“Quando a opressão aumenta / Muitos se desencorajam
Mas a coragem dele cresce. / Ele organiza a luta
Pelo tostão do salário, pela água do chá / E pelo poder no Estado.
Pergunta à propriedade: / Donde vens tu?
Pergunta às opiniões: / A quem aproveitais?
Onde quer que todos calem / Ali falará ele
E onde reina a opressão e se fala do Destino / Ele nomeará os nomes
Pra onde quer que o expulsem, para lá / Vai a revolta, e donde é escorraçado
Fica ainda lá o desassossego.
– Bertolt Brecht, Louvor do Revolucionário.
A luta de classes tem uma dimensão intelectual, ensinaram os clássicos do pensamento marxista. Marx, ao desconstruir as engrenagens do capitalismo. Lenin, ao teorizar a necessidade de organização. Trotski, ao apontar o vírus da burocracia predatória dos valores socialistas. Rosa Luxemburgo, ao ressaltar que sem democracia não há socialismo, e vice-versa. Gramsci, ao elaborar estratégias de conquista da hegemonia na sociedade. Mariátegui (El Amauta, do quéchua, “mestre”), ao mostrar os desafios característicos da realidade latino-americana nas lutas de libertação, com o ardor e a generosidade dos românticos. Mandel, pela defesa do marxismo anti-totalitário, na segunda metade do século XX. Muitas e muitos mais contribuíram para a configuração do arcabouço da racionalidade socialista.
Em uma época sombria de antiintelectualismo, quando articulações fascistas vicejam na classe média com apoio do próprio governo (Bolsonaro), advogar a causa intelectual é, per se, um ato de desobediência civil. A prática sempre anda melhor junto com a teoria, seja no cotidiano, seja na história. A política se faz através da palavra, do convencimento dialógico.
Como negociar reajustes salariais no setor industrial metal-mecânico (metalúrgicas), sem informações sobre o preço de materiais como o aço nos mercados, os lucros arrecadados pelas empresas e sua cotação na Bolsa de Valores? Como podem os bancários sentar à mesa de negociações nos dissídios, sem informações sobre os lucros astronômicos das instituições do capital financeiro e sobre a média salarial paga nos bancos públicos e nos privados?
Como reivindicar a reforma agrária e a produção de alimentos saudáveis, sem informações sobre a existência dos latifúndios improdutivos, as terras de posse da União e o peso econômico e social da produção da agricultura familiar? Como demandar junto às prefeituras serviços para a comunidade, sem informações sobre receitas e despesas na cidade, a distribuição de recursos por bairros e os horários das linhas de ônibus?
Não obstante, se o conhecimento é importante nas lutas de caráter economicista, ilustradas acima, daí não se depreende automaticamente uma consciência ideológica. Só a consciência do sujeito coletivo, construída no processo de enfrentamento aos valores mercantis, que Marx n’O Capital denomina “fetichismo da mercadoria”, permite a plena percepção das contradições do sistema capitalista. Sistema socioeconômico e cultural que impede os indivíduos de realizarem suas potencialidades, submetidos que estão à lógica de acumulação, aos grilhões da exploração e à fogueira da opressão pelo desemprego.
No enfrentamento surge e se desenvolve nos que vivem do trabalho o que para Lucien Goldmann é a “consciência possível”, que não “vem de fora” pela mão caricatural dos illuminati. Mas das lutas que constroem a identidade das classes trabalhadoras, enquanto uma possibilidade dentre outras: o socialismo, o reformismo socialdemocrata ou o horror do fascismo / neoliberalismo. No caminho libertador, o egoísmo cede à nova sociabilidade. A atividade política plural dos soviets, na primeira revolução socialista no mundo, expressou uma sociabilidade de tipo diferente, anti-hierárquica, capaz de conferir voz ativa e libertária ao povo – e romper com o condicionamento das antigas estruturas sociais e econômicas.
A “consciência possível” pode resultar das disputas pela hegemonia nas lutas igualitárias contra os privilégios de classe, sintetizadas no colonialismo (racismo) e no patriarcado (sexismo), que sustentam o modelo capitalista de sociedade. Em ocasiões limítrofes, resultaram de insurgências revolucionárias contra regimes ditatoriais (Cuba, Nicarágua), que atraíram intelectuais e artistas para suas fileiras, elevando o nível de consciência da população em geral. Nenhuma fórmula pronta consegue prever os trâmites da conscientização nas lutas que emergem da micropolítica articuladas com a macropolítica.
Nas lutas contra a coisificação alienante, que tudo transforma em mercadoria, se delineia o que Michael Löwy no livro Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários (Ed. LECH) classifica de “humanismo revolucionário”, a partir de três eixos: “a desmistificação das formas reificadas, a crítica dos efeitos desumanos do capitalismo e a perspectiva da emancipação humana pela revolução socialista”. A utopia está contida na realidade, não é uma invenção a-histórica, alheia às lutas concretas contra os jugos da dominação.
A direita entende a dimensão intelectual para o desenrolar da distopia neoliberal. Think Thanks (Instituto de Estudos Empresariais, Instituto Mises Brasil) propagam o ideário do livre-mercado em oposição ao Estado-“vilão”, que busca direcionar a economia para tratar o que não lhe compete (a pobreza). A reação política assim não se coloca na história, senão que suspende a história. “A consciência de classe da burguesia, mesmo no caso de poder refletir todos os problemas de organização de sua dominação e penetração no conjunto da produção, deve obscurecer-se necessariamente no instante em que aparecem no interior da experiência burguesa os problemas, cujas soluções se encontram para além do capitalismo”, lê-se na magistral obra de Georg Lukács, História e Consciência de Classe (Ed. Escorpião).
