O desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo russo em finais do século XIX e inícios do Século XX impunha uma série de desafios para uma estratégia revolucionária marxista. Uma das principais era a relação entre a classe operária que lideraria a revolução e o campesinato que é a maioria da população, ou o que é o mesmo dizer, a relação entre os objetivos socialistas e as reivindicações democráticas por terra para quem nela trabalha. Assim, a necessidade da “aliança operário-camponesa” como via para consolidar uma maioria revolucionária levou aos bolcheviques a apoiar as reivindicações camponesas.
Em setembro Lenin tinha afirmado “Apenas um governo bolchevique atenderá aos camponeses”. Como nas outras reivindicações populares que tinham deflagrado a revolução em fevereiro, as outras correntes socialistas que participavam do governo, vacilavam.
Logo após o Comitê Militar Revolucionário, formado pelo Soviet de Petrogrado em 12 de Outubro, declarara deposto o governo provisório no dia 25, se abre o II Congresso dos Soviets de Toda Russia.
Na manhã desse dia, o Comitê lançou uma proclamação nos seguintes términos: “O governo provisório foi deposto. O poder estatal passou para as mãos do órgão do Soviet de Deputados Trabalhadores e Soldados, o Comitê Revolucionário que lidera o proletariado e a guarnição de Petrogrado. A causa pela qual o povo lutava: a proposta imediata de paz democrática, a abolição da propriedade da terra, o controle operário da produção, a criação do governo soviético está assegurada”
Ao dia seguinte o Congresso aprova o decreto da revolução agrária.
O CAMPESINATO NA REVOLUÇÃO – POR MIRIAM NOBRE
Estrutura agrária na Rússia pré-revolução
Nos anos que precederam a revolução a Rússia era um país essencialmente rural, com 85% da população no campo. A maioria era camponeses pobres com pouca ou nenhuma terra.
Boa parte das terras tinha como proprietária legal a comunidade territorial, mir ou obshchina. Com governo próprio normalmente era dominada pelos camponeses mais ricos e governada pelos anciãos. Cada família detinha em regime de propriedade privada e passível de transmissão por herança, apenas uma pequena área, o restante sendo distribuída pelo conselho comunitário levando-se em consideração o tamanho da família e, portanto, sua capacidade de trabalho e necessidades de consumo. Parte das terras era trabalhada coletivamente. Enquanto para os populistas russos a propriedade comunal era um resquício do feudalismo que deveria ser abolido, Marx a considerava um possível “ponto de partida de uma evolução comunista”.
A revolta camponesa
Um dos primeiros decretos do governo bolchevique é oficializar a abolição do latifúndio já efetiva na prática e deixar aos camponeses a divisão e socialização das terras, em ruptura com o programa bolchevique que previa a nacionalização das terras.
“Não podemos ignorar a decisão de base popular, mesmo que não estejamos de acordo com ela… Devemos dar às massas populares inteira liberdade de ação criadora… a classe camponesa deve ter a firme certeza de que não existem mais nobres no campo, e é preciso que os camponeses, por eles mesmos decidam tudo e organizem sua existência.” (Lênin)
As mulheres camponesas
As comunidades tradicionais camponesas reconheciam a importância do trabalho das mulheres, mas no contexto da família patriarcal. A pressão pelas terras nos anos que se seguiram à revolução fez as comunidades redividirem e reorganizarem as parcelas de terras. A pressão sobre as terras das mulheres sozinhas (viúvas, solteiras ou sem a presença dos maridos) era tanta que muitas delas terminavam por se casar de novo, ir viver com outros parentes ou abandonar o campo. Em muitas comunidades elas não tinham direito à fala nas assembleias e assim não encontravam acolhimento para conflitos sobre limite de área ou apoio nas atividades mais pesadas.
Eram justamente as mulheres viúvas ou aquelas que os maridos estavam integrados ao exército vermelho que mais participavam das atividades organizadas pelo Zhenotdel (comitê de mulheres). Ainda assim proporcionalmente poucas mulheres rurais participavam dos Congressos, havia pouca presença das organizadoras do Zhenotdel nas áreas rurais, e estas encontravam muita resistência, terminando por tratar da emancipação das mulheres a partir de questões práticas como a melhoria de técnicas agrícolas. Em 1924 estudo realizado em 34 províncias da Rússia Central demonstrou que as famílias chefiadas por mulheres representavam a 23% das famílias sem terra, 16% das pequenas unidades de produção e 8% das áreas médias. As dificuldades enfrentadas pelas mulheres sozinhas, muitas com filhos pequenos, que tentavam se manter como agricultoras funcionava como uma ameaça para todas as mulheres rurais. A subordinação e até mesmo a violência doméstica no seio da família patriarcal podia parecer a muitas uma melhor condição.
Passos atrás
O difícil abastecimento das cidades já implicara em requisições de cereais durante os governos de Nicolas II e de Kerensky, contribuindo para a queda de ambos. Na primavera de 1918 o governo soviético se utiliza do mesmo procedimento agora realizado por operários convocados pelos sovietes não por isto menos violentos e encontrando forte resistência camponesa , o que resulta em notável queda da produção agrícola. A Nova Política Econômica implantada no fim da guerra civil em 1922 até 1928 se baseia em uma economia mista integrada pela economia estatal e a iniciativa privada, com os camponeses ricos os “kulaks” garantindo o abastecimento nacional de produtos agrícolas. Ainda assim a escassez alimentar não foi resolvida e Stálin progressivamente concentrando o poder aposta na produção estatal, com a coletivização forçada nas terras (1929-1933) e o expurgo de dirigentes e intelectuais acusados de organizar um partido camponês.
Aprendendo com os erros
Nos anos 1970-1980 os esforços para teorizar processos revolucionários e de desenvolvimento autóctone no chamado terceiro mundo demandam outra reflexão sobre os camponeses, que não seja anunciar sua extinção – mesmo porque continuavam existindo – ou a subordinação às lógicas e estruturas organizativas do operariado industrial como sujeito revolucionário. A crítica ao período stalinista também pôs em questão a coletivização forçada.
Entre os autores recuperados está o economista agrário Alexander Chayanov que contribuiu nos primeiros anos da revolução e foi vítima do expurgo stalinista. A sugestão de leitura que se segue é de seu romance “Viagem de meu irmão Alexei ao país da utopia camponesa” publicado em grande tiragem em 1920. Um funcionário soviético viaja até o ano de 1984 e encontra um país onde os locais de moradia e trabalho são descentralizados e menos demarcados entre rural e urbano, onde a economia mista não é só estatal e privada, mas conta com um expressivo setor social-comunitário. E preciso um pouco de paciência para ultrapassar o machismo paternalista – como a sugestão de que as jovens leitoras pulem o capítulo dedicado à organização econômica camponesa – mas também, em relação aos próprios camponeses – a fina comida e a boa cultura provem de Moscou.
No século XXI mais uma vez Chayanov é retomado nomeando um Manifesto que trata da recampesinação como prática concreta na China, na Europa do Leste e mesmo no Brasil, e como horizonte político. Falta ainda pensar uma utopia camponesa que não seja estruturada pela família consanguínea e pela divisão do trabalho em moldes patriarcais.
Para ler mais:
Chayanov, Alexander. Viagem de meu irmão Alexei ao país da utopia camponesa. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1991. Disponível em http://www.educacaopublica.rj.gov.br/cultura/prosaepoesia/0133/arqs/v_imprimir.pdf
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