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Anteprojeto de Resolução da X Conferência Nacional da Democracia Socialista – Tendência do PT

Diretrizes de um programa para a revolução democrática

I. A construção democrática de um programa da revolução brasileira

1. A eleição da companheira Dilma Roussef corresponde a um novo período político marcado pela possibilidade não só de plena superação do neoliberalismo mas, sobretudo, pela possibilidade de construção de uma nova hegemonia no Brasil sob a direção dos socialistas democráticos. O programa para a revolução democrática é exatamente a expressão da construção desta nova hegemonia. Este período histórico que se coloca como de possibilidade de uma revolução democrática no Brasil relaciona-se com o contexto internacional de crise da dominação neoliberal, refletida no desgaste de sua legitimidade, na crescente perda de capacidade de direção do imperialismo e na própria falta de coesão política em torno a um programa que responda às situações de crise mundial. É evidente que esta crise internacional do neoliberalismo afeta, de modo profundo, os partidos que representam este programa no Brasil.

2. A combinação entre a crise internacional da globalização neoliberal comvitórias estratégicas no Brasil sobre a ordem neoliberal, abre em nosso país um novo período político marcado não mais pela anterior disputa de projetos mas pela supremacia do projeto democrático-popular e pelos desafios do seu aprofundamento.

3. A crise de 2008 a partir dos EUA, depois de uma sequência de crises na “periferia próxima”, colocou em questão a continuidade do programa neoliberal. Em primeiro lugar pela maciça intervenção estatal para salvar grandes bancos da falência nos EUA e Europa, jogando por terra o princípio do mercado como regulador da economia e, sobretudo, das finanças. Depois, pela redução do poder dos EUA –o grande fundamento da receita neoliberal – na economia global e, com isso, a ascensão de novos foros, como o G20 e os BRICS, abrindo uma enorme fissura na anterior hegemonia do “´pensamento único”e nas estruturas internacionais de poder;

4. No Brasil podemos falar de quatro vitórias estratégicas da esquerda contra o neoliberalismo e de uma profunda e estrutural derrota dos partidos neoliberais. A primeira eleição de Lula interrompeu o ciclo neoliberal iniciado ao final do governo Sarney, passando por Collor e pelos dois mandatos de FHC; o segundo mandato foi adiante e inaugurou uma nova via de desenvolvimento econômico com distribuição de renda; a eleição de Dilma, permite aprofundar o projeto de construção de uma alternativa nacional e internacional de desenvolvimento fora do controle do imperialismo. A essas três vitórias devemos acrescentar uma quarta igualmente estratégica, que foi o modo como se enfrentou a crise de 2008. Se até aquele momento a superação do neoliberalismo caminhava em passos moderados, o enfrentamento da crise deu um salto em um conjunto de fatores anti-neoliberais, sendo o mais importante deles, o crescimento quantitativo e qualitativo do sistema financeiro público com impacto imediato na redução da autonomia do BC e na importância da banca privada. Pode-se acrescentar ainda o aumento do salário-mínimo em plena crise (em geral, ocorre o contrário) e a sustentação dos programas sociais, como o Bolsa Família.

5. A profunda derrota ideológica e política do PSDB – o partido do neoliberalismo no Brasil – expresso na disputa eleitoral, na renúncia ao programa e na dificuldade de juntar forças políticas e sociais (burguesas) em torno de sua candidatura e, posteriormente a ela, na fragmentação dos partidos neoliberais, deixa o programa neoliberal sem um centro dirigente estável e sem força política no Brasil.

6. A situação anterior, até o segundo mandato de Lula, podia ser caracterizada como de disputa de projetos, o antagonismo entre o neoliberalismo e o nosso projeto. Esse antagonismo se colocava na disputa de rumos da sociedade e também dentro do governo, sobretudo com a oposição entre governo e Banco Central. Na situação atual, esse antagonismo foi superado pela força do nosso projeto e pela crise do projeto“deles”. A questão passou a ser a construção e desenvolvimento do nosso projeto, a construção política de dinâmicas democráticas e de perspectiva socialista para as contradições que devem ir se formando nesse novo curso no plano nacional e na sua relação internacional.

7. Partindo da avaliação de que abre-se um novo período no Brasil marcado pelo esforço de construção da hegemonia dos socialistas democráticos, este anteprojeto para debate na X Conferência Nacional da Democracia Socialista propõe uma atualização do programa do PT. Esta atualização propõe consolidar, aprofundar e expressar um sentido histórico à formação de um novo bloco político e social já em processo de formação no Brasil.

8. Um programa da revolução democrática se diferencia claramente da lógica de um programa socialista da revolução, na medida em que sua centralidade não está apoiada na superação imediata do sistema capitalista. Mas ao ser dirigida por um partido do socialismo democrático, ao se apoiar no próprio processo de emancipação dos trabalhadores e dos setores oprimidos, como os negros e as mulheres, ao ser crítico e alternativo aos valores liberais e aos poderes assimétricos dos grandes capitalistas na democracia brasileira, ao estabelecer uma profunda solidariedade com as lutas dos povos oprimidos de todo o mundo, esta revolução democrática estabelece uma relação histórica permanente com a sociedade socialista democrática que sonhamos e lutamos por construir. Esta relação, pela própria natureza democrática da revolução, não pode ser definida a priori e dependerá da própria soberania do povo brasileiro e das circunstâncias de sua realização.

9. O conceito de revolução democrática procura encaminhar uma solução histórica ao velho enigma sobre o caráter da revolução que polarizou as diferentes tradições da esquerda brasileira. Isto é, não se trata de uma revolução com um programa socialista imediato nem de uma revolução democrático burguesa, mas de uma revolução democrática dirigida pelos socialistas e apoiada fundamentalmente nas forças de emancipação dos trabalhadores e do povo brasileiro. Este enigma só pode ser resolvido a partir de uma cultura e prática do socialismo democrático que ainda não se formou em nosso país.

10. Ao propor as diretrizes de um programa da revolução democrática para o PT, estamos conscientes de sua transcendental novidade histórica. Desde 1988, o PT tem formulado programas para governar o Brasil a partir da possibilidade inédita de uma vitória nas eleições presidenciais. Entre sua identidade socialista democrática, sintetizada no documento “Socialismo petista” e a experiência de governar o Brasil, em correlações de forças muito adversas e em um Estado que guarda ainda características fortemente anti-republicanas, criaram-se inevitavelmente defasagens, desencontros, conflitos. Mas o PT soube manter e aprofundar, no fundamental, os seus compromissos históricos com a classe trabalhadora. O programa da revolução democrática propõe-se, então, a sintetizar a identidade socialista democrática do PT com o seu programa de governo.

11. Um programa da revolução democrática é, no sentido rigoroso, uma mudança de qualidade: o programa da construção democrática de um novo Estado no Brasil. Este programa visa estabelecer a legitimidade democrática de um discurso da revolução na democracia brasileira. O PT precisa estabelecer para si próprio uma consciência histórica e crítica sobre o Estado brasileiro que hoje governa. É a sua própria capacidade hegemônica que depende desta consciência histórica já que todo Estado revela os princípios de civilização sobre os quais fundamenta os direitos e os deveres.

12. São, pelo menos, cinco as grandes novidades programáticas que dele decorrem.

Em primeiro lugar, pela primeira vez na tradição socialista brasileira, procura-se sintetizar em uma mesma lógica programática as dimensões anti-imperialistas, classistas, populares, anti-patriarcais e anti-racistas em um quadro mutuamente configurado pela revolução democrática. O feminismo e o anti-racismo deixam de ser tratados à parte ou à margem e são amarrados à lógica central do programa.

Em segundo lugar, procura-se estabelecer a relação entre o princípio da soberania popular e de auto-governo, de um lado, e planejamento democrático e setor público, de outro, construindo o que se poderia chamar de economia política da democracia participativa e as bases plenamente democráticas de um projeto de desenvolvimento econômico. Como alternativa às noções de democracia parlamentar e corporativa e de economia mista que marcaram as tradições históricas da social-democracia, esta nova dialética entre transformação política e econômica procura soldar esta construção macro-histórica com os valores do socialismo democrático.

Em terceiro lugar, ao centralizar o desafio macro-histórico de construção de um Estado do Bem-Estar Social a partir dos valores do socialismo democrático, estas diretrizes da revolução democrática propõem uma nova gramática de relação entre a classe trabalhadora e suas instituições para além do Estado corporativo getulista que formou historicamente as primeiras instituições de direitos e de políticas públicas. O sentido universal cidadão destes direitos questiona a convivência do mercantil e do corporativo que ainda estrutura, em grande medida, os direitos e as instituições das políticas sociais no Brasil, da previdência à saúde, da educação ao direito à segurança pública. O caráter distributivo deste Estado do Bem-Estar coloca centralmente em questão a dimensão regressiva da estrutura tributária brasileira, bem como a naturalização de privilégios. O sentido feminista e anti-racista desta construção procura levar ao centro do Estado brasileiro o questionamento dos princípios patriarcais e racistas, que ainda regem a concepção dos direitos e deveres do cidadão.

Em quarto lugar, estas diretrizes, pela primeira vez em uma orientação a partir dos valores do socialismo democrático, trazem para o primeiro plano os desafios relacionados à comunicação pública e à cultura, entendida no sentido amplo, não instrumental, como valores de civilização. A formação das condições estruturais de uma opinião pública democrática no Brasil é, ao mesmo tempo, condição e resultado da revolução democrática.

Por fim, procura indicar analiticamente, mesmo que de modo resumido, as profundas relações entre a revolução democrática no Brasil e a crise liberal de direção e de dominação do sistema mundial nestes princípios do século XXI. Assim, procura-se ganhar consciência maior sobre o caráter internacional da revolução democrática.

13. Este novo Estado democrático deverá incorporar todas as conquistas históricas do povo brasileiro. A construção da república brasileira, baseada no aprofundamento da democracia e do pluralismo, da justiça social, de gênero e de raça, da soberania nacional e dos direitos dos trabalhadores, exige um novo Estado.

14. Um programa da revolução democrática dialoga e propõe a construir um novo ascenso dos movimentos sociais, um novo protagonismo da cidadania ativa, uma nova consciência cidadã afim aos valores do socialismo democrático no Brasil. Este novo e mais alto ascenso reclama um novoethossocialista democrático do PT e dos partidos da esquerda brasileira , dos próprios movimentos sociais que estruturam este bloco histórico. É este novo bloco histórico em formação que pode sustentar um processo de revolução democrática no Brasil.

15. Ao nomear este documento de Diretrizes, procura-se ser coerente a esta lógica democrática. Um programa da revolução democrática será fruto do próprio processo de emancipação do povo brasileiro. Mas o PT já é hoje parte da própria cultura política do povo brasileiro, de seu passado de resistências e de suas esperanças de futuro.

II. Elementos da situação internacional

O êxito ou o fracasso das forças populares contra o imperialismo e a direita, visando ao fortalecimento e desenvolvimento dos elementos populares de governos progressistas e ao avanço na transição para um modelo pós-neoliberal, definirá não apenas o papel da América Latina no século XXI (se independente e unida ou se quintal dos EUA), como também a própria face da esquerda latinoamericana – se uma esquerda com poder de convocatória social e capacidade de constituir alternativas anticapitalistas de massas ou se pequenos grupos de propaganda socialista.

(IX Conferência Nacional da Democracia Socialista, junho de 2009)

16. O neoliberalismo, como expressão política de um período de globalização financeira centralizado pelos EUA, vive hoje um impasse sem perspectivas de solução no horizonte. Há, de um lado, uma dimensão econômica que pode ser compreendida como resultante de uma crônica insuficiência da demanda agregada mundial, ou seja, por uma incapacidade para realizar o lucro potencial, exponenciado nos anos neoliberais. A adoção de políticas anti-keynesianas na zona do euro e de um tímido processo de relançamento dos gastos públicos de investimento nos EUA, em um quadro de estagnação ou retrocesso dos salários e do emprego, conforma um quadro de estagnação e baixo crescimento no capitalismo central. Há, por outro lado, uma evidente dimensão política da crise, isto é, a incapacidade crescente dos EUA de liderar uma coordenação sistêmica mundial, com reflexos na capacidade do dólar ser a moeda de referência, em um contexto em que cresce o poder geopolítico dos chamados Brics, em particular a China, sem que se constitua no horizonte histórico uma alternativa de coordenação sistêmica internacional. Enfim, é visível uma crise de civilização: o capitalismo e seus valores liberais não são capazes de apontar soluções viáveis para os mais graves impasses gerados pelo mundialização financeirizada, ou sejam, as crises econômicas sequenciais e, agora no centro do capitalismo, a intervenção militar e a guerra como política permanente do imperialismo, o aquecimento global e a desigualdade social que cresce também nos países centrais.

