Souza, no cordão dos descontentes, “o ataque a todos os tipos de garantias individuais e ao processo legal foi legitimado pelo Tribunal (leia-se a Suprema Corte) que precisaria defender a Constituição”.

O golpe pensado pelo despresidente Jair Bolsonaro, com auxílio do ajudante de ordens e apoio maciço no agronegócio, envolveu oficiais superiores do exército formados na Academia Militar de Agulhas Negras e setores das finanças e do empresariado que enxergam o país como um entreposto comercial das grandes potências. A nobreza rastaquera compartilhou o desapego à democracia e à soberania popular em uma República, dada a atração fatal pelas promessas do laissez-faire e pela desigualdade social como vetor desejável da coletividade. A agenda racista, sexista e homofóbica nos costumes foi o anzol preparado para pescar o medo da mudança de papéis, na família patriarcal.

Imaginou-se que a moda antidemocrática poderia ser substituída pela truculência dos quartéis, aclamada por zumbis. Se Donald Trump tivesse sido reeleito nos Estados Unidos, a empreitada haveria saído do WhatsApp dos conspiradores. Com a aprovação imperial de Joe Biden à vitória de Lula da Silva à Presidência nas urnas eletrônicas, as Forças Armadas frearam a tentação golpista e frustraram os patriotas de festa junina e os muitos advogados da ciranda da Bolsa de Valores. Com o vandalismo das sedes dos três poderes, o apelo ressentido para as multidões irem às ruas não rolou.

Ali, começou a recuperação do sentido da política sob o Estado de direito democrático: um regime capaz de lidar com os conflitos sociais em um ambiente onde os oponentes são vistos na condição de adversários, em vez de inimigos contra os quais se justificaria a eliminação simbólica e física. A lógica obtusa da guerra, empunhada pela extrema direita, foi derrotada pelo habitus parlamentar das negociações de gabinete e por uma modalidade, complementar, de enlace entre os governados e os governantes. Por exemplo, com o Plano PluriAnual Participativo posto em prática pelo governo.

O PPA Participativo contribui para reinventar a ação coletiva, por canalizar as decisões federadas para o orçamento da União. Coisa que pressupõe o debate sobre prioridades estatais, projetos para a construção de uma autêntica nação e a distribuição de recursos para enfrentar os graves problemas. “Isto implica uma radical transformação da relação hoje existente entre a economia e a política”. A primeira deve ser subalterna à segunda. Dito diferente, “a economia deve servir as pessoas e não o contrário”, sublinha Rafael Valim, em Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. A revalorização da política supõe a valorização dos direitos humanos, na acepção ampla. Os mentores do caos dividem os temas, por conceber a democracia como o somatório de procedimentos formais.

Sem consolidar os direitos civis, sociais e políticos é impossível elevar a sociedade democrática até um patamar pós-capitalista, transcendendo as objeções limitadas à política neoliberal e à economia neoliberal. O combate fundamental é à “sociedade neoliberal”, in totum, cujos tentáculos invadem a intimidade e afetam a maneira pela qual cada um se autodefine e se reconhece, a partir da introjeção do léxico oriundo das empresas (produtividade, rentabilidade, desempenho). Não à toa, Margaret Thatcher dizia que a “racionalidade da existência muda a alma e o coração”. Os efeitos sedutores do fetichismo da mercadoria estão contidos, em embrião, no próprio modo de produção econômica.

O totalitarismo é o destino do Consenso de Washington. “Devemos esclarecer que o sistema é tanto mais resistente quanto excede a esfera mercantil e financeira em que reina o capital, produzindo a subjetividade ‘contábil’ pela criação da concorrência sistemática entre os indivíduos”, frisam Pierre Dardot e Christian Laval, em La nouvelle raison du monde – essai sur la société néoliberale. Então, à competitividade urge opor uma solidariedade ativa. À austeridade, mantra da financeirização nas hostes de uma governança pseudomodernizante, cabe propor um Estado de Bem-Estar Social.

