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A urgência da conjuntura | Luiz Marques

Para o lutador social Paulo Galo

…as nuvens surgiram como a loucura numa alma.”

 Vinícius de Moraes

As classes dominantes, com destaque para a aliança entre as finanças e o agronegócio, com apoio do setor empresarial como patenteado pela Federação de Indústrias de São Paulo (FIESP), tutoraram os golpes de 2016 (deposição da presidenta Dilma Rousseff, sem crime de responsabilidade ou corrupção) e o impedimento da candidatura de Lula da Silva em 2018 (transformado em preso político). Por conseguinte, foram responsáveis pela ascensão de Jair Bolsonaro, dos porões ao pódium da política. A mídia, ao apropriar-se das concentrações de massas em 2013 e retumbadas em 2015, emprestou uma aura espontânea à escalada golpista. O Judiciário, que não tem tradição democrática – vide o Supremo Tribunal Federal (STF) em 1964 – forneceu o carimbo de legalidade confundida com legitimidade à pantomima que abriu caminho à extrema-direita. A Lava Jato e o juiz parcial de Curitiba compensaram em livros e palestras remuneradas, com cachês de pop stars, o serviço sujo. Saíram da história para o opróbrio, com as revelações do Intercept sobre a corrupção das leis constitucionais e do regulamento da magistratura para promover o lawfare do ex-retirante nordestino e do Partido dos Trabalhadores (PT). Bolsonaro, assim, concorreu como o cavalo do comissário.

Porém, não se mostrou tão adestrável em sua boçalidade e admitida tacanhez: “eu não era o melhor candidato”. Logo escancarou a mediocridade de sempre, em quase trinta anos no baixo clero da Câmara de Deputados. Coisa que deixou com um abacaxi na mão os mentores da canhestra aventura. A obsessão pela reeleição do atual mandatário, desde a posse, sobrepujou as tarefas inerentes ao governante e desmilinguiu as expectativas da Avenida Paulista. Inepto para representar a nação, assumiu a condição de chefe de facção e perdeu a confiança de segmentos dos barões do capital. Jegues amargaram o gosto das promessas descumpridas. Convescotes das “elites” evidenciaram as defecções. Sua base de sustentação passou a se concentrar nas milícias, blindadas por Medidas Provisórias (MPs) que facilitaram a legalização e aquisição de armas, nas Polícias Militares estaduais e setores das Forças Armadas que aceitaram servir o “mau militar” que, na reserva, virou um capitão postiço.

O cesarismo fracassou, amém

As Forças Armadas não agem sem o consentimento majoritário das frações empoderadas da burguesia. A pretensão de viabilizar uma “revolução passiva”, na acepção de Gramsci, na direção de um regime político cesarista, com Bolsonaro como personalidade heróica (mito) fracassou. A exemplo das classes hegemônicas, a caserna está fraturada. A conciliação pelo alto, a “revolução sem revolução” dá mostras de se desmanchar no ar. O Global Positioning System (GPS) dos milicianos funciona para o assalto em zonas urbanas, aquém do circuito estatal. Mas orienta mal a política nos complexos meandros da sociedade formal. Restou o blefe do ministro da Defesa, avesso ao voto eletrônico tout court porque contra os tentáculos estadunidenses na Base de Alcântara, Embraer, Eletrobrás, Pré-Sal e Petrobrás – nunca foi. O embuste ecoou nas hierarquias do Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Santos Cruz, defenestrado no alvorecer do desgoverno, cobrou a intromissão desastrosa do general Braga Netto na falsa polêmica sobre o voto impresso: “Não é assunto do Ministério da Defesa”, retorquiu o ex-ministro da Secretaria de Governo. Acorde-se com o barulho. O rufar das discordâncias fardadas prenuncia novos horizontes. Sem nuvens cinzas e sem loucuras.