17. As profundas contradições do governo Obama em relação a eventuais expectativas progressistas, revelando o poder sistêmico das finanças e dos interesses imperialistas no maior Estado do mundo, a crise de perspectivas da social-democracia européia e uma situação muito defensiva dos movimentos sociais e forças de esquerda, parecem criar um período histórico novo no qual as novas dinâmicas políticas e sociais emancipatórias e as novas agendas progressistas têm sua centralidade imediata no Sul. Continua, no entanto, fundamental a relação entre esta e a evolução da luta de classes e das alternativas de esquerda nos países centrais. Uma alternativa ao capitalismo, ainda que tenha como pressuposto uma enraizada base nacional, é impensável sem uma forte dinâmica nos países centrais de experiências políticas contrapostas ao imperialismo e sem a retomada do internacionalismo socialista.

18. Inserindo-se neste quadro de perda de dinamismo das economias capitalistas centrais e de reposicionamento das grandes economias semi-periféricas, em um mundo geopoliticamente marcado por um crescente multilateralismo e em meio a uma crise histórica da civilização neoliberal, a revolução democrática do Brasil necessariamente se relacionará programaticamente com estas três dimensões. Mantido o atual ciclo de crescimento da economia, o Brasil pode se situar em breve entre as maiores potências econômicas do mundo. Em meio à crise da hegemonia norte-americana e de formação de novos pólos geopolíticos, pode vir a crescer qualitativamente a sua capacidade de influência na formação de novas agendas e na formação de novos centros mais democráticos de decisão internacionais. Enfim, uma revolução democrática que contribua ativamente para derrotar o imperialismo, que promova justiça social no Brasil, África e no plano internacional; que enfrente as opressões patriarcais e racistas; que defenda a economia eco-sustentável em meio a um inédito e histórico protagonismo democrático pode subsidiar de forma decisiva a busca de novos paradigmas civilizatórios para a humanidade.

19. Em nossa IX Conferência Nacional, já afirmávamos que os processos em curso na América do Sul tiveram sua legitimidade sustentada graças ao crescimento econômico e à recuperação parcial de soberania nacional. “Agora, eles dependem mais da construção de legitimidade política e da participação popular ativa para sustentar, aprofundar e enfrentar, desde o ponto de vista dos interesses do povo trabalhador, os novos conflitos que estão a caminho”.

20. A presença do Brasil no mundo e uma retomada do internacionalismo em um cenário em que se aguçam as contradições do imperialismo são mais importantes ainda. É claro, no entanto, que esse processo ocorre em meio a uma reorganização desigual do movimento socialista e há muitos sinais de recrudescimento de uma direita retrógrada e com muitos traços de barbárie.

III. A dinâmica nacional

21. Nesta concepção de revolução democrática, o programa deixa de ser compreendido como um processo de auto-esclarecimento da vanguarda socialista que precede o próprio processo de emancipação dos trabalhadores e do povo mas pretende expressar o processo mesmo de auto-emancipação do povo brasileiro frente às históricas cadeias de exploração e opressão. Ele interroga a consciência classista dos trabalhadores e popular brasileira, das mulheres e dos negros, a partir de uma reflexão crítica sobre os avanços conseguidos mas também dos impasses e dos limites estruturais colocados ainda à transformação social. O programa assim é democraticamente concebido na sua formação pública, através da consciência crescente da força da soberania popular e do auto-governo, das experiências de democratização e republicanização do estado, das conquistas parciais obtidas contra a exploração capitalista, contra as opressões patriarcais e raciais.

22. Ao receber por três vezes o apoio para governar o Brasil, o PT, partido líder das coalizões vitoriosas nestas três disputas contra as forças neoliberais, tem a consciência que solidificou, soldou e atualizou a sua condição histórica de principal expressão, na frente plural de representação, das grandes tradições de luta do povo brasileiro, de Zumbi dos Palmares aos movimentos negros da democracia brasileira, dos movimentos anarquistas do início do século XX às grandes greves do ABC, das primeiras reivindicações pelo sufrágio feminino às lutas atuais contra a violência às mulheres, das lutas camponesas e dos trabalhadores sem terra, dos sentimentos nacionais de independência e soberania nacional à agenda anti-imperialista dos dias de hoje, do cristianismo da libertação aos movimentos ecológicos, dos sonhos de emancipação e da imaginação das grandes criações artísticas e culturais do povo brasileiro.

23. É exatamente esta consciência histórica de encarnar tradições e utopias de transformação do Brasil que aguça o sentido da nossa responsabilidade sobre os possíveis futuros do Brasil. Que tipo de civilização pretendemos, como parte do povo brasileiro em seu processo de emancipação, construir? Queremos repetir aqui neste país os padrões de um capitalismo desenvolvido, estruturalmente mercantil e desigual, ecologicamente predatório, engajado em novas práticas colonialistas e bélicas, moderno mas patriarcal na atualização da opressão e discriminação das mulheres, dividido cultural e socialmente pelos preconceitos de raça, e ainda alienando sua juventude? Desejamos apenas aparar os extremos de uma civilização que nasceu genocida dos índios, escravocrata dos negros, autocrática e elitista na sua cultura política, profundamente patriarcal, hiper concentradora da renda e da terra e predatória dos direitos do trabalho? Como socialistas democráticos, apoiando-nos nas tradições libertárias e emancipatórias que estiveram presente desde o início da história da colonização, queremos uma alternativa de civilização ao capitalismo, a ser construída com o povo brasileiro, democraticamente, que esteja à altura da sua dignidade e esperança, que promova a liberdade como autonomia e auto-governo, que promova os direitos à igualdade na diferença, que saiba construir novos modos de organizar a vida social para além da mercantilização e da autocracia do capital.

24. Um programa de revolução democrática visa, assim, construir um novo Estado no Brasil assentado em novos princípios de civilização. No desafio de governar o Brasil durante os governos Lula, aprendemos, em duras provas, a ter consciência da complexidade de ser governo em um Estado em regime democrático mas ainda profundamente marcado pelas raízes autocráticas, patronais, patriarcais e racistas de sua formação. Para a construção da hegemonia é fundamental, no entanto, que esta consciência se eleve à dimensão estatal, que se coloque o horizonte da construção democrática de um novo Estado que, a partir de novos princípios de civilização, organize novas formas de construir e gerir o poder, novas formas de organizar a produção e a distribuição, novos contratos de direitos e deveres, novas instituições e leis que radicalizem a democracia e o pluralismo, a liberdade e a igualdade. Nesta medida, o programa da revolução democrática não deve ser compreendido como um programa de governo mas como de todo um movimento político por todo um período. Ele deve referenciar tanto a ação de governo como a dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda e suas políticas de aliança, criando um grande arco de convergência histórica para uma lógica coerente de transformações. A presença da esquerda no governo central do país dinamiza e potencializa as suas possibilidades históricas mas o programa da revolução democrática, à medida em que se enraizar e ser expressão dos próprios avanços da consciência do povo brasileiro, vai além de ciclo de governos. Pode, neste sentido, sofrer inflexões históricas a partir de derrotas eleitorais decisivas mas retornar, inclusive com mais força, em conjunturas de ascenso seguintes.

25. Estado para uma cultura do socialismo democrático é diferente do que se entende por Estado na cultura liberal ou na cultura do socialismo autocrático. Liberais entendem o Estado, que deve ser mínimo, a partir da sociedade de mercado e do capital, e de sua auto-regulação. O Estado é visto, assim, como oposto à sociedade civil e o reino das relações familiares é subtraído por uma lógica patriarcal, de dominação das mulheres, ao direito público. Culturas autocráticas do socialismo falharam em conjugar luta contra o capitalismo à luta pela democracia ao atribuir ao Estado, ao poder centralizado e à economia de plano burocrático, a legitimidade de ser o centro e instrumento da emancipação. A tradição do socialismo democrático trabalha com o conceito de Estado integral, no qual há uma unidade entre os princípios que organizam as instituições estatais, as relações das classes na sociedade civil e as relações familiares e de gênero. Estes princípios, sustentados socialmente e ao mesmo tempo organizadores da sociedade, são chamados ético-políticos: por exemplo, o liberalismo que organiza todas as relações políticas, econômicas e sociais, de gênero em uma sociedade capitalista; o racismo que organiza toda a vida social em um Estado escravocrata; o patriarcalismo que organiza uma civilização baseada na opressão e exploração das mulheres. Um liberalismo patriarcal e racista é exatamente aquele que combina a exploração capitalista com a opressão das mulheres e dos negros. A luta por uma nova hegemonia é exatamente o movimento político permanente para criar uma nova base ético-política, sustentada pelo avanço da luta pela igualdade, para um novo Estado, a partir de novos princípios de civilização. Ela conjuga, então, a luta por mudanças no poder político, nas relações econômicas e nos valores culturais que organizam as relações humanas.

26. O processo da revolução democrática combina, deste modo, avanços na consciência dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros, com a luta por mudanças estruturais na correlação de forças entre as classes sociais visando uma mudança na natureza do Estado. Uma nova hegemonia é exatamente a conquista de uma elevação qualitativa da consciência em direção aos valores do socialismo democrático que mobiliza e se apóia em um mudança estrutural da correlação de forças em favor dos trabalhadores em detrimento das classes dominantes e que são capazes de sustentar uma profunda mudança democrática nos princípios que organizam a economia e legitimam as instituições e as leis fundamentais ou constitucionais que regulam o exercício do poder.

27. O processo de formação de uma consciência afim aos valores do socialismo democrático dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros é expressão mesma da formação de uma opinião pública democrática do país e se combina com a formação de uma vasta rede pública de meios de informação, comunicação e cultura. O socialismo democrático não pode ser visto como alheio ou estranho às tradições classistas e populares do povo brasileiro mas como seu aprofundamento e desenvolvimento libertário. Está intimamente colado às lutas contra os valores liberais , patriarcais e racistas que sustentam a exploração e as opressões. Tem uma alavanca extraordinária nos processos de educação pública cidadã e de democratização da cultura. O seu centro é o transcrescimento no sentido socialista da consciência classista dos trabalhadores. O seu horizonte é exatamente a conquista de patamares crescentes de cidadania, soberania popular e auto-governo.

28. A chegada de uma coalizão dirigida pelo PT ao governo central do país significou uma mudança qualitativa na correlação de forças entre as classes sociais. As classes dominantes precisam do controle pleno do Estado para reproduzir, em escala ampliada, o seu poder e a sua riqueza. Os trabalhadores e setores populares passaram a contar com novas condições institucionais e de legitimidade para conquistas de imenso significado histórico. Sem este controle do estado, a unidade das diferentes facções das classes dominantes, os seus circuitos de valorização do capital, os centros autocráticos de decisão, a organização do domínio de idéias e dos próprios circuitos repressivos ficam profundamente afetados. Mas seus poderes econômicos acumulados, suas relações internacionais, seus privilégios constitucionalizados ou simplesmente reproduzidos pelo poder judiciário, o controle de centros estratégicos de decisão no Executivo ou no Congresso Nacional, a sua capacidade de formação de opinião e legitimação através do controle dos meios privados de comunicação de massa constituem relações estruturais de força, capazes de preservar privilégios ou, no mínimo, estabelecer poder de veto a transformações que atinjam mais duramente seus interesses. Assim, mudanças estruturais na correlação de força não decorrem automaticamente da presença de forças do socialismo democrático no governo e não podem ser pensadas simplesmente como ações voluntaristas de governo. O processo da revolução democrática é exatamente o meio através do qual vão se construindo novas legitimidades e novas bases sociais, novos padrões regulatórios públicos na economia e capacidades de governo, que, juntos, podem catalizar mudanças estruturais nas correlações de forças.

