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A confusão no “andar de cima” | Marcio Pochmann

A consolidação do neoliberalismo durante a “Era dos Fernando” (F. Collor, 1990-1992, e F. Cardoso, 1995-2002) resultou de significativa mudança no comando do poder burguês, explicitada pelo deslocamento da dominância do capital industrial para a do financeiro. Foi a consequência direta da adesão submissa do Brasil à globalização, gerada pela diplomacia do dólar valorizado e das altas taxas de juros impostas pelos Estados Unidos para reverter o processo de sua relativa decadência nos anos 1980.

Com o passar do tempo, a hegemonia do capital financeiro no Brasil foi levando à destruição da sociedade urbana e industrial, ademais de exigir absorção crescente de recursos públicos para servir à valorização do estoque de riqueza velha depositada nos diversos esquemas especulativos. Ao contrário da cantilena da austeridade fiscal, a realidade nacional do bloqueio à geração de riqueza nova empurrou o Estado à condição de perdulário, cuja despesa pública agregada saltou de 28,5% do PIB, em 1990, para 45,3% do PIB, em 2020.

Tudo isso intermediado pela maioria ideológica e política do Real que se conformou em torno da estabilidade monetária desde 1994 e que se mostrou incapaz de ser rompida desde então. Acontece, todavia, que essa mesma maioria política continha suas próprias contradições.

A começar pela ausência de dinâmica econômica sustentável para expandir o sistema produtivo nacional, com produtividade congelada pelo vácuo da desindustrialização e pelo inchamento da economia de subsistência abrigada no setor de serviços. Por força disso, o encolhimento relativo dos setores econômicos modernos conferiu inéditas possibilidades para o engrandecimento do capital agrário, sempre apoiado nos ganhos do Estado “neoliberal”.

Com importantes saldos acumulativos na balança de comércio externo, o modelo primário-exportador retomado e fortalecido concretizou o projeto neoliberal da substituição de produtos nacionais por importados. Assim, a nova dependência reascendeu o capital agrário no interior do poder burguês, inclusive em alianças com o capital industrial e comercial.

Isso porque o sucessivo superávit comercial gerado pelo agronegócio se mostrou decisivo no financiamento do processo de transmutação do capital industrial em maquiladoras dependentes de insumos e componentes crescentemente importados. A emergência da China ao assumir a condição de principal parceiro comercial do Brasil firmou a gradual associação do capital agrário com os interesses crescentes na Ásia.

Por força disso, houve o deslocamento das preferências do agronegócio pelos grandes irmãos do Norte (EUA e Europa), vistos inclusive como competidores na oferta de produtos à Ásia. Ao mesmo tempo, a percepção de que a maioria política do Real de valorização do estoque de riqueza velha pelo capital financeiro se aproximava do seu próprio limite.

Diferentemente de Temer, o governo de Bolsonaro explicitou a libertação do aprisionamento da política do tripé macroeconômico. Depois de décadas, a taxa básica de juros interna se tornou negativa, isto é, abaixo da inflação, o que colocou em xeque, ainda que parcialmente, o processo de financeirização conduzido pelos bancos comerciais e empresas de gestão da riqueza alheia.

No seu lugar, emergiram as fintechs e os chamados bancos de investimentos, que parecem convulsionar a hegemonia do capital financeiro no interior do poder burguês. Diante do decrescimento econômico dos últimos sete anos, a crença no superávit fiscal, no teto de gastos e outros freios neoliberais se esvaíram, materializando a nova teoria monetária moderna na prática.

A política cambial, por fim, parece ter-se conformado aos interesses dos exportadores, ou seja, dos proprietários do agronegócio. Até mesmo o presidente Bolsonaro, outrora crítico feroz do modelo chinês, posicionou-se favoravelmente às parcerias com o gigante asiático, conforme o roteiro preparado e lido por ele na última reunião de cúpula dos Brics.

Tudo isso pode estar refletindo certa confusão no “andar de cima” da sociedade brasileira, justamente onde se localizam os que realmente mandam. A maior importância do capital agrário parece indicar o quanto o capital financeiro, exposto às fissuras internas, revelaria mudanças no comando do poder burguês.

  • Marcio Pochmann é economista, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais da UNICAMP, ex-presidente do IPEA, autor de vários livros e artigos publicados sobre economia social, trabalho e emprego.

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