Morreu Diego Armando Maradona, o mais humano dos deuses do futebol. Por ironia (ou homenagem) da História, nos deixou no mesmo dia em que morreu Fidel Castro (25/11/2016), de quem era amigo e admirador.
Em campo, foi único. Era um artista da bola, capaz das mais belas e improváveis jogadas. Um curto espaço de campo virava um latifúndio na sua frente e era prontamente semeado com dribles mágicos, arrancadas com a bola colada ao pé, gols e assistências perfeitas.
Destaque e comandante da última Copa do Mundo vencida pela Argentina, em 1986, é dele a maior performance individual da História das Copas. Foi coroado não só como craque e campeão, mas também como herói de guerra, o vingador das Malvinas, ao fazer a Inglaterra sucumbir em dois lances tão contraditórios quanto antológicos: um gol de mão, roubado, descarado (e impossível no futebol de hoje, repleto de VARs e tira-teimas, cada vez mais parecido com um jogo de videogame); e outro, o mais belo de todos, enfileirando cinco adversários em sequência até rolar a bola para as redes.
Outro feito de Maradona foi alçar uma equipe mediana do sul da Itália ao posto de time de ponta. Com a camisa 10 do Napoli, comandou o primeiro título europeu e os 2 primeiros títulos da Liga Italiana vencidos pelo clube. Idolatrado na cidade, reza a lenda que, ao enfrentar a seleção italiana na semifinal da Copa de 90, no mesmo Estádio San Paolo que lhe era familiar, denunciou a opressão do norte italiano, rico e poderoso, sobre as cidades do sul, região mais pobre da bota. O resultado foi a apatia da torcida azzurra e a vitória dos hermanos.
El Pibe de Oro não foi o único rebelde do mundo do futebol, mas nele, o combo de desobediência e talento alcançou a plenitude. Destilava dribles, lançamentos, toques de calcanhar e gols com a mesma maestria que desafiava poderosos. Maradona enfrentou a FIFA, a ditadura da televisão que obrigava jogadores a entrar em campo sob o sol de meio-dia em pleno verão mexicano, andou às turras com a imprensa, cartolas e técnicos, tentou fundar um sindicato internacional de atletas e foi combatido com todas as armas pelos burocratas e mafiosos que comandam o mundo da bola. O futebol que “modernizava-se” como um negócio capitalista altamente lucrativo precisa de craques robotizados e moldáveis aos seus interesses comerciais, não de contestadores e falastrões.
Nem sempre tinha razão e, às vezes, recebia da própria língua golpes mais duros do que os desferidos pelos botinudos adversários. Mas sua fúria quase sempre tinha como certeiro alvo o andar de cima. Gritou por justiça social, defendeu a Cuba socialista, a Venezuela de Chávez, a Argentina de Kirchner e lançou-se, ao lado dos movimentos sociais e governos populares da América Latina, em apaixonada campanha contra a ALCA. Solidarizou-se com Lula e Dilma no Brasil e denunciou a perseguição implacável sofrida pelo ex-presidente. Mexeu em casas de marimbondos e encarou de peito aberto as ferroadas que levou.
Maradona foi a maior personificação do apreço portenho ao drama. Um tango argentino de carne e osso, vivenciou com intensidade ímpar a glória e a tragédia. O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu uma vez que Maradona tinha uma “tendência suicida de servir-se de bandeja na boca de seus muitos inimigos” e uma “irresponsabilidade infantil que o impele a precipitar-se em todas as armadilhas que se abrem em seu caminho”. Nele, as fraquezas humanas se manifestavam com mesmo ímpeto das paixões e da genialidade. Enfrentou abertamente o vício em cocaína e foi devorado mil vezes pelas hienas que se alimentam de derrubar ídolos.
Hoje, o mundo do futebol perdeu um dos seus mais fantásticos personagens. Dom Diego, o profanador da ordem estabelecida, nos deixou. Porém, relembrando novamente Galeano, “os deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam”. E a memória do pequeno gigante ninguém poderá nos tomar.
Bernardo Cotrim é jornalista e da Coordenação Nacional da DS
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