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A importância da Indústria

A importância da IndústriaPor Luiz Gonzaga Belluzzo e Júlio Sérgio G. Almeida, publicado originalmente na Carta Maior.

O grande historiador Carlo Cipolla afirmou que a economia dos Homens atravessou dois momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial. No neolítico, os povos abandonaram a condição de “bandos selvagens de caçadores” e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura. Entre as incertezas e brutalidades da “vida natural”, tais práticas difundiram condições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases da convivência civilizada. Podemos afirmar que ao longo de milênios as sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desenvolvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob formas diversas de geração, apropriação e utilização dos excedentes.

Às vésperas da Revolução Industrial os fisiocratas ainda refletiam a predominância da agricultura na economia do Ancien Regime. Consideravam “produtiva” somente a classe de agricultores. A manufatura era a atividade da classe estéril que conseguia apenas repor seus custos por meio das trocas e assim, preparar-se para o período de produção seguinte. A agricultura, além de cobrir os seus custos de produção, transfere uma parcela do produto gerado, sem contrapartida, aos proprietários da terra, paga uma renda. A agricultura era, nesse sentido, “produtiva”, ou seja, a única atividade capaz de gerar excedente.

O segundo momento, o da Revolução Industrial, subverteu de maneira ainda mais radical o modo de produzir. Não se tratava mais de administrar as cambiantes condições naturais de produção, mas de utilizar o engenho humano para transformar e, mais recentemente, reinventar a natureza. “A Revolução industrial transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada.”

A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social. Aí nascem, de fato, o capitalismo, a sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial que não só cria novos bens e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência, de “estar no mundo”. Deste ponto de vista, a indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços.

A ideia da revolução industrial como um momento crítico, trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o crescimento da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema produção apoiado na maquinaria endogeiniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e inter-setoriais. Além de sua permanente auto-diferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural” e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos Transportes e o transformações dos sistemas financeiros no século XIX. As interações entre a expansão da ferrovia, do o navio a vapor, o desenvolvimento da indústria metalúrgica e da metalomecânica foram decisivas para a o avanço dos bancos de depósito e para o surgimento do setor de bens de capital.

A história dos séculos XIX e XX pode ser contada sob a ótica dos processos de integração dos países aos ditames do sistema mercantil-industrial originário da Inglaterra. Essa reordenação radical da economia exigiu uma resposta também radical dos países incorporados à nova divisão internacional do trabalho. Para os europeus retardatários, para os norte-americanos e japoneses e mais tarde para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.

Paradoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produtiva capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema industrial. Este é o caso de países dotados de uma relação população/ recursos naturais favorável, como Austrália, Nova Zelândia, Uruguai, Chile. Essa especialização decorre da própria divisão do trabalho suscitada pela expansão do sistema industrial.

A especialização ou re-especialização virtuosa dos produtores de commodities na economia atual, no entanto, não legitima nem justifica o processo de desindustrialização em curso no Brasil. Ao longo de cinco décadas, até o início dos anos 80 do século passado, o país empreendeu um ingente esforço para construir um sistema industrial relativamente avançado.

Concentrados na expansão dos setores pesados, os investimentos do II PND em meados dos anos 70 deram impulso a um novo ciclo de exportação de manufaturados de tecnologia madura e de substituição de importações. No entanto, a estratégia escolhida não só provocou a crise da dívida do início dos anos 80, como descurou da incorporação dos setores da chamada Terceira Revolução Industrial, como a eletrônica de consumo, componentes eletrônicos, informatização dos processos produtivos, novos materiais e química fina. A crise da dívida externa e as políticas liberais que se seguiram à estabilização dos anos 90 encerraram uma longa trajetória de crescimento industrial e criaram as bases para o retrocesso da indústria de transformação.

A participação da indústria no PIB caiu de 35,8% em 1984 para 15,3% em 2011. Essa queda seria natural se decorresse dos ganhos de produtividade obtidos ou difundidos pelo crescimento da indústria, como ocorreu em países de industrialização madura. Mas não foi isso que se observou no Brasil. No momento em que ocorria uma revolução tecnológica e a intensa redistribuição da capacidade produtiva manufatureira entre o Centro e os Emergentes, alterando o esquema tradicional Centro-Periferia, o Brasil foi empurrado, em nome da inserção competitiva (sic), para uma inserção desastrada que culminou na desvalorização do real de 1999.