A consciência da burguesia é uma “falsa consciência”. Apesar das evidências científicas sobre os males ambientais e o risco à sobrevivência da humanidade e do planeta, as maiores potências da economia mundial não logram consensualizar medidas que superem a concepção positivista de progresso contínuo e linear. A locomotiva concorrencial por mercados impede-lhes a tomada de consciência protetiva, ainda que não desconheçam a destruição da biodiversidade com os desmatamentos, a poluição, o aquecimento global. Conhecimento não lhes falta. Falta-lhes a consciência de classe sob o prisma historicista.
Na esquerda, os enclaves de difusão da consciência socialista acham-se nos cursos de formação política dos movimentos sociais, sindicatos, partidos, grupos LGBTQIA+, de gênero, étnico-raciais, ambientalistas, juventude, “blogs sujos”. Ao que se somam os estabelecimentos de ensino, não à toa, perseguidos pelo ódio bolsonarista. Se a burguesia não se enxerga como fenômeno transitório, o bolsonarismo não se vê no pensamento crítico. Necessita calar a liberdade de expressão, a circulação de ideias – o propósito obscurantista dos defensores da “Escola Sem Partido” – para poder extrair a mais-valia do suor diário.
A resistência aos ataques antiintelectualistas ajudou na formação de Guy Debord (1931-1994), o autor de A Sociedade de Espetáculo (Ed. Contraponto), que nunca frequentou uma universidade. Socorreu-se dos centros de estudos anarquistas e socialistas, na França. Já o estudioso da obra de Max Weber, o pai da Sociologia moderna, foi Maurício Tragtenberg (1929-1998) que também formou-se à margem do ensino formal, em círculos operários nas décadas de 40 e 50, no Brasil. Autodidata, com o “primário incompleto”, Tragtenberg só atravessou o portal da universidade graças ao “notório saber”. Ambos respiraram ambiente propícios para aperfeiçoar seu conhecimento. A consciência de classe adveio da inserção em lutas coletivas. Porque o conhecimento é individual, porém, a consciência é transindividual.
Em tempos de pandemia, lives e sites dos partidos socialistas e democratas, das fundações partidárias e correntes internas constituem-se em casamatas ideopolíticas. São instrumentos permanentes de formação política. Nunca foram tão imprescindíveis. Neles, reunimos informes, conceitos, reflexões, análises críticas sobre o significado e os desdobramentos objetivos e subjetivos da cosmovisão neoliberal, na atual etapa de desenvolvimento do capitalismo, em escala internacional e nacional. Lendo e discutindo textos para “aprender a aprender”, em situações que antecipam em embrião a configuração da sociedade futura.
A referência à instrução fora do circuito educacional institucionalizado mostra a riqueza dos aprendizados, junto aos movimentos e entidades que compõem o campo plebeu. Há inteligência em nichos organizacionais das classes laboriosas. Pense-se nas escolas do MST. Ou nas “comunidades eclesiais de base” da Teologia da Libertação. Ou nas organizações de esquerda que mantêm acesa a chama revolucionária, utópica. Esses núcleos combatentes servem de couraça contra a alienação / o consumismo e, em simultâneo, servem de meio interativo para a aquisição de um saber independente, onde “aprender a ler é aprender a ler o mundo”, nas estimulantes palavras do patrono da Educação brasileira, Paulo Freire.
Nos locais tradicionais de transmissão do conhecimento, igualmente, há contestação, rebeldia, saber “antropofágico”, elaborações dialéticas contra as desigualdades sistêmicas. Nas universidades brilhavam, ontem, Adorno, Marcuse, Foucault, Hannah Arendt, Florestan Fernandes. Hoje, ministram aulas ou conferências os principais pensadores contemporâneos anti ou pós-capitalistas, Noam Chomsky, Perry Anderson, David Harvey, Elmar Altvater, Atilio Boron, Paulo Arantes, Emir Sader. Para não alongar a lista dos enfants terribles.
Vale lembrar que o grande movimento cultural da contemporaneidade, o Maio de 1968, teve por berço da vanguarda insurgente (de “substituição”) os campi universitários, nos dois hemisférios. A posição intermediária dos estudantes, no limbo entre a família e a entrada no processo produtivo, favorece sua disponibilidade para o embate contra o status quo. Não existe transformação no conteúdo e na forma da sociedade, sem a adesão dos jovens.
No âmbito da administração que atendeu o apelo do “anjo torto” e “foi ser gauche na vida”, o governo do PT no Rio Grande do Sul entre 1999-2002 com o Orçamento Participativo (OP) aplicou, em ato, uma pedagogia da esperança para e com as massas. O experimento radicalizou em termos ético-políticos a democracia, ao estender a participação cidadã a todas as regiões do estado. As experiências anteriores foram circunscritas aos municípios. A democracia representativa sofre distorções que a potência da governabilidade democrático-popular (socialista, profana) corrige. À luta! Hasta la victoria, pero sin perder la ternura!
- Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura/RS e Lúcio Costa é advogado.
Foto:Travis/Flickr
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