29. Uma mudança da natureza do Estado equivale a uma refundação democrática do Estado através de um novo contrato social. Em geral, ela se expressa por um processo de Assembléia Constituinte, que se realiza em meio à construção de uma nova hegemonia. Assim, ela procura maximizar na transformação social a dimensão do consenso e da vontade das maiorias em relação ao momento de força ou de coerção das transformações sociais. Ela consolida os avanços obtidos por reformas e conquistas parciais mas os reorganiza em uma nova lógica unitária de Estado a partir de novos princípios de civilização. Deste modo, não opomos reforma à revolução mas as definimos em relação ao objetivo revolucionário de mudança da própria natureza do Estado em um processo permanente. Procuramos expressar a dinâmica permanente da revolução em linguagem do socialismo democrático, isto é, condicionando-o à construção de novas formas democráticas de auto-governo. E, principalmente, fazemos a crítica do horizonte reformista ao acusar a insuficiência de um horizonte de transformações que não problematize e transforme a matriz liberal do Estado. Uma revolução democrática, expressando uma profunda republicanização do Estado brasileiro, deve superar os princípios liberais em sua condições de estruturadores da unidade do Estado brasileiro, iniciando uma nova época histórica de transição ao socialismo. Seria contraditório com a própria dinâmica aberta da revolução democrática pretender prever as condições e o tempo da realização desta conjuntura de mudança da própria natureza do Estado brasileiro. Mas é fundamental para a construção de uma nova hegemonia, diferenciando o horizonte da revolução da luta pragmática por reformas, estabelecer este horizonte programático.

30. Como nenhum Estado se organiza isoladamente mas se define em relação com os Estados que organizam o mercado mundial capitalista e suas potências centrais, a revolução democrática no Brasil se relaciona e depende de mudanças no quadro histórico da inserção do Estado brasileiro e de mudanças na ordem mundial. As lutas de emancipação dos trabalhadores e do povo brasileiro vinculam-se assim, em seu próprio destino, às lutas dos povos oprimidos de todo o mundo. É fundamental assim compreender e estabelecer as dimensões programáticas do sentido internacional da revolução democrática.

31. Este campo conceitual que procura renovar o conceito de revolução, a partir dos valores do socialismo democrático, deve ser compreendido e analisado precisamente à luz do Estado brasileiro que existe após os oito anos de governo Lula. Os governos Lula, com todas as limitações impostas pelas correlações de forças adversas no plano internacional, institucional, midiático e econômico, foram capazes de construir mudanças qualitativas no Estado brasileiro, moldado pelo regime militar e pelos neoliberais, sem, no entanto, alterar a natureza liberal do Estado brasileiro que se apóia em um padrão de correlações de forças entre as classes sociais ainda fortemente favorável às classes dominantes. É exatamente esta natureza liberal do Estado brasileiro e estas correlações de forças sociais, estruturalmente adversas ainda aos trabalhadores e aos setores populares, aos negros e às mulheres, que o processo da revolução democrática tem o desafio de superar.

32. Uma grande conquista dos governos Lula foi a de alterar qualitativamente a dependência do Estado brasileiro ao capital financeiro, iniciada nos anos finais do regime militar com a dívida externa e aprofundada pelos governos FHC, construindo as bases, ainda iniciais, para um planejamento democrático da economia. Os governos Lula criaram as condições para uma saída do monitoramento do FMI em um quadro de aguda crise cambial, fortaleceram em um patamar histórico inédito as reservas cambiais (hoje em mais de 250 bilhões de dólares), diminuíram e estabeleceram uma diminuição virtuosa da dívida pública interna, fortaleceram em patamares inéditos os bancos públicos, em particular o papel de financiador dos investimento do BNDES, reduziram qualitativamente o patamar ainda alto da Taxa Selic (de mais de 20 % reais em média nos anos neoliberais para cerca de 6 % reais ao fim de 2010), estabeleceram uma pressão de baixa para os ainda escandalosos juros internos, levando a uma forte evolução do crédito (como, por exemplo, o crédito imobiliário e para a agricultura familiar). A formação de uma inteligência desenvolvimentista no Ministério da Fazenda, articulada com novas diretrizes para estatais chaves, como a Petrobrás, restabeleceu através do PAC o início de um novo ciclo de planejamento do investimento e permitiu inaugurar um novo ciclo de crescimento sustentado com forte inclusão social.A constituição de uma política sistêmica para a agricultura familiar (crédito, seguro, assessoria técnica, políticas de incentivo às mulheres agricultoras e aos jovens) abriu um grande espaço histórico para recolocação dos temas do desenvolvimento agrário e da própria reforma agrária. Mesmo a grave crise financeira internacional de 2008, que provocou uma inflexão do crescimento em 2009, não minou, em função da forte intervenção anti-cíclica estatal, o ciclo de crescimento do salário e do emprego.

33. Uma segunda grande conquista dos governos Lula foi a de restabelecer as bases para a construção de um Estado do Bem-Estar Social no Brasil, profundamente minadas seja no período ditatorial seja nos anos neoliberais, marcados pela intensificação da mercantilização da vida social. Ao criar quinze milhões de empregos com carteira assinada, os governos Lula não apenas diminuíram fortemente o desemprego aberto, mas criaram um novo ciclo de formalização do mercado de trabalho no Brasil, interrompido desde os anos oitenta. Com isto, a crise da Previdência pública brasileira, aprofundada nos anos FHC, vai sendo superada. Paralelamente, ao praticar uma permanente e robusta política de elevação do valor real do salário mínimo, os governos Lula criaram uma pressão, não apenas na base da pirâmide dos salários, mas sobre todo o mercado de trabalho brasileiro, elevando, além disso, os benefícios sociais que têm o salário mínimo como base. Em terceiro lugar, o programa Bolsa Família, aliado a um conjunto de outros voltados para a inclusão social, somado às dinâmicas anteriores, provocou uma verdadeira transformação social na base da sociedade brasileira – uma redução drástica do exército industrial de reserva – da qual sempre se alimentaram os capitalistas para garantir a super-exploração da força de trabalho no Brasil. Em particular, o Programa Territórios da Cidadania criou uma nova metodologia de planejamento participativo para a inclusão social. Na educação, pela primeira vez na história, as políticas públicas começaram a ganhar uma dimensão sistêmica e universalista. Em quinto lugar, não menos importante, as políticas públicas passaram a incorporar, mesmo que inicialmente, dimensões anti-patriarcais e afirmativas dos negros sob intenso ataque dos liberais, agora tardiamente convertidos à tese da miscigenação do povo brasileiro. Estas cinco grandes alterações das políticas públicas do governo federal fortaleceram, sobretudo, a classe trabalhadora e alargaram as possibilidades de universalização dos direitos cidadãos.

34. Uma terceira grande mudança qualitativa conquistada na natureza do Estado brasileiro está vinculada à sua política externa e às suas relações internacionais. Se a ditadura militar adotou uma política externa de grande potência mas sob a esfera de influência norte-americana, se os governos FHC direcionaram o Estado brasileiro para um padrão de humilhante subordinação aos EUA, os governos Lula abriram pela primeira vez na história uma perspectiva de soberania democrática (à diferença dos anos de autonomia nacional construída no primeiro ciclo Vargas), de profundo latino-americanismo e de reinserção autônoma nos centros diplomáticos e de poder mundial a partir de uma agenda pela paz, pela cooperação dos povos e pela diminuição das assimetrias de poder e renda. A expressão política internacional da liderança de Lula não é, assim, de sentido apenas carismático mas apóia-se em raízes internas de popularidade e de um acúmulo de vitórias obtidas por esta reinserção soberana.

35. Uma quarta grande mudança qualitativa está relacionada às dimensões republicanas e democráticas do Estado brasileiro, onde certamente se manifestaram as maiores dificuldades e os maiores limites da experiência dos governos Lula. Pela primeira vez na história republicana brasileira, um governo do país, de esquerda e de bases entre os trabalhadores e setores populares, não reprimiu os movimentos sociais. Pelo contrário, abriu-se através de conselhos, fóruns e mesas de negociação ao diálogo e à construção de agendas comuns. Mais ainda, construiu importantes elementos de uma cultura de democracia participativa através das conferências nacionais temáticas, criadas ou reproduzidas em uma escala sem precedentes. Criaram-se instrumentos permanentes (como a CGU) e uma repressão sem precedentes à corrupção sistêmica. Mas, após oito anos de governo, não foi possível fazer a reforma do sistema de eleições e representação política, a cultura da democracia participativa ainda é não institucionalizada e praticada muito heterogeneamente pelas diversas áreas de governo, uma dinâmica tradicional e enraizada de corrupção sistêmica não foi plenamente superada, o sistema de comunicação pública carece de uma regulação democrática mínima, além de muitas estruturas de poder e de decisão econômica funcionarem autarquicamente e com poucos controles democráticos. Isto é, se a natureza anti-popular e repressiva do Estado brasileiro, em sua dimensão federal, foi em alguma medida neutralizada, as suas estruturas de poder carecem ainda de um profundo processo de democratização e republicanização. É este exatamente o centro da revolução democrática.

36. Os liberais apenas dirigiram o Estado brasileiro, por um período mais longo, na chamada República Velha, compondo um regime oligárquico (no qual menos de 3 % da população votavam, em eleições em geral fraudadas), anti-nacional ( assentado na agro-exportação do café) e anti-social ( repressão aos movimentos sociais e ausência de políticas públicas de caráter social no plano federal). Mas uma tradição liberal, ciosa do caráter sagrado da propriedade da terra, afeita à linguagem dos interesses da acumulação mercantil, racista e patriarcal, se fez presente desde as primeiras décadas de formação do Estado nacional, representando seus interesses econômicos nas estruturas corporativas do Estado Novo, expandindo sua presença no ciclo nacional-desenvolvimentista, embora sempre em posições não hegemônicas. Na verdade, as classes burguesas modernas presentes no Brasil, o grande capital financeiro, industrial nacional e associado, nas telecomunicações, além do agro-business, formaram-se associando-se ao ciclo histórico da ditadura militar. Esta dissociação entre presença hegemônica do liberalismo e expansão dos interesses mercantis na formação do estado brasileiro foi teorizada, em diferentes matrizes teóricas, pelos grandes intérpretes do Brasil, através da noção de revolução burguesa autocrática ( Florestan Fernandes), de “capitalismo burocrático”( Caio Prado Jr.), de patrimonialismo estamental ( Raymundo Faoro) ou de uma burguesia que historicamente nunca constituiu um princípio de soberania nacional ( Celso Furtado). São estes privilégios rentistas, mercantis, tributários, patronais e de propriedade, patriarcais e racistas, formados hsitoricamente na ausência ou na mitigação do princípio da soberania popular, em geral avessos ao princípios republicanos mais fundamentais, que formam a natureza liberal do Estado brasileiro.

37. A natureza liberal do Estado brasileiro após oito anos de governo Lula fica evidenciada, apesar das mudanças qualitativas ali enunciadas, no peso e influência que ali tem o capital financeiro, núcleo das classes dominantes brasileiras. Nos anos Lula, os bancos privados continuaram acumulando recordes em taxas de lucratividade, altas mesmo para os padrões internacionais. O grande capital financeiro no Brasil formou-se nos anos da ditadura militar com o processo de fusões bancárias estimuladas pelo Banco Central, instituição criada pelo regime e desde o início orgânica a este setor do capital. Nos anos neoliberais, esta influência foi levada organicamente ao centro de todas as políticas de governo, em associação com os capitais financeiros internacionais. Nos anos do governo Lula, o poder de influência sistêmica do capital financeiro foi sendo diminuído mas seus interesses corporativos foram, no fundamental, preservados. O Banco Central, mesmo após a saída de Henrique Meireles e mesmo após ter diminuído o grau de sua organicidade em relação aos circuitos de valorização rentista, continua sendo a instituição menos democrática e menos republicana do Estado brasileiro.