As políticas inspiradas no Consenso Neoliberal desataram a valorização da taxa de câmbio real (neste caso, na contramão do Consenso de Washington), a privatização das empresas produtoras de insumos e serviços fundamentais e promoveram uma elevação da carga tributária, onerando, sobretudo a indústria, o investimento e as exportações. As privatizações tinham como propósito de curto prazo aumentar a receita do governo. Na verdade, a receita fiscal foi tragada pela carga de juros – irmã siamesa do câmbio real valorizado. A suposta eficiência dos serviços privatizados escorreu pelo ralo do aumento real de tarifas. A cavalgada desses Três Cavaleiros do Apocalipse não prescindiu do Quarto, o bombardeio da opinião pública pelos ditos formadores de opinião.

O Brasil encerrou os anos noventa com uma regressão da estrutura industrial, ou seja, não acompanhou o avanço e a diferenciação setorial da indústria manufatureira global e, ademais, perdeu competitividade e elos nas cadeias que conservou. Contrariamente ao afirmado pela vulgata neoliberal a respeito da globalização, o movimento de re-localização manufatureira foi determinado por duas forças complementares e, não raro, conflitantes: o movimento competitivo da grande empresa transnacional para ocupar espaços demográficos de mão de obra abundante e as políticas nacionais dos Estados Soberanos nas áreas receptoras.

Nos anos 2000, a estrutura e a dinâmica da produção e do comércio globais, originada pela concomitância entre os movimentos da grande empresa e as políticas nacionais (particularmente as da China), colocou o Brasil, por conta de sua dotação de recursos naturais-água, energia, terras agriculturáveis, base mineral – em posição simultaneamente promissora e perigosa. Bafejado pela liquidez internacional – antes e depois do estouro da bolha imobiliária – e abalroado pela demanda chinesa de commodities, o Brasil, foi condescendente com a ampliação e generalização do déficit comercial que afetou a maioria dos setores industriais, ao mesmo tempo em que o agronegócio e a mineração sustentavam um superávit global no comércio exterior.

A abundância de divisas teve larga contribuição do fluxo de capitais – antes e depois da crise financeira. A situação benigna provocou o descuido com a persistência dos fatores que determinaram o encolhimento e a perda de dinamismo da indústria: câmbio valorizado, tarifas caras, em termos internacionais, dos insumos de uso geral e carga tributária onerosa. Na medida em que tivemos a ventura de ampliar o déficit financiável em conta corrente, o câmbio passou a apresentar uma tendência acentuada e contínua de valorização.

A crise financeira internacional e as políticas monetárias utilizadas nos países desenvolvidos para conter seus efeitos só agravaram a situação. Por um lado, o aguçamento da competição global aumentou a agressividade dos exportadores de manufaturas e, de outro, a nossa posição como exportadores (atuais e potencias) de commodities deu maior fôlego ao influxo de capitais. Essa combinação é extremamente prejudicial à indústria e promete uma nova e inaceitável “rodada” de regressão da manufatura. Essa configuração de fatores internos e externos já sinaliza um recuo nas decisões de investir dos empresários.

Fica claro que a falsa inserção competitiva da economia brasileira está cobrando o seu preço. Falsa, porque as políticas dos anos 90 entendiam que bastava expor a economia à concorrência externa e privatizar para lograr ganhos de eficiência micro e macroeconômicas. Percorremos o caminho inverso dos asiáticos que abriram a economia para as importações redutoras de custos. A abertura estava, portanto, comprometida com os ganhos de produtividade voltado para aumento das exportações. As relações importações/exportações faziam parte das políticas industriais, ou seja, do projeto que combinava o avanço das grandes empresas nacionais nos mercados globais e a proteção do mercado interno. As importações não tinham o objetivo de abastecer o consumo das populações. Estas, se beneficiaram, sim, dos ganhos de produtividade e da diferenciação da estrutura produtiva assentada em elevadas taxas de investimento.

