O professor João Cezar de Castro Rocha, em entrevista ao jornal Estado de Minas, denuncia o processo de lavagem cerebral alimentado pelo engajamento em torno da desinformação e das teorias conspiratórias. Conforme o autor de Guerra cultural e retórica do ódio (Caminhos), o Brasil virou um aplicativo para a “criação metódica de realidade paralela”. Para atingir a meta sinistra, a política é despolitizada e a esfera pública sequestrada pelo empoderamento das redes sociais.
Castro Rocha faz uso das reflexões do psicólogo social norte-americano Leon Festinger que, em 1957, publicou Uma teoria da dissonância cognitiva. Trata-se da busca que indivíduos empreendem para recolher informes que confirmem decisões assumidas e conformem suas escolhas às suas cognições (conhecimento, opiniões, crenças). A conjuntura ideológica que cercou a pesquisa era marcada pela polarização global entre os EUA e a ex-URSS. Simpatizantes radicais pinçavam os argumentos para encurralar e eliminar o outro. O sectarismo era o pêndulo comum às posições.
A teoria da dissonância cognitiva foi elaborada no auge da Guerra Fria. Na época, a robótica entrava na linha de produção fabril, instigando no imaginário social o temor com a tirania das máquinas e a substituição dos postos de trabalho humano pelos robôs. No cinema e na literatura, a angústia gerada exprimiu-se com a linguagem da ficção científica. Intérpretes do Maio de 1968, na França, que se regozijava no paraíso do pleno emprego, atribuem a eclosão das mobilizações libertárias ao medo da juventude frente as incertezas do futuro, dadas as rápidas inovações tecnológicas.
O movimento se estendeu por diferentes geografias e culturas, até desembarcar nas Américas. O abalo sísmico impôs uma derrota à invasão estadunidense no Vietnã. Herbert Marcuse alertou então para a peculiar capacidade revelada pelo capitalismo de absorver os protestos e transformá-los em mercadorias. Jaquetas militares de improváveis soldados mortos, com diversos furos de bala e manchas de sangue, foram colocadas à venda em boutiques quase online. Esse veterano, quando jovem, comprou e vestiu uma em Porto Alegre. Tinha o sedutor símbolo hippie da paz e amor.
No presente, a angústia que atiça o neoconservadorismo e joga água no moinho do neofascismo e do neoliberalismo não evoca o espectro da tecnologia moderna, mas a moral e os bons costumes. No cinema, filmes de terror sobre zumbis perigosos para as pessoas normais (?) multiplicam cifrões nas bilheterias. Na literatura, obras de autoajuda enchem as prateleiras das livrarias com promessas de compensações narcísicas e hiperindividualistas à precarização dos serviços prestados pelo Estado mínimo e à erosão das instituições que conferiam uma identidade aos indivíduos – as famílias, as universidades, os sindicatos e os partidos políticos. No retorno à selva, cada um cuida de si.
Os ressentimentos servem de combustível para o veto conservador: (i) à máxima “meu corpo, minhas regras”, tida como senha para a liberação do aborto; (ii) à conquista multiétnica que contesta o supremacismo branco monoétnico e; (iii) à afirmação pública de orgulho dos grupos LGBTQIA+, com o pretexto de que as práticas de homoafetividade afrontam os padrões da heteronormatividade.
A reconfiguração das relações de gênero, com a liberdade sexual das mulheres igualada à condição dos homens, ainda esbarra no feminicídio. A negritude, ao combater o vil preconceito e o racismo estrutural, tropeça em grosserias e morre no porta-malas da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Gays são perseguidos e assassinados. Contudo, as funções repressivas de salvaguarda do status quo não conseguem parar a roda da história, na direção da igualdade redentora entre todas, todos e todes.
Contrapoderes clamam por justiça, como Ulisses, imunes ao “canto de sereia” para absorção de seu potencial de recusa ao que está aí. O feminismo, o antirracismo e a anti-homofobia, na vitrine do shopping ou na barraca da feira, não perdem o viés revolucionário. É preferível fotos icônicas de Simone de Beauvoir, Mandela e Freddie Mercury, na bolsa, do que uma publicidade para consumo da Coca-Cola. Um outdoor para divulgar a arte junto à população do que um para promover armas ou carros. Há mercadorias e mercadorias. Importa romper os grilhões para superar os pilares do sistema capitalista: o patriarcado (sexismo) e o colonialismo (racismo). Questão de consciência.
A extrema-direita brasileira compartilha as estratégias transnacionais de Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia) para implantar uma sociedade totalitária com base no fundamentalismo religioso. Líderes da estirpe de Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo) e Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus / Grupo Record e RecordTV) teceram o enredo. Graças aos deuses, a reeleição de Jair Bolsonaro desceu pelo ralo. Aqui, vale destacar os evangélicos progressistas que, antes de votar em Lula da Silva, travaram uma luta incansável nos templos em que os eleitores de esquerda eram condenados a arder no inferno.