38. A natureza liberal do Estado brasileiro evidencia-se também, mesmo após os históricos inéditos ganhos obtidos pelos trabalhadores nestes últimos oito anos, no padrão de relações ainda vigente entre capitalistas e classe trabalhadora. A sobrevida das dimensões corporativas, herdadas da Era Vargas, foi instrumentalizada à serviço de uma acumulação selvagem nos anos da ditadura militar e levada a um grau de barbarismo nos anos de chumbo do neoliberalismo. Nos anos Lula, a classe trabalhadora construiu novas dimensões de sua força social e de seu protagonismo político. Mas no Brasil do século XXI ainda se pratica nas margens o trabalho escravo, a proteção da própria vida dos trabalhadores é muito insuficiente (permanecem em patamares altos os índices de acidente do trabalho), o salário-mínimo é ainda historicamente muito insuficiente, as mulheres e os negros sofrem discriminação, o direito de demissão é incondicionado, a jornada legal de trabalho demasiado extensa. E, principalmente, a democracia no local de trabalho ainda é severamente limitada: com raras exceções, a ditadura vige na fábrica e nos locais de trabalho. Isto é, ainda há todo um mundo de direitos do trabalho a ser conquistado diante da sanha da exploração capitalista.

39. Uma terceira evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está no peso do agronegócio. Este setor foi basicamente construído pelo Estado da ditadura militar, em um plano dirigido para modernizar o latifúndio, recuperar a sua função econômica agro-exportadora e criar sua legitimidade política. Reorganizado como base do governo Sarney, alçado a um lugar de proeminência nos governos neoliberais e projetando-se no interior das estruturas estatais e nas representações no Congresso Nacional durante os governos Lula, este setor soube manter seus interesses corporativos e, além disso, neutralizar a expansão de um projeto de reforma agrária no Brasil.

40. Uma quarta e estridente evidência da matriz liberal do Estado brasileiro atual está na privatização do processo de formação da opinião pública, através do controle oligopolizado dos meios de comunicação de massa. Estes setores do capital, alentados e desenvolvidos pelo regime militar, criaram uma relação programática orgânica com os partidos neoliberais durante os governos FHC. Posicionados estrategicamente na democracia brasileira, cumprem um papel decisivo na reprodução da visão de mundo liberal e dos interesses corporativos capitalistas, procurando impugnar qualquer regulação democrática dos meios de comunicação que, por sua natureza, deveriam ser públicos (ou submetidos diretamente ao controle democrático e plural do Estado ou por ele regulado segundo estes critérios).

41. Uma quinta evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está na inaceitável mercantilização de fundamentos decisivos da reprodução da vida social, como na educação, na saúde, no mercado de terras urbanas, nas políticas de segurança pública, na cultura e nos esportes. Estes bens e serviços, que deveriam ser públicos e reconhecidos como direitos plenos dos cidadãos, ainda estão, como herança do período da ditadura e dos anos neoliberais, submetidos à exclusão pelo mercado, hierarquizados na qualidade pelo mercado e distorcidos profundamente pela lógica mercantil. Nos anos do governo Lula, apesar de avanços setoriais importante na construção do SUS, ganharam novo alento os planos privados de saúde, com a nova clientela das classes médias em formação. Se até o direito à vida está submetido a um padrão inaceitável de mercantilização –a proporção entre gasto público e privado na saúde hoje no Brasil é semelhante ao padrão norte-americano, o sistema mais liberal do mundo desenvolvido – como avançar em uma sociedade que se organize segundo valores do socialismo democrático?

42. Mas a maior evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está ainda em seu elitismo democrático, isto é, os mecanismos através dos quais o princípio da soberania popular estabelece uma dinâmica de autogoverno são tendencialmente neutralizados e os mecanismos através dos quais as dimensões autocráticas do exercício do poder são requalificados. Esta é, sem dúvida, a principal herança da transição negociada entre liberais e regime militar, com participação importante mas bastante minoritária da esquerda brasileira (e tendo o PT como honrosa exceção). Mesmo após as conquistas democráticas expressivas alcançadas durante os governos Lula, o Estado brasileiro continua a funcionar com base no princípio da democracia delegativa (a decisão é tomada burocraticamente com base na delegação eleitoral, com pouco controle democrático), de uma democracia representativa alicerçada em fortes distorções de representação (através principalmente do financiamento privado de campanha, as mulheres, os negros, os trabalhadores, os pobres e os agricultores familiares são fortemente subrepresentados) e uma democracia participativa (formas através das quais, a população organizada discute e participa diretamente das decisões através de formas diretas semi-diretas de democracia) ainda é inicial e heterogeneamente distribuída. O objetivo da revolução é exatamente expandir e institucionalizar a democracia participativa, alterar qualidade democrática do sistema de representação e fundamentar democraticamente os mecanismos delegativos do Estado nacional.

43. A principal conquista alcançada durante os governos Lula foi a formação, desenvolvimento e cristalização de uma consciência crítica aos valores neoliberais e potencialmente aberta a um desenvolvimento republicano e socialista democrático. Uma nova agenda para o país foi criada, com base neste sentimento e nesta consciência, que se tornaram públicas. Os partidos do neoliberalismo, com o PSDB à frente, vivem hoje uma crise programática aberta, apesar de ainda manterem, refletindo a correlação de forças ainda favorável aos grandes grupos econômicos capitalistas, um forte protagonismo. A construção do programa da revolução democrática deve, assim, ser entendida, na atualização polêmica com as razões liberais e em diálogo criativo com as novas consciências emergentes dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros brasileiros.

IV. Soberania popular e auto-governo

44. O princípio da soberania popular e da universalização do direito político do voto foi fruto das lutas históricas dos trabalhadores e das mulheres. Não se pode afirmar, portanto, que ele resultou da tradição liberal, como quer um certo liberalismo democrático, nem que seja um direito burguês como afirmam certas tradições do marxismo. O nosso ponto de vista programático, como já afirmaram as resoluções nacionais do PT, não pode ser construído com base na oposição entre democracia direta e democracia representativa mas na combinação de princípios e formas que se combinem para aprofundar e maximizar as dimensões práticas da soberania popular e de auto-governo.

45. Na tradição do republicanismo democrático a existência da liberdade é relacionada ao fundamento da soberania popular. A autonomia (o ato de governar a própria vida sem o mando de outros) e o direito à auto-formação da identidade (a liberdade para conformar socialmente a sua própria identidade) são relacionadas, assim, à capacidade de auto-governo, isto é, a leis, instituições e governos que são formados pelos próprios cidadãos e cidadãs. Daí a importância central nesta tradição da formação de uma opinião pública democrática através da qual se formem legitimamente consensos e decisões da maioria. A autonomia e a construção da livre subjetividade é impossível em Estados que são gestados e geridos autocraticamente ou arbitrariamente ou que não apresentem condições para a formação democrática da opinião pública. Nesta tradição, a liberdade depende estritamente da vigência de um padrão de igualdade entre os cidadãos e cidadãs, no que diz respeito às condições econômico-sociais e de gênero.

46. O socialismo democrático, que incorpora o republicanismo, radicaliza a crítica do liberalismo através da crítica ao capitalismo, que instaura em sua própria base de funcionamento os poderes autocráticos do capital. Como demonstrou Marx, o capital fundamenta-se e expande a heteronomia (o domínio e a exploração dos trabalhadores), separa a liberdade da igualdade e procura legitimar a privatização do Estado através da ideologia do contratualismo liberal. Gramsci, através do conceito de hegemonia, propõe que o marxismo seja uma “heresia à religião da liberdade” (o liberalismo), construindo um novo Estado, fundamentado no consenso ativo dos cidadãos e na economia regulada, a partir de princípios de civilização alternativos.

47. Como corrente dominante no interior do liberalismo democrático (aquele liberalismo que recepciona o direito universal ao voto), o chamado elitismo democrático procura desvincular a soberania popular do princípio de auto-governo (formando a idéia da política e da representação desvinculada do cidadão e da cidadã), a liberdade de opinião da formação da opinião pública democrática ( através da teoria do“livre mercado das ideias”), a liberdade da mulher do direito público ( naturalizando ou mercantilizando as relações de gênero), enfim, a própria liberdade da igualdade (referindo esta última apenas à livre contratação no mercado). O modo como o liberalismo opera estas quatro rupturas é definindo a “verdadeira liberdade”como negativa, isto é, como anterior (estabelecida já na sociedade civil ou no mercado) e contra o Estado (quanto menos Estado, quanto mais espaço de não intervenção do Estado ou das leis, maior será a liberdade).

48. No Brasil, a conquista do princípio mínimo de soberania popular através da universalização do direito de voto só foi alcançada em 1988. Isto é, de um ponto de vista rigoroso, a liberdade política, base do republicanismo, só se iniciou entre nós muito recentemente. A chamada “República velha”, dominada pelo liberalismo oligárquico, racista e patriarcal, foi centralmente anti-republicana e anti-cidadã. O varguismo operou fortemente com a noção de Nação e de direitos sociais mas, em seu primeiro ciclo, cassou o direito político. A primeira democracia de massas no Brasil, de 1946 a 1964, não permitia o direito de voto da maioria (estavam excluídos os analfabetos) nem o pluralismo político pleno (a esquerda não tinha a maior parte do tempo direito legal de organização partidária). A ditadura militar, com apoio de liberais conservadores, conduziu o grande ciclo da “modernização conservadora” durante a ditadura militar.

49. A transição conservadora da ditadura para a redemocratização, realizada sob intensa pressão popular mas sob a direção de setores liberais, significou exatamente a tentativa de conter ou neutralizar o princípio da soberania popular como auto-governo. Há, pelo menos, cinco caminhos através dos quais se procurou conter ou neutralizar o princípio de auto-governo na democracia brasileira pós ditadura militar. O primeiro deles foi manter um padrão de delegação executiva em geral imune ao controle público nos principais órgãos do Estado. Por exemplo, a Controladoria Geral da União, criada nos últimos anos do governo FHC, só veio a ter existência real nos governos Lula; o próprio princípio republicano mínimo da proibição da contratação de parentes – o nepotismo – só foi recentemente aprovado. O segundo foi continuar, em grande medida, com os padrões de regras eleitorais e de representação que vieram sendo construídos ao longo dos últimos anos da ditadura militar: voto personalizado e não em listas partidárias, financiamento privado ilimitado e sem controle, representação não proporcional segundo as populações na Câmara Federal, atribuição de funções não federativas mas revisoras ao Senado. O terceiro caminho foi o de não regulamentar aquelas proposições mais avançadas, de democracia participativa, aprovados na Constituição de 1988. O quarto caminho foi de barrar a nova regulação do sistema de comunicação, favorecendo a crescente privatização do processo de formação da opinião pública através da concentração das grandes empresas de comunicação de massa. O quinto caminho, enfim, foi de barrar os possíveis elos de relação do ativismo cidadão com a institucionalidade estatal, mantendo uma cultura e mecanismos de forte repressão aos movimentos sociais.

50. A vitória de uma coligação liderada pelo PT nas eleições presidenciais de 2002 só foi possível, assim, após um longo processo de acumulação social e política, em uma dinâmica no fundamental de fora para dentro da institucionalidade estatal, e em meio ao grande desgaste dos governos neoliberais. Antes desta vitória, não houve conquistas democráticas significativas que alterassem a natureza problemática do Estado brasileiro, exceto no plano municipal e estadual de forma muito parcial e descontínua. Esta consciência é decisiva porque é fundamental para entender a crise vivida pelo governo Lula em 2005 e os impasses políticos vividos pelo PT em relação à sua cultura socialista. Há, pois, entre a cultura do socialismo democrático do PT e o Estado governado por ele nos últimos anos um conflito central, que diz respeito à própria natureza liberal e anti-republicana do Estado brasileiro.

51. É fundamental, pois, superar as cinco interdições que bloqueiam a expansão no sentido do auto-governo do princípio da soberania popular na democracia brasileira:

– as funções executivas que, com precário ou insuficiente controle público, reproduzem privilégios corporativos, dinâmicas de corrupção sistêmica ou são capturadas por interesses privatistas ;

– o sistema eleitoral e de representação que mal representa a sociedade brasileira, como em relação às mulheres e aos negros, distorce fortemente a representação em favor dos capitalistas e desmoraliza a própria atividade política aos olhos de uma cultura cidadã;

– o sistema de deliberação público que ainda não institucionalizou a democracia participativa – seus fóruns, suas legitimidades, seus procedimentos – no plano federal;

– o sistema de comunicação que mal comunica, silencia, distorce e privatiza o processo de formação da opinião pública democrática e pluralista;

– o sistema repressivo de segurança que, se foi praticamente coibido no âmbito das relações do governo federal, ainda atua em grande medida à margem dos padrões mínimos de direitos humanos para as populações pobres e trabalhadoras.

