Publicado originalmente na Revista Carta Capital. Se preferir leia a entrevista no seu local original
“Do ponto de vista eleitoral, o Brasil mudou muito após a ditadura militar. Não mudou o suficiente como a situação exigia e ainda exige, mas, os números indicam, mudou o bastante quando se tem como referência o fator mais importante do processo eleitoral: o contingente de eleitores que, por exemplo, decidirá de novo, em outubro, a eleição para a Presidência da República.”
Essa é a constatação feita por Marcos Coimbra, do Vox Populi, um dos mais influentes e respeitados institutos de pesquisas do País, com larga experiência internacional. Ph.D. em Ciências Sociais, e refinado analista político, Coimbra terá sob o seu encargo as análises da série de pesquisas eleitorais que CartaCapital publicará mensalmente
Por MAURÍCIO DIAS
A primeira delas será divulgada na próxima semana. A pesquisa CartaCapital/Vox Populi, além da tradicional medição da intenção de voto nos concorrentes à eleição presidencial, fará um retrato mais preciso da disputa a partir de sondagens em torno do comportamento social, econômico e educacional dos eleitores brasileiros. Medirá, entre outras coisas, a influência das políticas governamentais no voto, o impacto da crise política nos eleitores, e o desempenho da oposição. A pesquisa CartaCapital/Vox Populi é um esforço de oferecer ao leitor um diferencial de cobertura jornalística capaz de ajudar na percepção do jogo eleitoral.
Nesta entrevista, Marcos Coimbra mostra algumas das mudanças mais importantes ocorridas nas eleições presidenciais desde 1989. A saber: no estágio político brasileiro, Lula forma a identidade dos eleitores; o aumento de escolaridade do eleitorado e a injustiça social formam um conflito que gera instabilidade política; aumentou a média de idade do eleitor e, por isso, cresceu o interesse pela política e diminui o interesse por grandes mudanças.
CartaCapital: O que se percebe no processo eleitoral da eleição presidencial de 1989 para esta de agora, em 2006?
Marcos Coimbra: A diferença de maior efeito no processo político-eleitoral ocorreu no nível educacional do eleitor. A mudança, evidentemente, poderia ter sido maior e mais rápida, mas ainda assim é um conjunto de mudanças impressionante. Na eleição de 1989 havia um grande número de pessoas com escolaridade muito baixa: 61% tinham, no máximo, o antigo curso primário. Eram quase dois terços do eleitorado. Inversamente, tendo completado o antigo ginásio, apenas 21% do eleitorado. Hoje, apenas 17 anos depois, a faixa de escolaridade baixa caiu de 61% para 36%; a de ensino médio e superior passou de 21% para 40%. Isso tem evidente impacto na eleição. As campanhas não se dirigem mais a esses dois terços de eleitores de baixíssima escolaridade.
CC: Há alguma outra mudança importante?
MC: Houve. Embora não tão dramática, não tão visível quanto a da escolaridade, foi a modificação da estrutura etária. O eleitor que vai votar este ano é, na média, mais velho do que o que votou em 1989. Naquela eleição, havia 44% de eleitores com menos de 30 anos. Portanto, quase a metade do eleitorado. Inversamente, os eleitores com mais de 40 anos eram 35% e agora são 45%. Isso também interfere na agenda da eleição.
CC: O que isso pode refletir na boca da urna?
MC: Quando se tem um eleitorado mais jovem, a disposição para o risco talvez seja maior. A falta de referências certamente é maior.
CC: O universo de eleitores é mais escolarizado. Ele não parece, por outro lado, menos interessado em política?
MC: As pesquisas comparadas não confirmam isso. Fizemos essa pergunta no início de 1989 e repetimos a questão no início de 2006. Os resultados confirmam essa tendência no aumento de interesse. Pessoas muito interessadas em política, em 1989, eram 10%; hoje chegam a 20%. As “mais ou menos” interessadas eram 17%, hoje são 35%. Então, tínhamos apenas um quarto da população dizendo-se “muito” ou “mais ou menos” interessada em política. Hoje, eles passam da metade na soma de 20% com 35%. Por outro lado, despencou a proporção de pessoas que se dizem “nada interessadas” em política. Eram 47% em 1989 e, hoje, são 22%.
CC: O que impulsionou essa mudança?
MC: Isso é reflexo na escolaridade mais alta e na tendência de envelhecimento da população. Estamos vendo um constante e regular aumento do interesse por política. Se conjugarmos essas mudanças faz sentido perguntar se um candidato, como ocorreu com Fernando Collor, seria vitorioso hoje. Eu digo que não. Só foi possível naquele Brasil.
CC: O presidente Lula esteve presente em todas as disputas e também foi mudando.