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”, reza o ditado espanhol. As classes populares devem tomar a ofensiva e politizar a demanda pelo impeachment, somada à rejeição das políticas neoliberais. A luta contra o fascismo deve andar de mãos com a luta contra o neoliberalismo. As reivindicações que colorem os atos pela suspenção do mandato esperam pela chamada que enfeixe a dispersão de reclames: educação, saúde, emprego, melhorias salariais, combate à fome, não às privatizações, igualdade de gênero e étnico-racial, liberdade identitária, proteção da Amazônia… A criatividade antifascista e antineoliberal está desafiada a encontrar um conceito-síntese de interlocução com o sofrimento plural do povo, que não se esgota nos mais de 500 mil óbitos da pandemia. O tratamento precoce do Coronavírus com hidroxicloroquina, ivermectina e demais extravagâncias preteriu, ainda em meados de 2020, a aquisição de vacinas: sem superfaturamento de preços, gracias. Ignorou-se as recomendações de especialistas em infectologia e imunologia, da Organização Mundial de Saúde (OMS), e o que faziam os países melhor sucedidos (Nova Zelândia, Islândia, Austrália) na contenção da doença pandêmica, que assola o planeta. A tese da imunidade de rebanho, pela contaminação e não pela vacinação, corolário do charlatanismo, selou a vida de (inoc)entes queridos.

Fiel a várias das catorze características “irracionais” elencadas por Umberto Eco (O Fascismo Eterno, 1997), em repulsa ao modernismo, governantes que serão levados a um tribunal internacional abjuraram da ciência e do conhecimento em prol de “fatos alternativos”, para justificar a necropolítica que contabilizou centenas de milhares de mortes evitáveis. O Dicionário de Oxford estava correto em destacar a noção de Post-Truth, a Pós-Verdade. Esta revela o espírito da época sombria, em questão. Fascistas falam a Novilíngua, o idioma fictício criado pela pena literária de George Orwell, ao torcer as palavras através da ressignificação de sentido para homologar a tortuosa e torturante lógica do hiperautoritarismo criminoso.

A participação de lideranças fisiológicas em postos chaves da administração federal, como a Casa Civil, é uma “fatalidade” não atribuída à vontade de quem porta a caneta Bic, apesar do tal proclamar-se cria do Centrão. Denunciada pela Confederação Israelita do Brasil (CONIB), a aproximação com o neonazismo estampada na recepção de Bolsonaro à deputada alemã, do partido Alternative für Deutschland (neonazista), foi desclassificada como “mais uma narrativa” por bolsominions. Leve-se a sério os rancores profundos de bolsões da classe média diante da crise econômica e das pressões dos grupos sociais subalternos. Inventam até outro idioma para fugir à verdade. Consideram qualquer crítica, embora pertinente, uma traição aos retrocessos que preconizam em vez de um aprimoramento do saber coletivo.

O próprio futuro do país vê-se comprometido pelo idioma dissimulador dos aficcionados pela mentira. Estamos na contramão climática da União Europeia (UE), que decidiu taxar a importação de produtos intensivos em carbono. O aumento de combustíveis fósseis na matriz energética e o desmatamento que bate sucessivos recordes são antiproducentes, inclusive para as forças que guindaram o desgoverno em curso, pois a Europa é o principal destino de suas exportações. “Ao insistir nas indústrias carbonífera, petrolífera e desmatadora, o governo prova que desconhece o Brasil em suas relações globais… distintas daquelas em que se davam os esquemas que conduziram ao poder o grupo que se instalou no Palácio do Planalto”, diz a diretora do Instituto Internacional Arayara (nascido na Rio-92), Nicole Oliveira, em artigo de título sugestivo: Brasil, Perto do Carvão e Longe da UE (Valor Econômico, 23/07/2021). “Outra narrativa”, replicarão os bolsonaristas. Dane-se o risco do país nos cinco próximos anos ser excluído de relevantes fluxos de comércio mundial.

Por que chegamos a esse ponto?