52. A conquista do financiamento público de campanha e do voto em lista, com a paridade na representação de mulheres, deve ser considerado um objetivo programático estratégico do PT. Nas duas experiências do governo Lula, o PT viveu todas as contradições, riscos e desafios do chamado presidencialismo de coalizão, herdado da transição conservadora, através do qual o presidente eleito por voto majoritário em primeiro ou segundo turno não tem formado uma maioria no Congresso Nacional para governar. Sem maioria estável no Congresso Nacional, o presidencialismo brasileiro se abre quase automaticamente à paralisia decisória de governo ou a situações potenciais de crise institucional. Mais além desta problemática, é a própria expressão democrática e auto-reformadora do princípio da soberania popular, no sentido da formação de novos direitos cidadãos ou de criação de leis mais avançadas que fica fortemente comprometida ou parcialmente neutralizada com o atual sistema eleitoral que distorce profundamente a representação do povo brasileiro. A única legitimidade, no limite, defensável da existência do Senado brasileiro é a sua participação em decisões de caráter nitidamente federativo, função que poderia ser alternativamente cumprida por uma exigência de critérios especiais para aprovação de leis de nítido caráter federativo em um sistema unicameral: a sua função revisora quebra nitidamente o princípio da soberania popular, ao sobrerepresentar estados com menor população e subrepresentar estados de maior densidade populacional. O financiamento privado das campanhas, em particular do modo como é exercido no Brasil, praticamente sem controle e em um país de tal desigualdade estrutural de renda, é um verdadeiro atentado ao princípio republicano de que a democracia deve ser baseada nos direitos simétricos dos cidadãos e cidadãs. Trabalhadores, pobres, negros, mulheres, agricultores familiares e sem terra são profundamente subrepresentados e banqueiros, capitalistas, ricos, brancos, homens, empresários do agro-business têm seu poder de representação escandalosamente majorados. Além disso, o onipresente caixa 2 das campanhas deve ser compreendido como o principal canal de reprodução da corrupção sistêmica no Estado brasileiro. Com a vigência do atual sistema de financiamento privado das campanhas, a cada eleição renovam-se e reproduzem-se os esquemas de corrupção, vinculando financiamentos ilegais a compromissos não públicos de eleitos com suas fontes financiadoras. O voto em pessoas e não em partidos é a grande arma dos políticos fisiológicos, verdadeira tradução da tradição transformista da política brasileira, isto é, de realizar mudanças não através de rupturas democráticas mas de transições negociadas e pactuadas pragmaticamente, nas quais os atores políticos atualizam e fraudam seus posicionamentos originais na cena política. Ele se combina com a cultura das carreiras políticas e dos privilégios corporativos da“profissão de político”, que os vão separando e segregando da cultura cidadã ativa e do controle público de seus mandatos. Estas características anti-democráticas do sistema eleitoral estabelecem um verdadeiro fosso entre a expansão da presença social do povo e sua expressão política, em especial das mulheres, no mercado de trabalho e na educação, e a sua representação política, hoje escandalosamente uma das menores do mundo (apesar da conquista histórica da primeira mulher presidenta do Brasil).

53. Por contrariar interesses econômicos e conservadores tão estruturados e enraizados na nossa sociedade e na nossa cultura política, a conquista do financiamento público de campanha e do voto em lista, com paridade na representação das mulheres, não será fruto de uma auto-reforma do sistema político. Ela só pode vir através da pressão da opinião pública e da cidadania ativa, a partir da união supra-partidária de todas as lideranças progressistas brasileiras lideradas pelos socialistas democráticos. Para vencer a batalha da opinião pública será preciso desmontar as armadilhas da chamada“espiral do cinismo”: a corrupção política é aceita como inevitável, os cidadãos desertam da política, os políticos corruptos agem cada vez mais corruptamente, a opinião pública, instruída pela cantilena liberal, conforma-se ceticamente. Seria um erro fatal para os socialistas democráticos se adequar pragmaticamente a esta cultura cínica, aprendendo a ser“majoritário” em uma cultura política anti-cidadã. Para conseguir seu objetivo, a campanha pela reforma política terá que ganhar um tom cívico, nacional e popular como foi a campanha das diretas já.

54. Até quando construiu a sua primeira dimensão social, abrindo-se à integração do povo à idéia de Nação, sob a égide do positivismo e da liderança histórica de Vargas, o Estado brasileiro não se apoiou na soberania popular e no princípio da cidadania ativa. Os 21 anos de ditadura militar refundaram o Estado varguista, na perspectiva dependente e associada, não mais nacional e de inclusão social, expandindo seus instrumentos e instituições sistêmicas para servir à acumulação capitalista selvagem. Os anos neoliberais pretenderam uma nova refundação conservadora do Estado, argumentando contra a sua falência burocrática, corporativa e nacional, propondo como alternativa a gestão do Estado a partir da ótica empresarial e de mercado, atacando a base mínima de direitos trabalhistas estabelecida na CLT e dissolvendo a soberania econômica do Estado brasileiro nos grandes fluxos do capital financeiro internacional e nacional. Ao retomar e aprofundar as dimensões sociais e nacionais do Estado brasileiro, os socialistas democráticos propõem uma alternativa às dimensões autocráticas do corporativismo varguismo e às projeções autocráticas do gerencialismo neoliberal com o princípio do Estado republicano fundado na cidadania ativa. Está provado que tecnocracia sem democracia não traz eficiência ao Estado. E está demonstrado que a solução do choque de gestão neoliberal destrói, pela raiz, a dinâmica pública do Estado. Um programa para desenvolver e aprofundar o caráter público e democrático da gestão do estado brasileiro é estratégico para os socialistas democráticos. Sem ele, é a própria natureza do socialismo democrático que é engolfada historicamente pela formação de novos burocratas, novos ricos do poder, sombras patéticas e odiosas de militantes que nunca serão verdadeiros burgueses mas cada vez mais estranhados em relação aos trabalhadores e ao povo que afirmam representar.

55. É preciso, pois, construir fortes alavancas para lutar contra as três pragas do estatismo: o mando vertical e autocrático, que se esconde na pseudo natureza exclusivamente técnica da função; os privilégios corporativos que agridem o interesse público e criam o solo para a formação de castas que buscam se auto-reproduzir; a corrupção e a captura da gestão do estado em lógicas de interesses privatistas. As respostas inscritas na tradição socialista ao mando vertical e autocrático são a gestão colegiada, co-gestionada (com representação e participação deliberativa daqueles que são afetados pelas decisões) e auto-gestionada (dos próprios trabalhadores). Estes princípios não negam a natureza técnica da gestão mas a recriam e requalificam sob a lógica do interesse público e devem ser criativamente aplicados, caso a caso, afirmando um novo modo petista de gerir o Estado nacional. Privilégios corporativos, que se reproduzem com a natureza fisiológica inscrita na cultura política brasileira, atentam contra a simetria de direitos e deveres dos cidadãos: devem ser vistos como escândalos para os valores do socialismo democrático! Políticas afirmativas de mulheres e negros nos cargos de direção, limitações de altos salários e combate às prerrogativas de aposentadorias especiais, estabelecimento de regras claras de admissão e ascensão funcional, transparência dos gastos são regras mínimas a serem enriquecidas e desenvolvidas pelos socialistas democráticos na gestão do estado. O ataque à corrupção sistêmica no Estado brasileiro, se ganhou um novo estatuto na dimensão investigativa (com as ações da CGU e da Política Federal), carece ainda de ganhar eficácia e rigor na dimensão punitiva (os corruptos usam e abusam de um sistema legal arcaico e cheio de falhas para escapar à punição), além da adoção de todo um sistema de prevenção (que passa pelo largo desenvolvimento de controles externos verticais e horizontais, isto é, do público e dos próprios órgãos de controle institucional).

56. O tema das democracias diretas e semi-diretas na revolução democrática deve ser repensado a partir de três critérios fundamentais. O primeiro refere-se ao próprio processo da decisão: questões essenciais que têm um impacto profundo e geral na vida da população devem ser objeto de fóruns diretos de decisão; questões já reguladas com graus razoáveis de legitimidade majoritária ou consensual devem ser objeto de decisões tomadas em fóruns de democracia representativa; questões cujo consenso regulatório e prático já têm um alto grau de legitimidade majoritária ou consensual podem ser deliberadas delegativamente. O segundo refere-se à relação das formas de democracia direta com a soberania popular: fóruns parciais de democracia direta ou de delegados não podem decidir por sobre o princípio da soberania popular, que, por definição, deve expressar a vontade geral, o que há de comum ou majoritário nas vontades particulares. Em terceiro lugar, as formas de democracia direta devem se relacionar com os condicionantes de territorialidade, tempo, grau de informação e formação, enfim, de cultura política dos que são chamados a decidir. Os avanços nas formas de democracia direta e semi-direta são, neste sentido, um processo de acúmulo e de conquistas democráticos e se relacionam com o contexto mais geral da própria dinâmica da revolução democrática.

57. Cada avanço nas práticas da democracia participativa construído durante os governos Lula deve ser o maior motivo de orgulho dos socialistas democráticos. Mas, ao mesmo tempo, deve se ter a consciência que nesta área –tão fundamental para a afirmação de uma cultura cidadã e para a própria superação das características corporativas dos movimentos sociais brasileiros – o fundamental ainda está a ser conquistado. A prática de referendos e plebiscitos sobre questões fundamentais ou de largo alcance para a vida do povo brasileiro precisa deixar de ser uma excepcionalidade. Os partidos e movimentos que se inscrevem na lógica da revolução democrática devem estar em mobilização permanente em torno à iniciativa popular de leis. As conferências nacionais temáticas precisam ganhar legitimidade para a produção das agendas das políticas públicas, de suas prioridades, de sua aplicação, alcançando inclusive um poder decisório de condicionar, co-deliberar a prática do poder soberano (talvez o estatuto democrático que melhor revele esta dimensão participativa e deliberativa seja o do próprio SUS, que prevê a participação deliberativa dos usuários e trabalhadores junto com a representação do governo). Em particular, a definição do orçamento público da união – de suas fontes de receitas, de suas prioridades de gastos, de seus planos – deve ganhar uma dinâmica crescente de publicização, gerando uma cultura crescente de participação e deliberação nacional.

58. A privatização do processo de formação da opinião pública no Brasil – os oligopólios dos meios de comunicação de massa e um quadro de veto à aplicação da definição constitucional que prevê a atualização de sua regulação, criando uma situação quase de vazio legal –está certamente hoje entre os maiores obstáculos da democracia brasileira. A voz do cidadão não chega ao público e, quando chega, soa enfraquecida, distorcida, subvalorizada. Já a voz dos que têm privilégios, principalmente os de maior riqueza, propriedade e renda, chega estridente, silenciadora, caluniadora e preconceituosa. Os banqueiros têm uma livre tribuna cotidiana, em horário e espaço nobres; as dezenas de milhões de trabalhadores não têm sequer uma coluna ou seção ou programa para fazer valer sua cultura, seus valores, seus interesses. Na comparação internacional, é certamente a situação mais escandalosa em todos os contextos nacionais minimamente democráticos.

59. A formação de uma opinião pública democrática no Brasil depende, assim, de três conquistas a serem construídas:

– a formação de um espaço público estatal, uma verdadeira cadeia de meios de comunicação de massa, concebido de forma plural e democrática, durante todo um ciclo histórico;

– a regulação do sistema de mídia privado, a partir de critérios pluralistas e democráticos, segundo o interesse público;

– e a formação naquele campo em que as esquerdas e os movimentos populares brasileiros sofreram as suas maiores derrotas históricas – a da formação de seus meios de expressão e comunicação públicos –de uma vasta rede formada por cooperativas, circuitos virtuais, imprensa opinativa e independente, rádios livres e televisões alternativas, que dê pleno direito de voz e audiência aos sujeitos sociais da revolução democrática.

