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A distinção no neoliberalismo | Luiz Marques

No final do século XIX, estudos mostram que as classes proprietárias buscavam consumos de luxo para manifestar a superioridade de status social. Em La distinction (1979), Pierre Bourdieu retoma a investigação sobre os signos que designam a elegância e a nobreza de ser. Com o ocaso do Ancien Régime, as classes dominantes substituíram os títulos nobiliárquicos que cristalizavam a hierarquia de mando. Antes, existir era ser diferente. Na República, existir é ter direitos iguais formalmente. Com o que nenhum título se sobrepôs ao de “cidadão”, embora persistissem as diferenças sociais.

Para os extratos privilegiados, a questão centrou-se em pôr na ordem do dia o que diferenciava-os na coletividade, não com base em uma hereditariedade, mas em conquistas materiais e simbólicas. A proeminência social pelo modo de vida, falar, vestir, se comportar e se apresentar para a massa amorfa tornou-se o fiel da balança. Coisa que aconteceu graças ao apelo da “originalidade”, uma prerrogativa saliente que implica em pré-condições. Por exemplo, no esporte. Para ser sócio de um clube de golfe é necessário ser indicado por um membro da associação e utilizar equipamentos caros, sob a guarda de um empregado (caddie) durante as partidas. Assim, ocorre a triagem social.

Outra diferenciação acha-se nas artes. Os novos ricos portam-se tipo rastaqueras. Não reconhecem uma autêntica obra de arte. Ignoram as nuances estéticas, os movimentos pictóricos e os estilos pessoais, critérios para a rigorosa classificação plástica. A distinção aristocrático-burguesa supõe um know-how de habilidades e educação. Disposições que se aprende desde a infância, no contexto familiar. Vale lembrar ainda que não é suficiente o acesso a itens de consumo luxuosos, por si só.

Os objetos distintivos com a maior democratização da sociedade sofrem um contínuo deslocamento. É preciso uma carga econômica e cultural para não se intrometer de pato a ganso, e cair no ridículo. Aquilo que a classe média faz uso, é estigmatizado de mau gosto. Motivo para o forte ressentimento das camadas intermediárias, que imitam as classes abastadas de forma caricata. Onde os fidalgos tradicionais desfrutam temporadas, seus simulacros transitam em cruzeiros marítimos relâmpagos.

Com os olhos voltados para o topo da pirâmide, sinhozinhos no estrangeiro enviam fotos para os amigos junto a iates invejados. Em stand ups, viram piadas que nem a contada por Ariano Suassuna sobre a grã-fina que dividia a humanidade entre quem tinha ido a Disneyworld Orlando e quem nunca fora, como o dramaturgo. Um cronista social, a propósito, ironiza os passeios remunerados a Paris “para ciceronear ricos ignorantes e relatar a história do que visitariam na Cidade Luz”.

Os bárbaros representantes da Casa Grande contemporânea apenas se manifestam para intervir em defesa das causas que reatualizam as desigualdades herdadas do velho colonialismo. Daí o apoio ao neofascismo de um capitão defensor de torturadores, ao neoliberalismo de um Chicago boy treinado na aporofobia e ao neoconservadorismo de fundamentalistas religiosos. A plutocracia sustenta ações antiiluministas pela “Escola sem Partidos” e contra a “Ideologia de Gênero”. A consciência assusta.

As pesquisas bourdiesianas datam do decênio de 1960-1970, na França do pós-guerra, e aludem a uma burguesia ilustrada. Com exceções, não é o caso da elite do atraso brasileira cujas mansões sequer reservam salas para instalar a biblioteca e a cinemateca. Sua agenda de assuntos compõe um mosaico de ostentações, sem finesse. O que julgam sofisticado se resume aos rótulos de vinho com preços exorbitantes e às memórias gastronômicas de restaurantes com estrelas conferidas pelo Guia Michelin, para comer um naco de carne com pó de ouro e tirar uma selfie ao lado do chef de cuisine.

Tédio dos bilionários

“No país, entre 1980-2022, de acordo com a Revista Forbes a multiplicação por 21 vezes no número de bilionários foi acompanhada pela mudança de seu perfil. Encaixaram-se na função de banqueiros e vinculados ao agronegócio, quando há mais de três décadas se concentravam na indústria de transformação e construção civil”, analisa Márcio Pochman, no artigo “Projeto político da dívida pública” (Terapia Política, 25/06/2023). A troca de estatuto, de fato, não trouxe benefícios sociais. Os poderosos se adaptaram à nova razão do mundo e à sociedade neoliberal. As exigências sutis do iluminismo oitocentista ficaram para trás. As doações privadas para instituições do saber humanístico, científico e artístico segundo os cânones da haute culture se desmancharam no ar.

