O levante soviético foi uma promessa libertária e, ao mesmo tempo, dez anos depois, um desenlace cada vez mais ditatorial. As reivindicações de paz, pão e terra, entretanto, ainda compõem os sonhos e as utopias da esquerda que nunca mais seria a mesma depois de 1917.
A Grande Guerra e a fome marcaram profundamente 160 milhões de pessoas que viviam num território imenso, a sexta parte da superfície do globo. A Grande Guerra (1914-1919) foi um conflito imperialista de proporção global entre nações européias. A brutalidade e a catástrofe que a guerra provocou, levou o povo russo a questionar de forma profunda o imperialismo, a monarquia e a economia sustentada por ambos. Greves que tiveram grande alcance e fundaram a noção coletiva de organização, é bem verdade, datam desde 1905 e são o começo do acúmulo que o ano de 1917 consagrou.
Para alguns, 1905 ficou conhecido como o “ensaio geral” de 1917. Rússia e Japão haviam travado guerra pela posse de terras da China e da Manchúria. Essa disputa imperialista pelo leste da Ásia levou o Czar Nicolau II a sucessivas derrotas, que drenaram a comida e a força do exército russo.
Os levantes na fábrica Poutilov tiveram o efeito de conclamar toda a classe trabalhadora à revolta. Operários das usinas de São Petesburgo se dirigiram ao Palácio de Inverno reivindicando terras aos camponeses e mais participação política, inclusive o direito de votar. Colocaram-se à disposição para morrer na frente do palácio se as demandas não fossem atendidas. No domingo, 09 de janeiro de 1905, foram massacrados pela monarquia. O sangue dos operários sobre a neve marcaria o dia – o Domingo Vermelho.
As greves se estenderam por vários dias. Os operários que cumpriram a tarefa de distribuir recursos às famílias das vítimas daquele domingo, fundaram um comitê de representação que denominaram soviete (que quer dizer conselho, em russo).
Em 14 de junho de 1905 aconteceu o levante dos marinheiros do Encouraçado Pontemkin – momento que foi gravado na história revolucionária pelas imagens do cineasta Eisenstein — quando ele atracou na cidade de Odessa, ela já estava convulsionada. O número de mortos causados pelo czar chegou a dois mil. Desde o Domingo Vermelho, o czar já havia adotado o voto censitário, embora a reivindicação dos revoltosos demandasse o sufrágio universal. Dentro os condenados pelos conflitos, estava Leon Trotsky. Ainda que interrompida, a revolta de 1905 marcaria o combate ao regime czarista.
A QUESTÃO DEMOCRÁTICA – POR RAUL PONT
Há um século a revolução russa surpreendia o mundo. A conjuntura em que ocorre surpreende seus próprios protagonistas e rompe com alguns conceitos consolidados. A participação da Rússia na Guerra Mundial foi um desastre para o regime czarista. Empurrada pela Entente Cordial, a Rússia czarista entra numa guerra para a qual não estava preparada e a crise no front – logística, armamento, desabastecimento, derrotas – acelera a crise do regime.
O pano de fundo, no entanto, não é a única ruptura. No campo socialista a visão predominante era de uma revolução política que instaurasse uma república constitucional com ampliação da liberdade e da democracia ausentes no czarismo.
Para o Partido Operário Social-Democrata Russo (PSODR) e a maioria da socialdemocracia europeia, o caminho passava pela Alemanha, a Inglaterra e outros países com um maior desenvolvimento urbano e industrial, portanto, com uma classe operária mais consciente e organizada. A Social Democracia alemã era o principal exemplo ainda que, nesses países mais industrializados da Europa, os representantes socialistas nos parlamentos haviam conciliado com as declarações de guerra, negando seus compromissos internacionalistas.
A agudização das consequências da Guerra Mundial no país que Lenin considerava o “elo mais fraco da cadeia capitalista” irá contrariar outro conceito da elaboração teórica predominante. A ideia de que a derrubada do regime czarista, necessariamente, seria seguida de uma etapa de fortalecimento do desenvolvimento capitalista e do regime constitucional parlamentar. Com mais democracia, com a representação do campo socialista e com a consolidação de instituições semelhantes à Europa Ocidental. Afinal, as palavras de ordem dos socialistas russos de “Paz, Pão e Terra” não apontavam para uma ruptura radical.
A Rússia, no entanto, havia vivido a insurreição de 1905 e esta deixara uma forte experiência e um rico aprendizado sobre o comportamento das classes e seus partidos nesses momentos de crise e, principalmente, o protagonismo das classes populares na auto-organização dos “conselhos” de resistência, de luta e de representação que Trotsky sinalizou no seu conjunto como o “Ensaio Geral” da revolução que se aproximava.
