Naqueles dias, durante uma coletiva, um jornalista jogara um sapato contra George Bush num protesto contra o cinismo, a desfaçatez e o espírito belicoso do presidente americano. No Rio Grande do Sul, naqueles dias, o Ministério do Desenvolvimento Agrário entregava à reforma agrária, a Fazenda Southall, um símbolo da concentração improdutiva da terra em nosso estado. Foi a última vez que estive com Adão Pretto. Deus permitiu que, naquele momento histórico da luta pela terra, eu estivesse acompanhado de um dos maiores lutadores sociais que conheci. Assim que passamos o portão principal da fazenda, o Adão, com a perspicácia e a espirituosidade que marcaram sua trajetória, lascou: “Estamos dando uma sapatada no latifúndio”. Rimos juntos, de alegria. Havia no Adão, e em mim, uma satisfação cumpliciada. Nós, que estivemos juntos por quase trinta anos, nós que juntos fundamos a CUT Rural. Nós, que tantas e tantas lutas travamos em nome dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais de nosso estado. Nós podíamos, enfim, celebrar a justa medida do governo Lula. Nos olhamos, plenos de uma satisfação que só pode ser compreendida por quem esteve na luta, e seguimos em frente, rumo à terra há tanto prometida.
ELVINO BOHN GASS
Eu estava emocionado e o Adão também. Mas ele, mesmo nestes momentos, mantinha uma altivez típica dos grandes líderes. Meus olhos encheram-se de lágrimas, os de Adão miravam à frente, como se quisessem dimensionar o tamanho da benfeitoria. Era um homem corajoso o Adão. Sempre foi um colono e, ao lado destes, manteve-se desde as primeiras ocupações. Nunca, nunca negou sua origem humilde e, ao contrário, orgulhava-se dela. Não para fazer proselitismo, nem demagogia.
O Adão gostava de ser quem era. E por isso mesmo, era um homem que irradiava bem estar. Foi um dos nossos primeiros desbravadores do universo legislativo. Sujeito de poucas letras mas de muita sabedoria, domou seus sucessivos mandatos e os colocou a serviço dos homens e mulheres que vivem da terra. É uma espécie de patrono das lutas rurais, precursor de batalhas vitais como o Seguro Agrícola, que hoje beneficia milhares de trabalhadores e trabalhadoras do campo em todo o país.
Adão nunca mudou de lado e por isso ganhou o respeito dos adversários. Ele não se adaptou ao Parlamento. Foi o Parlamento que se adaptou a ele. Era o homem dos gaiteiros, das caravanas, das comunidades eclesiais de base, das Pastorais, dos movimentos sociais, homem de lavoura e de lida. Tinha a pele queimada de um sol laborioso e as mãos grossas de quem aperta a terra porque sabe que dela é que se extrai a vida. Lembro dele na minha casa, lá em Santo Cristo, dormindo no chão da sala para que, no outro dia, saíssemos os dois para mais uma reunião, um encontro, uma atividade rural. Tive a honra de hospedá-lo e de acompanhar sua luta. “Tua casa era um dos muitos hotéis que tínhamos por aí quando a luta começou”, me disse ele, não faz muito. Talvez, já pressentisse o fim da jornada; e me agradeceu a parceria.
Eu, de minha parte, tenho certeza de que lá do alto, junto com tantos outros lutadores sociais que partiram, ele estará olhando por todos nós e, inspirados pelo exemplo dele, vamos nos manter firmes na luta para dar a terra a quem é da terra. Podia ainda muito dizer e muito contar sobre Adão Pretto, este homem cuja nobreza não estava nas vestes, mas no espírito; este cidadão gaúcho e brasileiro cuja grandeza estava, justamente, na sua genuína humildade. Prefiro agradecer o exemplo deste grande amigo e garantir que, por aqui, continuaremos a dar sapatadas no latifúndio e nas injustiças sociais.
Elvino Bohn Gass é deputado estadual (PT/RS) e membro da Coordenação Nacional da Democracia Socialista.
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