Militontos web guiados
O dia seguinte à eleição evidenciou as denominadas “bolhas”, que melhor seria designar “dimensão paralela”. O hospício nas estradas e defronte os quartéis deram exemplos da loucura que converteu mentiras, em dogmas, no desfile nonsense. A centralização das reações à democracia sugere uma hierarquia invisível e rígida. A horizontalidade é ilusória. Existe um comando tão secreto quanto o orçamento parlamentar, o qual despeja instruções. Aqueles que suspendem os direitos individuais de ir e vir nas rodovias, nelas, não comparecem. Nem continência batem às casernas, enrolados na bandeira cívica. Quiçá, sequer habitem nas fronteiras nacionais, apesar do poder sobre os corpos verde-amarelos e gestos para estender o braço na saudação, ao estilo do Führer. A demonstração de força e poder abrange o tempo e o espaço. O Grande Irmão orwelliano, hoje, é um ser telemático.
De forma coordenada, as orientações disparadas ampliam a percepção acrítica dos “militontos”, convencidos de participar da cruzada do Bem contra o Mal. Erros crassos são travestidos de virtudes. A alienação interdita a racionalidade e abjura as ponderações. “Um homem convicto é resistente à mudança. Discorde dele, e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas, e ele questionará as fontes. Recorra à lógica, e ele não entenderá sua perspectiva”, afirma Leon Festinger (op. cit.). A Bíblia registra o tipo nos Provérbios, não por acaso de número 22: “Até quando insensatos, amareis a tolice, e os tolos odiarão a ciência?” Não obstante, há momentos em que os manifestantes web guiados se desorientam, e a ilusão cede à depressão e ao desamparo na falta da mão firme do tutor.
Esses momentos ocorrem quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manda bloquear os grupos difusores de informações falsas e assertivas golpistas, nas searas digitais. Podia oportunizar o mea-culpa pela intolerância e a ignorância. Que nada. Subjetivamente, a faxina no cérebro impede o acesso aos arrazoados que confrontam as convicções, em mentes embestadas. A legislação e os tribunais têm a tarefa de cortar os vínculos indicados de dominação e subordinação, além de expor e prender a patronal de vira-latas que financia os atos espúrios de desobediência civil à Constituição.
Os delírios remetem ao guru paradigmático, Olavo de Carvalho. Daí o neologismo “bolsolavismo” tomado de Castro Rocha. No Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, TikTok, Kwait, articulações públicas e privadas de WhatsApp, rádios e emissoras de televisão, o caos cognitivo expõe os sintomas do negacionismo. Como no verso do poeta, “o que tu tens, não tens”. Na ótica narrativa bolsolavista, a fiscalização sobre a veracidade é uma censura inconstitucional (sic) à liberdade de expressão, cujo conceito foi torturado para caber no figurino antissistêmico da Pós-Verdade.
Para a diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab), Rose Marie Santini, “as campanhas de desinformação empregaram técnicas de comunicação computacional e orquestração multiplataforma”, no corrente ano. As estratégias foram ágeis, sofisticadas. A fábrica de fake news do “gabinete do ódio”, instalada no Palácio do Planalto pelo desgoverno de saída, lembra um jardim de infância comparada à artilharia pesada utilizada ao longo da disputa eleitoral, com crimes sob única responsabilidade do extremismo armado. Seja na cena de bandidagem em que o aspirante à mártir da canalha, Roberto Jefferson, lança granadas e mais de cinquenta tiros de fuzil contra os agentes que cumpriam um mandado judicial. Seja na cena de capitã-do-mato em que uma atriz de quinta categoria, Carla Zambelli, corre de pistola em punho atrás de um jornalista negro.
Confiante no domínio da prestigitação (a arte de iludir) para controlar o rebanho, o deputado vulgo 02 insiste para que o pai genocida não aceite, inerte, o resultado apurado na exposição da soberania popular. Propõe um encontro do clã virulento com Steve Bannon, ex-estrategista da Casa Branca na administração Trump, para formatar o discurso de alucinação e as ações de resistência à posse do presidente eleito, em 1° de janeiro de 2023. Motivo suficiente para ter o diploma eletivo cassado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por incitar a subversão do Estado de Direito Democrático.
A dissonância cognitiva coletiva, incrementada na midiosfera por conteúdos paranoides, estimula o irracionalismo destrutivo da cosmovisão protofascista. Na onda bestialógica, alguns inqualificáveis surfaram na prancha para o Senado: Damares Alves no Distrito Federal, Marcos Pontes em São Paulo e Hamilton Mourão no Rio Grande do Sul. O importante agora é decodificar a vitória da chapa Lula / Alckmin e da Frente Esperança Brasil sobre o laissez-faire e o totalitarismo. Urge desprivatizar o aparelho estatal. Na memória das políticas públicas de proteção institucional e no desejo de participação reside a lição do povo brasileiro para uma sociabilidade igualitária, no mundo. Acerta quem disse que “os golpistas fazem papel de bobos”. Bobos da Corte que acabou.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.
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