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Almas petrificadas | Dr. Rosinha

André Bazin – Ontologia da Imagem Fotográfica (O Cinema-Ensaios, Ed. Brasiliense) escreve que uma possível “psicanálise das artes plásticas consideraria talvez a pratica do embalsamamento como um fato fundamental de sua gênese” e que na “origem da pintura e da escultura, descobriria o “complexo” da múmia”.

Segundo Bazin a “religião egípcia, toda ela orientada contra a morte, subordinava a sobrevivência a perenidade material do corpo” e que a “morte não é senão a vitória do tempo”. Salvar a “própria materialidade do corpo, sem suas carnes e ossos”. Assim a “primeira estatua egípcia é a múmia de um homem curtido e petrificado em natrão” (mineral constituído de carbonato de sódio hidratado (Na2CO3.10H2O).

A estátua – o ‘corpo’ – tinha que ser protegida, por isso, “perto do sarcófago, junto com o trigo destinado a alimentação do morto, eram colocadas estatuetas de terracota, espécies múmias de reposição capazes de substituir o corpo caso este fosse destruído”.

“Assim se revela, a partir de suas origens religiosas, a função primordial da estatuaria: salvar o ser pela aparência”.

A partir disso posso concluir que, hoje, a estatutária é para salvar pela aparência algum conteúdo histórico civilizacional ou não e com características de humanismo ou não, dependendo o que o governante quer petrificar.

Os bustos e as estátuas tem o objetivo de – ‘petrificar’ – homenagear alguém, tirá-lo/a de algum canto escondido da história, ou até mesmo de inventar uma biografia para entrar para a história.

As manifestações e atos antiracistas que ganhou parte dos Estados Unidos e da Europa trouxe à luz, mais uma vez, o debate sobre o significado dos homenageados com os bustos e as estátuas. Mas, o debate só se deu porque estátuas – em atos de rebelião contra a história da escravidão e do colonialismo – começaram a serem decapitadas, queimadas e derrubadas.

Há personagens, como o rei Leopoldo II, que é incompreensível qualquer homenagem a ele. Na Bélgica há de 300 a 400 estátuas, placas e ruas que levam seu nome (https://www.nytimes.com/es/2020/06/22/espanol/mundo/estatuas-protestas.html?campaign_id=42&emc=edit_bn_20200623&instance_id=19623&nl=el-times&regi_id=93147432&segment_id=31600&te=1&user_id=854ed440235464d27b72860c7f364670).

Leopoldo II, no século XIX, invadiu o Congo e fez dele uma colônia. Além de saquear o país, assassinou e mutilou cerca de 10 milhões de africanos.

Outro exemplo de homenagem incompreensível, que teve a estátua, em sua homenagem, derrubada e lançada na água, é Edward Colston, um comerciante de escravos do século XVII.

Qual é o lugar que estas estátuas e/ou bustos que foram quebrados, queimados e derrubados devem ocupar?

Reconstruí-las e mantê-las no lugar ou levar para um museu do jeito que estão: danificadas?

As gerações futuras tem que conhecer a história do seu país e destas ‘petrificadas’ figuras, e também, a história dos atos que as colocaram por terra, ou atearam fogo e/ou quebraram.

Taco Dibbits (https://www.nytimes.com/es/2020/06/22/espanol/mundo/estatuas-protestas.html?campaign_id=42&emc=edit_bn_20200623&instance_id=19623&nl=el-times&regi_id=93147432&segment_id=31600&te=1&user_id=854ed440235464d27b72860c7f364670), diretor do Rijksmuseum “comentou que uma das maneiras de lidar com esta questão é dar o mesmo trato que foi dada a imagem em bronze do ex-presidente de Ghana, Kwame Nkrumah. Uma estátua dele foi decapitada durante um golpe militar em 1966, e depois foi colocada ao lado de seu corpo em um pedestal, com uma placa que explicava a historia de sua profanação. Desta forma se apresenta simultaneamente a história do regime de Nkrumah e o da revolução que o destituiu”.

Na cidade de Medellín, no Parque San Antonio há um exemplo semelhante ao citado por Dibbits. Em 1989, Fernando Botero, doou uma obra de arte – el Pajáro – à Medellín, sua cidade natal, com o objetivo de construir a paz. Medellín era o principal centro de atuação do narcotraficante Pablo Escobar.

Seis anos depois, 1995, a obra recebeu um atentado – de caráter político –danificando-a. O atentado matou 28 pessoas e feriu mais de duas centenas de pessoas.

Em 2000, outra obra igual (réplica) foi colocada ao lado da anterior, que danificada permanece no Parque. Na base da escultura danificada está gravado o nome das vítimas que morreram.

Outra opção, segundo Valik Smeulders, também diretora do Rijksmuseum seria colocar todas as estatuas num mesmo lugar ao ar livre, fora do centro da cidade, para dar a mensagem que não quer isso dentro da cidade.

Parte dos brasileiros e brasileiras estão, hoje, não com o corpo, mas com a alma petrificada. Esta petrificação levou – Bolsonaro – e mantém no centro do poder a ausência de sentimentos e humanismo. Mantém é cercou-o por – Ministros e staff – “estatuetas de terracota” dispostas se necessário a “substituir o corpo” caso seja necessário, já que a alma é da mesma matéria: pedras.

A petrificação é visível na violência de todo tipo, apregoada todos os dias, na naturalização da morte violenta, e no momento, na naturalização da morte pelo Covid-19.

Imaginemos, se mantido fosse o mesmo método (petrificar os corpos com natrão), petrificar mais de cem mil corpos, vítimas do Covid-19, e coloca-los na esplanada dos ministérios em Brasília, para que Bolsonaro – e o Brasil – enxergasse o conjunto da obra de seu governo.

Será que estes corpos petrificados descongelariam as almas petrificadas?

No futuro alguns governantes de alma petrificadas poderão contratar escultores para erigir estátuas ou bustos do Bolsonaro. Pergunto aos escultores: algum escultor conseguirá fazer uma estátua capaz de salvar Bolsonaro pela aparência? Conseguirá, um escultor, registrar numa estátua as almas petrificadas?

Dr. Rosinha é médico pediatra, militante do PT. Pelo PT do Paraná, foi deputado estadual (1991-1998) e federal (1999-2017).  De maio de 2017 a dezembro de 2019, presidiu o PT-PR. De 2015 a 2017, ocupou o cargo de Alto Representante Geral do Mercosul.

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