60. No contexto dos países latino-americanos que sofreram ditaduras militares, com todo o seu rol de crimes contra os direitos humanos, o Brasil ainda é, apesar dos enormes avanços conquistados principalmente no segundo governo Lula, um dos países mais atrasados na aplicação da chamada Justiça de Transição, consagrada no direito internacional. Isto é, um conjunto de ações de reparação, segundo os valores democráticos, daqueles que sofreram violências de todos os tipos –da censura à tortura, do exílio à morte, da cassação à demissão por motivos políticos – das ditaduras militares, o que inclui a punição dos torturadores considerados autores de crimes imprescritíveis. O direito ao reconhecimento público da verdade, a homenagem aos martirizados na luta contra o regime militar, a valorização de seus projetos e utopias de transformação social enquadram-se na Justiça de Transição. No Brasil, a transição negociada entre liberais conservadores e os dirigentes militares da ditadura, preservaram, em nome do esquecimento dos crimes cometidos, o direito de veto dos militares à Justiça de Transição.

61. Está evidentemente vinculado a esta falta na democracia brasileira dos valores da Justiça de Transição, a manutenção de um aparato de segurança público e privado que funciona às margens dos direitos humanos e que age violentamente, em geral, contra os mais pobres, em particular os negros e favelados. Após o grande emprisonamento dos anos neoliberais, quando o número de encarcerados no Brasil aumentou em mais de mil por cento, os presídios massificaram uma herança antiga, a de submeter presos comuns, em geral os mais pobres já que os que têm acesso a dinheiro ou educação superior acabam por conseguir condições de carceragem especiais, a situações que fazem lembrar campos de concentração. Superar esta chaga brutal da prática cotidiana e atual do Estado brasileiro é também uma das metas da construção de um novo Estado democrático, que inclua a segurança pública no direito cidadão.

V. A conquista do planejamento democrático

62. Um dos desafios centrais da elaboração das diretrizes do programa da revolução democrática é o de encontrar os caminhos de combinação da democratização do Estado brasileiro com a transformação das estruturas econômicas do país, formando o que se poderia chamar de economia política da revolução democrática. Pensar um programa de democratização do Estado, mesmo em chave aparentemente radical, sem esta base material econômica é cair no erro da má subjetividade, isto é, descarnar a liberdade política de sua base social, incorrendo na ilusão de matriz liberal de pensar o Estado separado da sociedade civil. Por outro lado, pensar a democratização do estado sem questionar os limites das instituições liberais democráticas, produzindo o que se chamou tradicionalmente de“economia mista” e democracia do Estado do Bem-Estar Social, apoiada na cultura parlamentar e corporativa, é incorporar os impasses da social-democracia para uma época em que o capitalismo, já com uma base de financeiração internacionalizada qualitativamente nova, cobra de forma devastadora e permanente os limites históricos da social-democracia. A vantagem histórica de trabalhar com a noção de “estado integral” é, pois, adquirir consciência e perspectiva de uma programa coerente de transformações na política, na economia, na cultura das relações pessoais e na relação com a natureza, conformando uma alternativa de civilização alternativa ao capitalismo.

63. Assim como a perspectiva de democratização e republicanização do Estado deve se basear na relação entre soberania popular e formas de auto-governo, na economia as diretrizes da revolução democrática devem trabalhar com as noções centrais de planejamento democrático e economia pública. Isto é o planejamento democrático é exatamente a forma através da qual se procura vincular as metas econômicas às escolhas democráticas de um povo, seja na garantia de sua soberania econômica, seja nas prioridades definidas do desenvolvimento, seja na forma como o investimento e o avanço científico-tecnológico é produzido e apropriado, seja através da afirmação do princípio da valorização do trabalho que organiza a vida da maioria, seja através da garantia da distribuição mais eqüitativa possível dos bens e serviços produzidos. Inserida em um contexto capitalista, submetido a todo tipo de constrangimento sistêmico imposto pela dinâmica dos grandes capitais nacionais e forâneos, tal perspectiva de planejamento democrático só pode ser construída a partir de uma perspectiva de economia pública, isto é, se o Estado democrático for crescentemente construindo a sua capacidade de soberania frente às forças assimétricas do mercado mundial, de financiamento, de provisão e de regulação da inovação cientifica-tecnológica, de provisão e regulação democrática naquelas áreas consideradas estratégicas para a dinâmica macro-econômica e para a vida social.

64. No Brasil, os conceitos de planejamento democrático e de economia pública foram construídos historicamente pelo grande economista Celso Furtado, em suas duas fases de vida pública, antes e depois de 1964. Na primeira fase, construiu o conceito de subdesenvolvimento como típico de uma situação histórica particular na periferia capitalista de economias e sociedades marcadas por diferenças estruturais, que se alimentavam mutuamente. A partir deste conceito e da incapacidade das forças de mercado de auto-produzir a superação do subdesenvovimento, Celso Furtado propôs o planejamento democrático como forma de industrializar o país, vencer o atraso endêmico do Nordeste, inclusive através da reforma agrária, constituir uma nova dinâmica soberana de crescimento baseado na vasta inclusão social da população pobre e marginalizada no mercado interno. Na segunda fase, a partir principalmente do livro “O mito do desenvolvimento econômico”, através de um pensamento auto-crítico sobre os limites de seu pensamento e experiência, Celso Furtado passou a fundar sua esperança na possibilidade de que “a evolução das classes trabalhadoras se (faria) no sentido da crescente identificação com as sociedades nacionais a que pertencem, ou melhor, com um projeto de desenvolvimento social que pode ser monitorado a partir do Estado de cujos centros de decisão participam.” Neste sentido, coloca-se mesmo a questão se a superação do subdesenvolvimento não exigiria a própria superação do capitalismo. Neste esforço auto-crítico, Celso Furtado inaugura o que se poderia chamar de “economia política da ecologia”,questionando cada vez mais as matrizes de civilização que impulsionavam o crescimento econômico devastador da natureza e valorizando a própria cultura nacional e popular brasileira como fonte de novas perspectivas.

65. A companheira Maria da Conceição Tavares, por um caminho próprio e dialógico com o grande mestre de sua geração, aprofundou e atualizou dimensões estratégicas da construção desta lógica do planejamento democrático, identificando as dimensões financeiras internacionais e nacionais que criaram o impasse do crescimento da economia brasileira a partir dos anos oitenta. Mais além disso, politizando e desnaturalizando os padrões estruturais da economia brasileira, mostrou como a posse do poder, historicamente produzida desde a construção do Estado nacional em soluções patrimonialistas e liberais oligárquicas, impediu que as dimensões fundantes do dinheiro, da terra e do trabalho fossem submetidos ao controle e regulação democrática. Isto é, a refundação democrática do estado brasileiro teria exatamente o desafio histórico de produzir uma nova organização e regulação democrática do dinheiro (hoje ainda fortemente submetido ao rentismo), da terra (hoje ainda fortemente concentrada ) e do trabalho (hoje ainda carente de direitos simétricos ao seu papel fundamental na construção das riquezas do país).

66. A experiência do governo Lula veio retomando, enriquecendo e aprofundando esta tradição ao implementar iniciativas criativas em uma série de áreas fundamentais à constituição das bases de um planejamento democrático da economia como na produção da soberania nacional (acumulando reservas historicamente inéditas, revalorizando ao lado do mercado interno uma forte dinâmica exportadora, reposicionando audaciosamente o Estado brasileiro na ordem internacional), na prioridade concedida ao controle da inflação compatibilizado com o crescimento sustentado (a inflação, além de gravar mais os pobres, mina a própria base do planejamento que não pode se instaurar minimamente em uma situação de descontrole inflacionário), no controle e redução da dívida pública (fundamental para uma perspectiva de longo prazo de planejamento democrático), na introdução de mecanismos reguladores mínimos sobre o processo de dano ecológico, na valorização inédita da agricultura familiar, em novas políticas públicas de inclusão social e na adoção de uma inédita política de valorização do salário-mínimo que criaram uma dinâmica virtuosa de expansão do mercado interno, no reposicionamento dos bancos públicos (em particular a CEF no setor de moradias e o BNDES no setor de investimentos), na construção de uma nova política energética através da retomada e expansão do caráter público e sistêmico da Petrobrás. A construção de uma lógica histórica de planejamento democrático e de economia pública deve ser pensada, então, a partir das potencialidades e saltos de qualidades possíveis na nova dinâmica desenvolvimentista e social em curso.

67. São seis os desafios principais colocados a uma construção histórica do planejamento democrático e da economia pública no Brasil: o avanço na construção da soberania nacional; a definição e identificação das áreas da economia pública; o desenho de um modelo de crescimento sustentado que seja assentado em uma economia ecológica; a expansão para um campo macro-econômico das formas de economia solidária, capazes de construir alternativas à propriedade privada dos meios de produção; a definição de um programa estratégico para a produção agrária brasileira e, enfim, a construção de um projeto integrado e sistêmico dos direitos dos trabalhadores, ou seja, um Estado do Bem-Estar Social construído a partir dos valores do socialismo democrático.

68. Historicamente o maior salto de qualidade na construção da soberania nacional foi classicamente identificado por Celso Furtado na experiência varguista de 1930-45, em meio ao caos sistêmico gerado pela crise de 1929 e aos acontecimentos que levaram à Segunda Guerra Mundial. O desafio de produzir um novo avanço qualitativo na soberania nacional se dá em condições estruturais e internacionais bastante diversas. Hoje a economia brasileira está profundamente mais integrada ao mercado mundial do que era em 1930: através do sistema financeiro, da base produtiva industrial, do agro-negócio da exportação, do sistema de comunicação e dos padrões de consumo. E a conjuntura internacional insere-se no ciclo longo de crise da hegemonia norte-americana, de impasses profundos da economia do euro, simultâneo a um forte movimento de ascensão econômica da China.

69. A grande lição da crise econômica internacional de 2008, afora a velocidade do contágio da economia brasileira à crise financeira que veio desta vez do centro mesmo do sistema, foi que, frente aos reposicionamentos nitidamente especulativos, defensivos e alimentadores da crise imediatamente realizados pelos bancos privados e pelos empresários, foi fundamental o forte movimento anti-cíclico liderado pelo Estado nacional, a partir de suas posições de força na economia púbica. Esta é a grande lição: é a força de raiz da economia pública que condiciona fundamentalmente o grau de soberania da economia brasileira frente ao mercado internacional. Sem esta força – sua própria matriz econômica nas áreas estratégicas, a começar pelo financiamento, sua capacidade de regulação sistêmica – a economia brasileira será sempre dirigida pelos movimentos próprios da valorização do capital, em sua forma financeira, que já mostraram em várias circunstâncias o seu potencial devastador. Um ciclo econômico virtuoso no Brasil, de larga temporalidade histórica, depende então de um aprofundamento sistêmico do grau de soberania, superando os constrangimentos e pressões que se refletem no câmbio e se comunicam com a dimensão do comércio externo e das finanças.

70. De um ponto de vista histórico mais largo, a soberania da economia brasileira parece depender de um esforço combinado em várias direções: a consolidação e dominância de um sistema financeiro público, capaz de resistir às lógicas perversas da financeirização em seu momento especulativo e de crise; a consolidação e expansão do mercado interno como base territorial e sistêmica virtuosa de um crescimento sustentado; a adoção de mecanismos de controle e regulação dos capitais especulativos internacionais; a orientação de políticas de substituição de importação combinada com a valorização da exportação de produtos e serviços de maior densidade em relação às chamadas commodities; o investimentos em educação e em áreas definidas como chaves de fronteira científica e tecnológica que protejam a economia brasileira de uma crescente dependência; a construção de uma política macro-econômica coerente de soberania alimentar; a larga utilização das divisas do pré-sal para financiar políticas de investimento nos padrões sociais, culturais e científicos do povo brasileiro.