Perguntam-se os analistas sobre a derrocada dos ideais democráticos nos dois hemisférios. Para o filósofo de Harvard, Michael Sandel (A Tirania do Mérito, 2020), a resposta está na disseminação da ideologia meritocrática, que dividiu o mundo entre “ganhadores” e “perdedores”. A meritocracia escondeu privilégios e vantagens, justificando as desigualdades do status quo. A jornalista Anne Applebaum (O Crepúsculo da Democracia, 2021) também localiza na meritocracia o estopim da crise que aflige as democracias contemporâneas. “Nas antigas monarquias… o direito de governar era concedido à aristocracia por códigos rígidos de educação e conduta. Nas democracias ocidentais modernas, é concedido… por distintas formas de competição, campanhas e eleições, testes meritocráticos que determinam o acesso ao ensino superior e ao funcionalismo público”. O reverso é o sentimento de abandono.

Histórias da Carochinha não bastam para manter acesa a chama da democracia no Ocidente. Os perdedores foram cevados na frustração, na raiva, na negativa ao consumo, na insegurança no trabalho, na falta de estruturação material para o bem-estar das famílias. Enquanto os ganhadores exalaram soberba, arrogância com demonstrações de luxo afrontosas. Os valores da igualdade (de oportunidades e resultados) arrefeceram nas maiorias. Isto é, nos 99%, para evocar o simbólico percentual usado no Occupy Wall Street, em 2011, no distrito financeiro de Manhattan, em New York. Ocasião em que indignados manifestantes protestaram contra as iniquidades existentes nos Estados Unidos. Seja para governar, ir ao shopping center, restaurantes, tirar férias, viajar, usar tênis e roupas de grife – a odiosa noção de meritocracia com seus segredos de polichinelo (as condições sociais de berço) irrompe nas situações cotidianas. A política e os políticos, claro, são vistos como partícipes da engrenagem.

Nenhum dos inimigos da democracia (Polônia, Hungria, Índia, Brasil) teria mobilizado a classe média e parcelas do pobretariado, sem o caldo de insatisfação cultural com as regras de um jogo viciado, disfarçado de meritocracia, para benefício de 1% da população. O self-made man tornou-se um chavão ideológico de reforço às desigualdades, avalizado pelas democracias liberais. Hoje, a separação de classes se exprime como um divisor entre os que esgrimem méritos (antes mesmo de competirem) e os que carecem de atributos competitivos. Os primeiros agem em defesa de prerrogativas, protegidos por direitos consuetudinais que remontam à escravidão. Os últimos denunciam as estruturas de poder, as quais reproduzem as discricionariedades que estão nas origens da formação e consolidação de castas espúrias.

As mobilizações que têm ocorrido nas ruas para combater a permanência de Bolsonaro na cadeira presidencial apontam uma luz no final do túnel. São cortejos abertos à participação, que carregam o respeito aos que foram vítimas do genocídio capitaneado por quem de direito. Condensam a revolta que andava calada, nas dobras do isolamento social e do temor às aglomerações. Com cuidados sanitários, agora, vêm à luz. Não obstante, genocídios acompanham o desenvolvimento da sociedade brasileira ao longo do tempo. Tiveram início no morticínio dos povos primitivos. Hoje prolongam-se no sacrifício sistemático de pretos, pobres, mulheres, LGBTQIA+. Trata-se de um projeto de país, não de um fato acidental.

A ação incendiária – Fora Borba Gato! – tornou evidente o óbvio. A juventude que se autodenomina Revolução Periférica, politizada ao som dos Racionais MC’s, não se acha representada em manifestações bem comportadas onde poucos, guardados por seguranças, discriminam os que sobem no palanque. Tachar de terrorismo ou burrice a atitude é emitir um juízo de valor conservador. O principal é decodificar o episódio associado ao #24J. A institucionalização das forças de esquerda, combinada com o ataque frontal à Teologia da Libertação, pela Congregação Para a Doutrina da Fé, sob Ratzinger em 1984, no papado de João Paulo II, transformou as favelas em terreno fértil ao neopentecostalismo (evangélico) e à Renovação Carismática (católica). As ações políticas de protesto necessitam ser espraiadas nas comunidades, junto com a distribuição de cestas básicas. É preciso universalizar o brado: Fora Bolsonaro! Abaixo as políticas da fome e do desemprego! Dignidade a todas e todos!

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

Foto: @gabrielsilkn

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