Contra-hegemonia

A ditadura dos mercados é o nó da questão. No país, tal ditadura se exprime no boicote do Banco Central controlado por subsidiários do rentismo financeiro, que mantêm os juros estratosféricos (13,75%) para impedir a reindustrialização do parque produtivo brasileiro. O boicote descarado e reiterado não é um sinal de vitalidade dos podres poderes ocultos, senão da fraqueza de um modelo já rejeitado, apesar do assalto ao erário (R$ 300 bilhões) na campanha eleitoral do genocida. “Os juros altos não apenas fizeram a dívida pública crescer como causaram uma crise de crédito que quebrou não apenas as Lojas Americanas como está produzindo recessão e desemprego”, sublinha Luiz Estrella Faria, no artigo “Lula e suas quatro frentes de batalha” (Revista Grifo, jun/jul 2023).

O mérito indiscutível do governo Lula está em evidenciar a crise de governabilidade neoliberal. As medidas implementadas pelo Chicago boy, com privatizações liquidacionistas e terceirizações para legitimar o arrocho salarial, trouxeram de volta a fome, o desalento e a morte. Só beneficiaram os ricos sem empatia com o sofrimento do povo e avessos à realização de um projeto nacional-popular de desenvolvimento. Interpretações economicistas tendem a sequestrar os conteúdos humanitários.

As políticas públicas do governo em curso empoderam o salário mínimo, a aposentadoria; garantem a moradia, a educação da creche à universidade; incrementam a formalização do trabalho, o reforço institucional às lutas pela igualdade de gênero, raça e identidade sexual. Importante: incidem na consciência da população ao estimular no senso comum uma percepção dialética não derrotista. E mais, imunizam a cidadania contra o vírus das fake news nas plataformas digitais e os algoritmos das big techs, que esvaziam o conceito de liberdade por manipular o desejo dos consumidores.

O aparelho estatal com a índole acolhedora do Deus do Segundo Testamento, ao revés do Leviatã guardião de desigualdades reais por trás das aparências, coloca em cena uma pedagogia que dialoga com bandeiras progressistas da conjuntura internacional. A saber: o ambientalismo da jovem ativista Greta Thunberg que negacionistas classificam de “pirralha”, para rechaçar os ideais ecológicos; a resiliência heroica das etnias originárias de matriz indígena e africana ao etnocentrismo europeu; e a luta feminista contra a misoginia e os feminicídios em disparada. No caso concreto, foram 3,9 mil homicídios dolosos (intencionais) ao longo de 2022, um aumento de 2,6% sobre o ano anterior.

Na contracorrente, articulações sociopolíticas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e as experiências de Economia Solidária, além das demandas específicas, propiciam a convivialidade de desalienação entre partícipes, já destacava Paul Singer na década de 1980, na esteira de György Lukács. Iniciativas em prol do comunitarismo presentificam a utopia socialista, em pequena escala. É o que procuram os partidos de esquerda no tratamento intrapartidário, ao romper as barreiras de escolaridade, prestígio ou renda no âmbito da militância. Com a régua do igualitarismo jacobino, antecipam o futuro com predicados universais.

Na tradição gramsciana, a fórmula para entender a construção da hegemonia em um bloco histórico é “Estado + sociedade civil = Estado ampliado”. Quando a sociedade civil constitui uma rede de movimentos sociais e entidades e, pela vontade majoritária, estabelece no Executivo um governo avançado (antineofascista, antineoliberal, antineoconservador) um outro paradigma civilizacional ganha corpo. Vide o Brasil atual. Embora as limitações, uma liderança moral e intelectual contra-hegemônica inicia a reconfiguração das várias dimensões da vida social. Com resíduos culturais de ancestrais que sobreviveram ao colonialismo predatório e extrativista, abre-se um novo horizonte.

Aos poucos, a esperança parece transitar da colônia de exploração para um povoamento, mesmo tardio. Nesta perspectiva, a organização dos trabalhadores constrói a aventura da emancipação ao confrontar o sistema de dominação, na epopeia ideológica que tem a necropolítica, de um lado e, de outro, o exercício da democracia numa “sociedade regulada” (o socialismo). Quem fica, quem vai?

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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