Em meio à calamidade sanitária decorrente da pandemia do Covid-19, o governo Bolsonaro mergulhou numa profunda crise de governo, que desencadeou inédita crise institucional.
O governo Bolsonaro veio, desde sua posse até a explosão da pandemia, enredado em sucessivas crises políticas. Primeiro, pela relação do presidente e de seus filhos, com milicianos, inclusive, os suspeitos do assassinato de Marielle; depois, pela beligerância como trata os chefes de outros poderes, seja do legislativo, do judiciário, e executivos estaduais e municipais; finalmente, por causa do péssimo desempenho dos seus ministros, um verdadeiro desfile patético de incompetência, cometimento de crimes de diversos enquadramentos jurídicos e verborreia ignóbil. Não é exagero afirmar que já era um governo em crise.
Esse governo apostou no desmonte do estado de bem-estar social criado pela Constituição de 88, que, transformada em políticas públicas e programas sociais pelos governos do PT melhorou a vida de dezenas de milhões de pessoas e reduziu as desigualdades sociais.
Derrubou o investimento público, apoiado na Emenda Constitucional 95, queimou ativos públicos, e extinguiu direitos previdenciários, retornando o país ao mapa da fome e milhões de pessoas à faixa da extrema pobreza.
Bolsonaro nunca teve uma base parlamentar orgânica ou, se teve, era insuficiente para garantir a aprovação de matérias controversas, em particular a pauta econômica. Como esta é de alto interesse do mercado, Rodrigo Maia e David Alcolumbre assumiram a responsabilidade por sua aprovação operando na prática, como base parlamentar de Bolsonaro. Para descontamina-la, Maia construiu o argumento de que é uma pauta da “Casa”, “de interesse do país”, não do governo Bolsonaro.
Apesar de todo esforço dos presidentes da Câmara e do Senado, liderando o centrão e a direita, para aprovação da pauta econômica do governo, enfrentaram combativa resistência do PT e dos demais partidos de oposição, aos quais deve ser atribuído o mérito pelas poucas derrotas sofridas por Bolsonaro no Congresso. Entretanto, tem que ser reconhecido que, a atuação atabalhoada do governo, e o conjunto de bizarrices, o verdadeiro show de horrores protagonizado pelos bolsonaristas, acabou facilitando a obstrução da oposição.
Enquanto isso, o presidente Bolsonaro concentrava todas suas energias em tentar se blindar, e a seus filhos, das investigações sobre seus crimes, e em animar seu séquito, cada dia mais reduzido, pilotando o “gabinete do ódio”.
O advento da pandemia lhe impôs novas e mais graves responsabilidades. Ele teria que atuar, de forma urgentíssima, em duas frentes: na da saúde, e na da economia para conter a expansão da pandemia e mitigar o impacto da recessão dela decorrente. Infelizmente, como era previsto, Bolsonaro se mostrou absolutamente incapaz de cumpri-las.
Na saúde, suas tarefas se dividiam entre, de um lado, tomar as providências para a contenção da expansão da pandemia através do isolamento social, de outro, estruturar o SUS para o atendimento dos pacientes testados positivo, mantendo o atendimento regular do sistema. Ações que deveriam ser, necessariamente, coordenadas entre os entes federados.
Na economia, teria que adotar medidas para garantir a renda dos trabalhadores informais e dos formais, e às micro e pequenas empresas para garantir sua sobrevivência econômica e a manutenção dos empregos. Também, teria que coordenar a conversão produtiva da indústria, comercio e serviços para garantir o abastecimento, e a continuidade da prestação de serviços essenciais para a população. Finalmente, teria que apoiar estados e municípios para que, ante a queda da arrecadação decorrente da recessão da pandemia, tivessem receitas recompostas para custear o funcionamento do SUS e a manutenção dos serviços públicos. Também não fez nada disso.
Suas decisões foram, invariavelmente, tardias e insuficientes. Quando chamado a conduzir o país no combate à pandemia, expôs de forma vexatória, sua inépcia para a gestão pública e, mais uma vez, fracassou, afundando numa irreversível crise de governo.
Bolsonaro não só não cumpriu, como desobedeceu as orientações da OMS e, desrespeitando pessoalmente as medidas de isolamento social, em atitude suspeita de intencionalmente disseminar o vírus, manteve contato físico com pessoas nas ruas, pondo em risco de morte milhões de brasileiros.
A absoluta ausência no cumprimento das suas mais relevantes e urgentes responsabilidades afunda o governo Bolsonaro numa irreversível crise de governo. O patrocínio do desrespeito ao isolamento caracteriza o crime de responsabilidade pelo qual deve ser impedido.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro criou inúmeros conflitos com governadores que, no vazio deixado, adotaram as medidas necessárias para contenção da pandemia. Ao tentar impedi-los de instalar barreiras sanitárias nas fronteiras interestaduais, foi derrotado pelo STF. Sofreu varias outras derrotas em ações judiciais vendo, em sucessivas oportunidades, prerrogativas do executivo federal serem exercidas por outros poderes, ou entes federados.
Inúmeras vezes, o congresso e o judiciário têm agido no vazio institucional deixado pelo executivo. Foi assim, por exemplo, na aprovação da “renda emergencial”, para trabalhadoras e trabalhadores do setor informal. Também, na rejeição do plano Mansueto e aprovação do Programa de Auxílio Emergencial para estados e municípios, entre muitas outras medidas que requeriam Medidas Provisórias.
Configurou-se uma inédita crise institucional que, apesar da sua gravidade, se mostrou necessária para que o Estado brasileiro execute as medidas de combate à pandemia, e a suas consequências econômicas mais diretas.
Ao aderir, mais uma vez, a manifestações pelo fechamento do regime, Bolsonaro sofreu novas dissensões em suas base política e social. Para culminar, na disputa travada com Moro pelo controle da PF, ambos tentando aparelha-la, o agora ex-ministro desembarcou do governo atirando. As movimentações políticas pelo afastamento do presidente ganharam, com esse episódio, a adesão de importantes setores da direita. O PGR solicitou ao STF a instauração de investigação para apurar as acusações trocadas entre eles, o que pode contribuir para a instauração do processo de impeachment.
Nessa nova conjuntura, às amplas parcelas da sociedade que já defendiam o afastamento do presidente para que o governo central possa entrar na guerra contra o coronavírus, se somaram os segmentos que defendem seu afastamento por causa da adesão do presidente às mais recentes manifestações pelo golpe, e os que passaram a defender o afastamento por causa das suas tentativas de interferir nas investigações em curso na PF, denunciadas por Moro como se ele não fosse cúmplice de Bolsonaro.
Partidos e instituições correram para apresentar pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados. O PT aprovou a bandeira de ordem “Fora Bolsonaro!”. Entretanto, um simples impeachment levará à Presidência o vice-presidente Mourão, eleito na chapa de Bolsonaro, fruto do golpe de Estado de 2016, da prisão ilegal de Lula e da vitória de Bolsonaro num eleição sob suspeita de fraude na onda das Fake News.
O andamento de um processo de impeachment, tem que estar em compasso com a aprovação da PEC 227/2016, liderada pelo deputado Bohn Gass, que já teve sua admissibilidade aprovada na CCJ da Câmara. Ela estabelece que, na hipótese de afastamento do presidente até três anos e meio antes do fim do mandato, deve ser realizada nova eleição em noventa dias. Portanto, a alternativa democrática para a saída dessa crise é o “Fora Bolsonaro!”, com eleição.
Afonso Florence é deputado Federal (PT/BA)
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