O POSDR há mais de 15 anos convivia com a cisão entre “bolcheviques” e “mencheviques”, mas o grande teste na capacidade de compreender cada conjuntura, cada momento de uma sociedade em grande convulsão ocorrerá após a queda do Czar, quando em abril Lenin defende no Partido a proposta de “todo poder aos sovietes”, frente à crise de legitimidade e representação da Duma, o poder parlamentar que substituirá o Czar.
A singularidade da tese é uma mudança radical da tática etapista em curso. É um dos exemplos mais ricos da capacidade política de um Partido, de uma força política, avaliar os acontecimentos, compreender as mudanças e agir tomando novos rumos.
A gravidade dos acontecimentos no front, a escassez dos alimentos, a exaustão da guerra e a fome são a base objetiva para que as massas compreendam que a paz, o pão e a terra não serão alcançados por um parlamento influenciado pela França e a Inglaterra e com fortes interesses materiais na manutenção do conflito.
Os “Conselhos Operários” estendem-se aos camponeses, aos soldados e a outras camadas populares que estabelecem uma crescente disputa de representação e legitimidade com a Duma e os parlamentos locais. Estava colocada a questão de um duplo poder na sociedade. Os bolcheviques desequilibraram com ousadia ímpar este impasse, transformando o processo de revolução política que a Rússia vivia em uma Revolução Social de imensa consequência mundial: surgimento do primeiro Estado Socialista, divisão histórica do movimento socialista com o surgimento dos partidos comunistas em todo mundo e a primeira grande experiência entre Planejamento versus Mercado.
A tese de abril, “todo o poder aos sovietes” concretiza-se na Revolução de Outubro e no surgimento de um governo revolucionário decidido a construir uma sociedade socialista.
A tese soviética, no entanto, não era apenas uma forma de materializar os anseios das massas que, espontaneamente, vinham fortalecendo uma experiência nos “conselhos” e que se colocou como alternativa de poder numa conjuntura bem determinada.
A palavra de ordem encerrava um grandioso desafio, isto é, como convertê-lo em uma nova institucionalidade, em um novo sistema alternativo de representação democrática que fosse superior a democracia burguesa ainda profundamente marcada pelo poder econômico, pelo voto censitário, pela exclusão das mulheres e dos pobres que não tinham acesso à educação, mesmo na Europa ocidental.
Os “conselhos” foram capazes de arregimentar e organizar amplos setores para derrotar o regime czarista, mas, não se constituíam, eram insuficientes para construir outra sociedade no plano de sua estruturação política. O pensamento clássico do marxismo do produtor – legislador simultaneamente, as ideias da democracia e ação diretas, da democracia“ não-delegada” requeriam, necessariamente, condições favoráveis para florescer.
A realidade histórica foi outra. A brutal guerra civil, o cerco e a invasão imperialista na Rússia e as próprias contradições internas da revolução dificultavam ao máximo as experiências de superação democrática.
A guerra civil e a invasão cobraram seu preço. Os outros partidos do campo socialista e popular foram proibidos e a própria democracia interna entre os bolcheviques foi desaparecendo. O princípio básico do pluralismo no interior dos sovietes esgotou-se e a tese do “partido único” da classe consolidou a tendência à burocratização autoritária.
A morte de Lenin e a vitória de Stalin na luta interna dos comunistas russos bem como o refluxo da onda revolucionária que sacudiu a Europa no pós-guerra consolidou a tese stalinista de construir “o socialismo em um só país”. A Internacional Comunista, a III Internacional, tornou-se um instrumento de defesa e de propagação do modelo soviético, estiolando o debate e a crítica no pensamento marxista.
A Revolução inconclusa deixou uma grande dívida. A burocratização, o partido único, o planejamento centralizado autoritário soterrou a singela definição da “ditadura democrática dos operários e camponeses” ou “a ditadura do proletariado” diante da “ditadura do capital” exercida via o pluralismo e a liberdade sofisticados ideologicamente, mas sob o domínio do poder econômico e de uma complexa institucionalidade.
As experiências socialistas em outros países ao longo do século XX sofreram a influência dessa matriz ou não se transformaram em uma alternativa sólida como ocorreu na Iugoslávia e em outras tentativas autogestionárias na esfera da produção e sua extensão no plano político.
A questão democrática continua com o grande desafio para a estratégia socialista do século XXI de todos aqueles que não abdicaram da defesa de que o socialismo não existe sem ser profundamente democrático.
Primavera, Outubro de 2017
Para ler mais:
Caderno Opção Socialista 1
Caderno Opção Socialista 2
Caderno Opção Socialista 3