MC: A presença de Lula é um dos ingredientes mais importantes neste momento eleitoral. A partir da sucessão de vezes que Lula disputou as eleições presidenciais, formou-se uma clara segmentação do eleitorado que se dividiu entre votar ou não votar em Lula. Dá para ver com clareza que se formaram identidades muito claras a partir desse ponto de vista.
CC: Lula como eixo do processo eleitoral.
MC: Exatamente. Foi a única coisa constante ao longo desse período. No Brasil, a força estruturante foi uma pessoa, uma candidatura. Foi Lula. Essa é a identidade fundamental para o eleitorado no Brasil. Isso guarda uma certa analogia com outras sociedades contemporâneas: republicano ou democrata, nos Estados Unidos; trabalhista ou conservador, na Inglaterra. Pelas condições de nosso desenvolvimento político, o que nós, de fato, construímos foram essas duas grandes identidades.
CC: Em resumo, os eleitores de Lula e os não eleitores de Lula.
MC: Essas duas parcelas têm quase exatamente o mesmo peso. Representam, cada uma, cerca de um terço do eleitorado. Hoje, em várias pesquisas feitas ao longo deste ano, a exatidão dessa proporção chama a atenção.
CC: Falta um terço de eleitores nessa conta.
MC: Eles são de importância fundamental. Esse terço explica a vitória de Lula em 2002. Eles formam uma parcela de eleitores que não pode ser chamada de eleitores tradicionais de Lula porque votaram nele apenas uma vez. Mas deixaram de ser “não eleitores” de Lula porque aceitaram votar uma vez.
CC: E os eleitores jovens, que nunca votaram?
MC: Eles serão de muita importância nesta eleição. Para compreender o lado que a eleição tende a ir é preciso saber como cada um desses segmentos vai se comportar. Cada vez menos, com discussões genéricas sobre “o eleitor” e, cada vez mais, com a percepção dos tipos de eleitor. Isso, tratando-se de eleição presidencial.
CC: Além da presença de Lula como fator permanente, o que não mudou nesse período?
MC: A distribuição de renda. É o lado negativo dessa história e deve preocupar. Enquanto houve essas mudanças na educação e na estrutura etária, vimos o quão pobre continua a ser o eleitor brasileiro. Em 1989, o eleitor de renda muito baixa, de até cinco salários mínimos de renda familiar, era de 74%. Hoje, é de 73%. Não mudou nada apesar da grande transformação no perfil educacional. A coexistência dessas duas tendências é claramente problemática. Na medida em que aumenta a escolaridade tende a aumentar a expectativa em relação à renda. Isso é um elemento de instabilidade para o sistema político.
CC: E qual é o impacto do aumento do contingente eleitoral?
MC: O universo eleitoral é impressionantemente maior do que em 1989. Em 1990 havia 83 milhões de eleitores. No fim de 2005, eram 122 milhões. Em 15 anos, houve um crescimento de 50%. Uma incorporação de mais 40 milhões de novos eleitores. Acho que uma das razões que explicam a estabilidade num cenário com tanto potencial de instabilidade é basicamente o PT…
CC: Traduza, por favor.
MC: Foi o partido que assegurou essa possibilidade de incorporação maciça do eleitor, nessas condições perturbadoras de desequilíbrio entre educação e renda. O PT foi a existência de uma possibilidade de mudar dentro da ordem, pelo caminho da política.
CC: No universo de eleitores de Lula, qual o que sofre mais impacto com a crise política?
MC: São dois os tipos de eleitores que se mostram mais incomodados. O eleitor tradicional e o eventual, aquele que votou apenas em 2002. Esse por sinal votou duas vezes. Votou no primeiro turno e repetiu o voto no turno final. Os mais afetados são os eleitores tradicionais que tendiam a fazer uma grande associação entre Lula e o PT. Não que confundissem o presidente com o partido, mas, sim, viam os dois como um todo. Quando pensaram em Lula pensaram sempre no partido também. Sofreram muito com o desgaste do PT.
CC: E a reação dos que votaram apenas uma vez em Lula na eleição passada?
MC: São os eleitores de Lula no segundo turno. Foi o eleitor que deu a vitória a ele. Somados os votos históricos e os votos novos do primeiro turno, Lula não fez maioria em 2002. Ele precisou incorporar um novo contingente de eleitores no segundo turno. Esses são os que menos se mostram afetados pela crise. Tinham menos expectativas, suas apostas eram mais baixas. Pelo desempenho do governo, hoje, eles se sentem satisfeitos. Cobram muito pouco no plano político.
CC: Não fazem cobrança no plano ético?
MC: Ninguém gosta de deslizes éticos, seja de quem for. A questão é o quanto isso toca. Alguma coisa toca todo mundo, é evidente.
Comente com o Facebook