71. Durante a sua formação programática, o PT já aprendeu que a propriedade estatal pode muito bem conviver, como na época da ditadura militar, com o predomínio de interesses privatistas na gestão e na própria função da empresa. Combateu a cultura da privatização e da regulação pela lógica de mercado, denunciando os seus efeitos catastróficos sobre os interesses públicos. Construiu, assim, ao longo de sua história as bases do conceito de público, que precisa agora desenvolver e aclarar na sua cultura política. Público é tudo aquilo que é democraticamente gerido para fins universalistas, isto é, para os fins consensualmente definidos ou que interessam à maioria. Entre estes fins, incluem-se com novo destaque as condições ecológicas de sustentabilidade da economia e do bem viver. Procedimento democrático e finalidade pública assim se combinam necessariamente nesta definição, que abarca a interação de três áreas: o Estado democraticamente gerido, o privado mercantil submetido a uma regulação democrática e segundo os interesses públicos e aquelas formas públicas não estatais como os fundos públicos, as experiências cooperativas, as formas auto-gestionárias e co-gestionárias que caracterizam o que vem sendo chamado de economia solidária, as quais não são geridas autocraticamente nem seguem unicamente o princípio da maximização do lucro. Estas três formas do público podem e devem se compor criativamente, segundo a área de interesse púbico e de acordo com o grau de construção da capacidade de planejamento democrático do Estado. Há decerto uma relação de mútua configuração entre o poder econômico do Estado democrático e sua capacidade de regulação democrática: quanto menor o poder, menor a capacidade de regulação, como programaticamente defendiam os neoliberais, associando regulação à lógica de criação das melhores condições sistêmicas para a valorização do capital. Por outro lado, quando maior o poder econômico do Estado democrático, como, por exemplo, na área financeira, maior a sua capacidade de regular, de impor regras e limites e, inclusive, dirigir em grande medida o fluxo financeiro da economia.

72. A definição de quais áreas da economia devem ser públicas, semi-públicas ou privadas (ainda dominadas pela lógica mercantil e com fraca regulação) deve consultar a vontade soberana e democrática de um povo, identificando claramente as condições e as metas sistêmicas de um planejamento democrático. É razoável, a partir destes critérios gerais, propor as seguintes áreas em que deve dominar a razão pública democrática: o setor financeiro, a área de ciência e inovação, o setor de energia, as condições agro-industriais de construção da soberania alimentar, a comunicação e a cultura, a área de infra-estrutura, aqueles bens e serviços que são fundamento da reprodução da vida social, como saúde, educação, segurança, previdência, moradia e saneamento, transporte urbano. O predomínio da razão pública implica que o Estado democrático deve constituir em cada uma destas áreas o seu protagonismo como provedor e regulador sistêmico que são as bases de um planejamento democrático.

73. A economia brasileira, desde o período colonial, desenvolveu-se sempre a partir de um princípio predador da natureza. À medida em que o conjunto das relações sociais passou a interagir direta ou, em casos excepcionais, mediadamente com a lógica do mercado, este sentido predador mercantil estabeleceu inclusive uma pressão crescente sobre as reservas ambientais e comunitárias do povo brasileiro. O ciclo de expansão varguista e, de forma mais desabrida, o ciclo de expansão do capitalismo brasileiro sob a lógica da ditadura militar teve uma dinâmica extremamente predatória, internalizando e massificando padrões de consumo típicos dos países capitalistas centrais. Coube ao governo Lula começar, enfim, a construir um padrão mínimo de regulação das dimensões predatórias do desenvolvimento econômico, que tinham um perfil apenas simbólico até os governos FHC. O controle e drástica diminuição do desmatamento da Amazônia, o amadurecimento de padrões baseados em energia renovável, a adoção do Tratado de Kyoto no plano internacional e a construção de uma base mínima de regulação de novos projetos econômicos significaram um avanço histórico inestimável mas aquém de um novo ciclo econômico auto-sustentável. Se a vasta inclusão de dezenas de milhões de novos consumidores é um imenso passo civilizatório, porque vem cobrir carências fundamentais dos mais pauperizados, de outro lado, quando reproduz padrões não sustentáveis, como o de consumo de automóveis, ela repõe impasses históricos para um programa auto-sustentável. A retomada do crescimento forte da economia irradia novas tensões sobre a produção de energia, as reservas ambientais, as grandes cidades brasileiras. O desafio passa a ser, cada vez mais, não apenas regular e minimizar os danos do crescimento mas repor o que foi secularmente devastado e principalmente investir em novas formas de produção, distribuição e consumo que revelem novos princípios de civilização que não aqueles magnetizados pela lógica produtivista e consumista dos grandes centros capitalistas. Um planejamento democrático da economia brasileira deve estabelecer também, neste sentido metas ecológicas públicas a serem alcançadas.

74. O Brasil já dispõe hoje de uma vasto e nacionalizado repertório de práticas de economia solidária, mais presentes no campo do que na cidade, mais desenvolvidas na produção e na comercialização do que no financiamento. Ao longo dos oito anos do governo Lula, pela primeira vez, embora ainda de forma parcial, praticou-se uma política pública de incentivo à economia solidária. Apesar de todos os avanços, esta política pública ainda é secundária no planejamento econômico do Estado brasileiro. Para os socialistas democráticos, ela é fundamental porque instaura no coração da economia uma cultura alternativa à economia capitalista centrada na propriedade privada dos meios de produção e no lucro, no trabalho alienado. No seu processo, os trabalhadores aprendem os fundamentos de auto-gestão e co-gestão. A revolução democrática deve incluir no seu programa o desenvolvimento macro-econômico da economia solidária, isto é, o processo histórico de criação das condições econômicas e de cultura política que permitam o seu transcrescimento em escala, territorialidade e densidade tecnológica. Neste ciclo histórico, dezenas de milhões de brasileiros estão sendo incluídos na atividade produtiva e no acesso aos conhecimentos técnicos, centenas de territórios desde sempre marginalizados estão sendo integrados através de planos locais de desenvolvimento, a agricultura familiar está encontrando o seu espaço histórico de expansão e a reforma agrária reclama a descoberta de todo o seu potencial para o desenvolvimento brasileiro: a expansão das formas da economia solidária não devem ser pensados de fora destas dinâmicas mas sim estreitamente vinculadas a elas, formando inclusive a sua condição de possibilidade democrática e afim aos valores do socialismo.

75. A interdição da reforma agrária, em escala e proporções históricas, durante os governos Lula reflete a desconstituição de legitimidade pública (e no próprio campo da esquerda brasileira) de um programa agrário, a ausência de integração dos movimentos sociais com a dinâmica institucional dos partidos de esquerda e centro-esquerda, bem como um impasse no próprio campo de decisão sobre instrumentos chaves de sua dinamização, como a atualização dos índices de produtividade (em função do poder de veto acumulado pelo agro-business na democracia brasileira). A revolução democrática deve ser também compreendida como o espaço histórico de superação desta desconstituíção programática, desta divisão do movimento político pela reforma agrária e da interdição política. Um programa de reforma agrária deve se combinar com um projeto amplo e histórico de soberania alimentar do povo brasileiro, incorporando os valores formados nas tradições dos movimentos camponeses internacionais, e integrando metas de financiamento, investimento científico-tecnológico, produção agrária e industrial e redes de distribuição. Elementos deste programa foram criados durante os governos Lula nas gestões do Ministério do Desenvolvimento Agrário e devem, no próximo período, ganhar um salto de qualidade em direção a um patamar nitidamente macro-econômico. Este programa deve se tornar referência para a reativação e unificação de um grande movimento político nacional pela reforma agrária, capaz de isolar a legitimidade e neutralizar o poder de veto das forças políticas vinculadas ao agronegócio.

76. A construção plena de um Estado do Bem-Estar Social, dirigido segundo os valores do socialismo democrático, deve ser entendida como um grande processo de desmercantilização da vida social no Brasil, de superação das dimensões patriarcais e racialistas que resistem à universalização dos direitos e aos valores de cidadania. Pela sua importância e magnitude para a revolução democrática, ele merece um capítulo próprio no desenvolvimento das diretrizes do programa da revolução democrática.

VI. A construção de um Estado do Bem-Estar social a partir dos valores do socialismo democrático

77. Os Estados do Bem-Estar social são conhecidos em sua tipicidade européia, variando muito no grau de universalização dos direitos, no grau de progressividade da estrutura tributária e em seu caráter distributivo, no grau de democracia em que são gerados, no modo como acolhem ou não os direitos das mulheres trabalhadoras. As correntes políticas que deram legitimidade a esta construção foram historicamente as correntes sociais-democratas reformistas e os liberalismos keynesianos que se amalgamaram no contexto das décadas de forte crescimento do capitalismo mundial após a Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos oitenta, também de modo variado segundo cada país, estas construções sofreram campanhas neoliberais e conservadoras de deslegitimação e desgaste que, no entanto, não foram capazes de destruir o seu núcleo institucional. Seus limites manifestam-se, sobretudo, em uma histórica e profunda crise de perspectivas diante de quadros de crescimento do desemprego estrutural, de limites de financiamento em função da financeirização e de mudanças nas estruturas familiares (de longevidade e de instabilidade).

78. A partir de uma perspectiva do socialismo democrático, é possível apontar os limites teóricos, políticos e históricos destas experiências, mesmo nos países onde mais se avançou no processo de desmercantilização da reprodução da vida social. Em primeiro lugar, o limite do controle público do sistema financeiro que, a partir dos anos oitenta, foi impondo seus circuitos próprios de valorização, fugindo à tributação e conformando lógicas agressivas de ataques aos direitos dos trabalhadores. Em segundo lugar, a ausência de controle público sobre os processos de inovação científico-tecnológica, que fez com que a apropriação de enormes massas de mais-valia resultante dos ganhos de produtividade fossem definidos privadamente e, em geral, reinvestidos nos circuitos financeiros especulativos. Em terceiro lugar, o horizonte nacional destas experiências que as tornaram vulneráveis às dinâmicas predatórias de concorrências capitalistas selvagens, baseada na diminuição do custo da força de trabalho. No plano democrático, estas experiências, em geral, se amoldaram à função de representação corporativa dos sindicatos e à função parlamentar dos partidos, dividindo a força ativa dos cidadãos segundo os padrões de uma democracia liberal reformada. A formação de burocracias incontroladas, de clientelas despolitizadas, de arranjos conservadores em relação aos direitos das mulheres foram os subprodutos históricos deste grande déficit democrático.

Uma tradição do socialismo democrático deve ser capaz de superar estes limites teóricos e históricos da social-democracia a partir da perspectiva de construção de um novo Estado, baseado no auto-governo e no planejamento democrático, que conduza a uma afirmação inédita dos direitos dos trabalhadores e a um planejamento púbico democrático, capaz de se projetar continentalmente e internacionalmente em torno de um programa de mudanças da ordem capitalista.

79. A construção tardia de um Estado do Bem-Estar Social, a partir dos valores do socialismo democrático, é possível e viável historicamente pela conquista do governo por parte de uma coalizão liderada por um partido do socialismo democrático por longo período em uma dinâmica crescente de revolução democrática e, pelo caráter semi-periférico do país que já construiu elementos públicos importantes de formação de um Estado do Bem-Estar social, apresentando um quadro crescente de formalização da mão-de-obra e de cobertura previdenciária. A possibilidade de que o Brasil viva um novo ciclo sustentado, inclusivo e distributivo, de crescimento significa exatamente a criação de uma massa crescente de excedentes que podem e devem ser reinvestidos em políticas sociais de caráter universalizante, conformando uma macro-economia dinâmica do setor público na área de bens e serviços fundamentais. Certamente, os recursos do pré-sal vêm dar uma contribuição significativa a este esforço potencial de uma geração de brasileiros. Além disso, como a estrutura atual de arrecadação tributária é regressiva, há muito ainda a arrecadar a partir da conquista de estruturas progressivas de tributação. O Brasil deve viver pelos próximos anos uma situação demograficamente conhecida como de oportunidade, na qual o padrão de envelhecimento da população ainda não é dominante mas o crescimento demográfico já diminui bastante, fazendo com que a grande maioria das pessoas estejam em idade produtiva e possam contribuir ativamente para a construção de este gigantesco esforço histórico. O Estado de Bem-Estar orientado por essa perspectiva deve ampliar a proteção social sobre a imensa massa juvenil, reduzindo a entrada de jovens no mercado de trabalho antes de concluir sua formação acadêmica ou técnico-científica. A emancipação de jovens é a sua não dependência do trabalho para fins de sobrevivência. O Estado deve assumir, assim, a proteção da juventude diante da demanda pela exploração do trabalho juvenil. Por fim, mas não menos importante, a presença massiva das mulheres no mercado de trabalho cria uma situação de dupla sustentação do esforço de construção do Estado do Bem-Estar, evitando os desequilíbrios de estruturas baseadas no provedor masculino, como ocorre em alguns países europeus.