Curiosamente, o Brasil já havia adotado políticas ativas de inserção internacional no final dos anos 60, com a criação do Befiex e de outros instrumentos de promoção dos ganhos de produtividade e de estímulo às exportações de manufaturados. A sanha liberalóide, a submissão política e a crença em duendes do livre-mercado destruiu tudo. A economista americana Alice Amsdem, especialista nas experiências de desenvolvimento do pós-guerra em seu livro The Rise of The Rest (2001) deixa claro que, já antes da crise do petróleo de 1973, o Brasil havia constituído um sistema “agressivo” de promoção das exportações.

As indústrias que nasceram do processo de substituição de importações nos anos 40 e 50 – aço, produtos químicos, automóveis, máquinas e equipamentos tornaram-se, na segunda metade dos anos 60, fornecedoras de produtos nos mercados externos. Alice Amsdem demonstra que o sistema de incentivos criados pelo governo brasileiro – como a prática das mini-desvalorizações cambiais, os mecanismos de drawbrack, o financiamento das exportações e os subsídios fiscais reduziram significativamente o risco dos exportadores.

O crescimento brasileiro jamais se valeu de uma estratégia de crescimento puxada pelas exportações – export led – mas, a partir dos anos 60 procurou estimular as exportações para ampliar a capacidade de importar e afastar o risco do estrangulamento externo. Nesse particular, o crescimento brasileiro tem grande semelhança com o crescimento dos Estados Unidos, uma economia continental. Dotados de fartos recursos naturais, os Estados Unidos recorreram a políticas escancaradamente protecionistas para garantir o seu desenvolvimento industrial, voltado, sobretudo para o mercado interno.

O país incorporou 16 milhões de famílias ao mercado de consumo moderno por conta das políticas sociais e de elevação do salário mínimo que habilitam esses novos cidadãos ao crédito. Essa incorporação será limitada se não estiver apoiada na ampliação do espaço de criação da renda. Nas economias emergentes bem sucedidas, a ampliação do espaço de criação da renda é fruto da articulação entre as políticas de desenvolvimento da indústria (incluídas a administração do comércio exterior e do movimento de capitais) e o investimento público em infraestrutura. Esse arranjo, ao promover o crescimento dos salários e dos empregos gera, em sua mútua fecundação, estímulos às atividades complementares e efeitos de encadeamento para trás e para frente.

Não se trata de retornar às politicas dos anos 50, 60 e 70, mas de ajustar a estratégia nacional de desenvolvimento às oportunidades e restrições criadas pela nova configuração da economia mundial.

O modelo adotado desde os anos 90, no entanto, a pretexto de estimular a competitividade da indústria, realizou a operação contrária. Desestimulou as exportações de manufaturados e favoreceu as importações predatórias, filhas diletas do cambio valorizado, dos custos elevados dos insumos de uso generalizado e de um sistema tributário irracional.

Daí, uma nova estapa de crescimento industrial não deve contemplar – nem pode, nas condições atuais da economia mundial – uma estratégia export led. O Brasil está em condições de estabelecer uma macroeconomia da reindustrialização usando de forma inteligente as vantagens que se revelaram recentemente. Não se trata de concentrar os esforços na manutenção de um câmbio subvalorizado mas de desenvolver um conjunto de políticas voltado para o objetivo de expansão do mercado interno sem incorrer nas restrições de balanço de pagamentos. Nessa estratégia, não cabe a determinação da taxa de câmbio como um ativo cujo “preço” é formado pelo movimento de capitais. A taxa de câmbio tem que ser administrada de modo a evitar valorizações bruscas como a observada nos últimos meses, em que o valor da morda brasileira em relação ao dólar passou de R$ 1,85 a R$ 1,70.

Essa estatégia apoiada no mercado interno envolve ademais o equilíbrio do orçamento corrente e a rápida ampliação do orçamento de investimento e o prosseguimento do processo de inclusão e de distribuição de renda. Mas isso será viavel se os recursos oriundos do pré-sal forem destinados à correção das distorções da estrutura tributária e para reverter o encarecimento dos insumos fundamentais, além de gerar espaço e demanda para a reindustrialização.

Mais do que uma política industrial, concebida em termos restritos, o Brasil reclama um arranjo que promova a reindustrialização. Esse arranjo deve estar apoiado no potencial de seu mercado interno, nas vantagens competitivas do agronegócio e da mineração – agora acrescidas das perpectivas do pré-sal – e no seu sistema público de financiamento.

(*) Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor titular da Unicamp. Júlio Sérgio G. Almeida é economista, professor titular da Unicamp.

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