Os gestos de generosidade que enlaçavam a existência dos comuns, com a criação de universidades, hospitais e fundos para a proteção do meio ambiente, cederam aos projetos que rompem todas as normas contratuais de convivialidade. Bilionários com fortunas feitas sob a dominação do capital financeiro na economia global, preferem comprar clubes de futebol pela oportunidade de fazer negócios e fruir o prazer das celebridades. Não financiam a inteligência ou a sensibilidade.

A descomunitarização tornou excepcionais as atividades filantrópicas dos donos do dinheiro. Hoje, as mentes e os corações dos winners (1%) são condicionados por um hiperindividualismo narcísico. Os losers (99%) não aparecem na equação do poder. Os multimilionários da cartilha de Ludwig von Mises negam os ideais de Neil Armstrong ao pisar na Lua, em 1969: “Um pequeno passo para um homem, um gigante salto para a humanidade”. A parte final da oração virou uma figura de retórica, sem compromisso algum com a realidade. Os nababos se divorciaram da espécie do homo sapiens.

O processo de concentração de renda do Vale do Silício (Facebook, Apple, Google, Netflix), na baía de São Francisco, não suscita o amor cristão o que dirá a paixão democrática para levar ajuda aos continentes em dificuldade, como na crise pandêmica. Agora, os sinais de riqueza são dados pelas opções idiossincráticas de originalidade; num crescendo, mais hedonistas e de gozos exclusivistas.

Em nosso tempo, a distinção social mira a chance garantida pelos cifrões que propiciam a emoção “para os raros”, não no sentido espiritual de Hermann Hesse, em O lobo da estepe, mas no sentido mesquinho dos aquinhoados que após violentarem o planeta vivem o tédio de ter tudo que se possa imaginar na esfera terrestre. As viagens nos respectivos foguetes de Richard Branson, fundador da Virgin Galactic, e de Jeff Bezos, fundador da Amazon, custaram R$ 26 bilhões cada uma. Elon Musk, fundador da SpaceX e da Tesla, foi o que conseguiu ir mais longe depois das expedições da Apollo. Roteiros de turismo espacial para biliardários entediados são uma vitória do egoísmo.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou a falta de empatia dos magnatas: “Deram voltas no espaço enquanto milhões passam fome na Terra. Em vez de humildade perante desafios épicos, vemos arrogância. Em vez de um caminho para a solidariedade, estamos em um caminho sem saída para a destruição”. Já o submersível Titan, da OceanGate, revelou a incúria irresponsável da proposta para “desregulamentação” de empreendimentos da livre iniciativa. O protocolo requeria elementos ultraresistentes na construção da cápsula, o titânio. A fibra de carbono não dispunha da mesma resistência, e a espessura do casco era de 13 cm, ao invés de 18 cm conforme os técnicos.

Ademais, o itinerário controlado por um prosaico joystick genérico padrão Xbox não se submetera a testes de alta pressão. Negligenciou-se a fiscalização de órgãos estatais sobre a segurança. Os cinco ricaços que pagaram R$ 1,2 milhão para ver ruínas do Titanic, a rigor um cemitério, pereceram na implosão. À semana somou-se o naufrágio do barco de pesca na costa italiana, com 500 imigrantes líbios desaparecidos. A mídia prestou atenção à tragédia dos bacanas. Era a novidade na tela. As vidas de pobres não importaram na contabilidade das perdas humanas. Como sentenciou a Dama de Ferro, Margaret Thatcher: “A sociedade não existe, o que existe são os indivíduos e as famílias”.

O egocentrismo exprime uma posição no âmbito social, a de que os novos ricos são agentes de um economicismo sem alma, incapaz de cimentar uma hegemonia duradoura no plano intelectual e moral. A governabilidade ativa e altiva liderada pelo presidente Lula da Silva, apesar das alianças mercenárias no Parlamento, é a aposta contra-hegemônica dos trabalhadores organizados à barbárie. A participação da cidadania na formulação de políticas igualitárias empodera o povo na construção republicana e civilizacional do Brasil. Qual o verso de Thiago de Mello: “Estou pelo que sou”.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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