80. O valor central que deve presidir a construção do Estado do Bem-Estar Social nesta perspectiva é o da desmercantilização da reprodução da vida social, isto é, a retirada do poder de mercado e a construção como direito de cidadania ao acesso qualificado e equilibrado socialmente aos bens e serviços fundamentais para uma vida social digna. Os anos da ditadura militar e os anos neoliberais fomentaram, por todos os caminhos, esta mercantilização criando em um certo período da história brasileira uma dinâmica de apartheid social. Esta profunda desmercantilização da reprodução da vida social (saúde, educação, segurança, previdência, moradia e saneamento, esporte e cultura) significará sobretudo para a classe trabalhadora a libertação de centenárias situações de humilhação, aviltamento e predação. Uma nova classe trabalhadora, fortalecida socialmente em seus direitos, saudável e com acesso pleno à educação, enriquecida pelo acesso aos bens da cultura é fundamental para a construção de sua hegemonia política duradoura através da fundação de um novo Estado. Ao mesmo tempo, uma nova aliança histórica entre os diferentes setores dos assalariados, dos pequenos agricultores, será fundamentada em uma consciência de direitos cidadãos, unindo brancos e negros, homens e mulheres, jovens e velhos no mesmo direito de viver plenamente suas vidas.

81. O segundo valor é aquele que respeita e dignifica as diferenças em uma cultura cidadã de acesso simétrico aos direitos e deveres. Políticas afirmativas dos direitos das mulheres, nas dimensões privadas e públicas, devem ser incorporadas à construção feminista deste Estado do bem-estar social, rompendo as cadeias opressivas do patriarcalismo. Políticas públicas amplas de reparação dos não brancos – afirmando seus direitos, promovendo a igualdade, restabelecendo a memória e o valor das culturas e religiões oprimidas, integrando em novas agendas de civilização os seus valores – será fundamental para afirmar o grande sonho dos pensadores do Brasil que visualizaram a possibilidade de uma civilização multi-étnica, fraterna e profundamente democrática no Brasil.

82. O terceiro valor fundamental é aquele, enfim, que afirma a democracia como criação permanente de direitos e que, através de suas formas de participação, co-gestão e auto-gestão, valoriza os direitos dos trabalhadores de participarem da gestão em seus locais de trabalho. Um estado do bem-estar social, do ponto de vista do socialismo democrático, saberá valorizar o poder cidadão das classes trabalhadoras na gestão de suas instituições sociais.

83. Este processo de universalização da cidadania no Brasil, programaticamente concebido a partir dos princípios da desmercantilização, dos direitos das mulheres e dos negros, da emancipação juvenil,da democracia dos trabalhadores, deve ser concebido como o próprio processo de auto-formação do povo brasileiro em sua identidade civilizatória própria. Uma construção política, econômica e social de tal magnitude histórica, reivindica um novo olhar sobre os sujeitos históricos da revolução democrática.

VII. As forças motrizes da revolução democrática

84. A construção de uma dinâmica de revolução democrática é, ao mesmo tempo, um processo de auto-formação de seus sujeitos coletivos. Uma revolução democrática é exatamente o oposto de uma revolução passiva, isto é, de uma transformação dirigida pelo alto e que pretenda substituir o protagonismo político, social e cultural dos trabalhadores e do povo brasileiro por uma lógica estatal de acomodação dos interesses históricos das classes sociais fundamentais. A revolução democrática propõe o enquadramento e superação democrática dos conflitos que estruturam a sociedade brasileira e não a negação desta conflitividade. Por isto, ela só é possível em um quadro de um amplo e profundo ascenso – inédito em sua envergadura histórica – dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais.

85. Este ascenso é programaticamente formado pelas dimensões internacionalistas, classistas, populares, feministas e anti-racistas da revolução democrática. Um programa não feminista ou que secundarize as dimensões anti-racistas, por exemplo, repercutirá fortemente nas próprias organizações da classe trabalhadora, que têm hoje a metade de seus membros mulheres e a maioria de seus componentes não brancos. Ao interpelar os partidos e os movimentos sociais que compõem o bloco histórico para a formação de um novo Estado democrático e popular no Brasil, o programa da revolução democrática convoca-os a se auto-conceberem e atuarem como protagonistas ativos da soberania popular e de auto-governo, superando lógicas particularistas, setoriais ou corporativas. Ao propor a formação de um estado do bem-estar social a partir de valores socialistas democráticos, o programa da revolução democrática está procurando integrar e unificar a imensa maioria do povo brasileiro, em sua diversidade e pluralismo, em uma mesma plataforma histórica de interesses e valores: dos trabalhadores fabris às classes médias urbanas, das mulheres aos negros, dos trabalhadores em terra aos agricultores familiares, dos jovens aos idosos.

86. São cinco as características, mutuamente configuradas, deste ascenso histórico que impulsiona o processo da revolução democrática: o fortalecimento estrutural da classe trabalhadora; a formação de uma maioria eleitoral estável sob a liderança dos partidos de esquerda; a formação de uma consciência pública afim aos valores do socialismo democrático; a superação das culturas corporativas dos movimentos sociais, em particular do movimento sindical brasileiro e, por fim, a construção de uma rede de comunicação social capaz de expressar e dar voz pública e plural deste bloco histórico.

87. Os governos Lula e, agora, o governo Dilma estão produzindo um fortalecimento estrutural da classe trabalhadora no Brasil, de significado e perspectivas ainda mais profundas que aquelas bases sociais nos quais se formou o chamado “novo sindicalismo” e o próprio PT. Apenas nos oito anos de governo Lula, foram criados 15 milhões de postos de trabalho formalizados. Esta nova classe trabalhadora, formada em ambiente de direitos democráticos, mais escolarizada, potencialmente mais feminista e mais anti-racista, representa a base social da hegemonia política das esquerdas brasileiras. O enfraquecimento do liberalismo no Brasil, de sua capacidade hegemônica, não autoriza as previsões pessimistas de que estes novos setores sociais, tratados com superficialidade como “a nova classe C”, por seus padrões de consumo, tendem a ter uma consciência conservadora. Pelo contrário, eles estão potencialmente disponíveis e abertos a uma evolução socialista de seus valores e de voto à esquerda.

88. No Brasil, historicamente, um ambiente democrático e de soberania popular sempre se demonstrou desfavorável aos valores liberais e conservadores. A ditadura militar de 1964 interrompeu um fluxo histórico de organização popular, o primeiro de caráter nacional havido na história brasileira, e de perda de posições eleitorais dos partidos conservadores. Desde as eleições de 1989, tem-se observado tendências de crescimento do PT e dos partidos de esquerda e centro-esquerda e de perda de posições de partidos de direita e centro-direita, sem que se atribua a elas um caráter linear e que abstraia das próprias lógicas e incertezas da disputa política. Estas tendências estão, de fato, em alguma medida neutralizadas pelas próprias características do sistema eleitoral, em particular pelo financiamento privado das campanhas. Mas é possível e correto propor a formação de um bloco político que estabeleça uma hegemonia histórica dos partidos de esquerda, ampliando alianças com partidos de centro-esquerda, nas eleições brasileiras. Uma maioria eleitoral sustentável, pluralista e com sentido de esquerda, pode garantir uma continuidade governativa e um ativismo parlamentar capaz de apoiar, em escalas ampliadas, lógicas virtuosas de transformação estrutural da sociedade brasileira.

89. Outra característica deste ascenso histórico é a formação de uma consciência popular majoritária afim aos valores do socialismo democrático no Brasil. Não há nenhuma razão, mesmo da ordem de pragmatismo eleitoral, que justifique o fato do PT não se apresentar cotidianamente como partido do socialismo democrático. Em uma cultura política na qual os valores conservadores foram nitidamente anti-populares e na qual o liberalismo não conseguiu dar respostas históricas às questões nacional, social e desenvolvimentista, as passagens para uma consciência socialista democrática não têm uma barreira sólida e intransponível diante de si. Assim, o classismo, o internacionalismo, o feminismo socialista, o eco-socialismo, os comunitarismos populares, as consciências republicanas radicalizadas, o anti-racismo, os cristianismos da libertação, as culturas alternativas dos jovens, o cultivo das belas tradições de resistência do povo brasileiro, a formação de suas grandes tradições artísticas que desde o Movimento Modernista de 1922 recepcionaram criticamente a modernidade capitalista, fornecem bases de valores e possibilidades de passagem para consciências socialistas democráticas. É preciso, pois, criar as formas, os espaços, as festas, as redes comunicativas, as experiências de luta e de auto-organização para que tais passagens possam acontecer.

90. Mais uma característica deste ascenso histórico do povo brasileiro é a superação das variantes corporativas e das lógicas de resistência que ainda marcam largamente os movimentos sociais no Brasil, em particular as organizações sindicais da classe trabalhadora. Os direitos sociais no Brasil formaram-se sempre através das lutas sociais mas o seu enquadramento histórico deu-se, a princípio, através de uma estrutura corporativa, não universalista nem distributiva. Ao longo dos anos de luta contra a ditadura militar e, depois, nos anos que se seguiram à redemocratização construíram-se lógicas extremamente segmentadas e diferenciadas de direitos públicos, muitas vezes em composição com a mercantilização dos serviços. A própria noção de autonomia dos movimentos sociais, se válida em contextos nos quais lutavam contra Estados adversos à participação e à ampliação dos direitos, deve ser requalificada em uma nova conjuntura histórica na qual a agenda do Estado se abre à democracia participativa e à ampliação dos direitos sociais. Movimentos corporativos em geral constroem estruturas verticais de organização. Movimentos de resistência são incapazes de ocupar plenamente as possibilidades de mobilização e aumento de suas densidades organizacionais. O processo da revolução democrática reivindica, pois, dos movimentos sociais uma nova imaginação histórica de suas possibilidades e um trasncrescimento de suas redes de organização, na base e de frente única.

91. A quinta característica deste ascenso é exatamente a configuração de uma rede social de comunicação que crie as condições permanentes de formação e desenvolvimento de uma opinião pública democrática no país. Esta continua sendo uma das principais vantagens estruturais das classes dominantes na disputa política em curso. Esta vantagem repousa, de um lado, na combinação entre capital e mídia, que se tramou nos anos da ditadura e do neoliberalismo e, de outro, na subestimação radical das dimensões comunicativas que compõem o núcleo mesmo do processo histórico da construção de uma nova hegemonia. O bloco histórico da revolução democrática é, pois, o movimento político que tem todas as condições, materiais e subjetivas, para superar esta defasagem histórica que se foi se formando entre potência política e capacidade de dar voz aos cidadãos e cidadãs.

VIII. As dimensões programáticas internacionais da revolução democrática

92. Ao propor para o/a cidadão/ã brasileiro/a em formação a identidade do “sentimento do mundo”, o poeta brasileiro já trabalhava com a inteligência dos grandes clássicos de interpretação do Brasil. Nossa própria raiz era universal (o encontro violento, da exploração e opressão, entre a matriz ibérica e os povos indígenas e, depois, africanos), nossa formação era sincrética (ia se constituindo pela relação com outras matrizes civilizatórias), nosso destino não podia ser pensado isolado do mundo em que vivemos. Neste sentido profundo, a revolução democrática é a expressão soberana desta dimensão internacionalista da formação e do vir a ser do povo brasileiro. É a resposta generosa do povo brasileiro às dimensões de exploração e opressão colonial, de escravismo e patriarcalismo, de autocracia e desigualdades que o constituíram como objeto na origem e que se projetam como superação em novos princípios de civilização nas dimensões programáticas de sua emancipação.

93. A primeira dimensão programática é o questionamento profundo e estrutural da ordem capitalista mundial em sua dimensão de escandalosa desigualdade econômica. Ao enfrentar pela raiz a fome e a miséria, a exclusão social e o desemprego, a revolução democrática brasileira legitimamente reivindica da ordem internacional políticas profundas de superação das condições em que vivem centenas de milhões que carecem ainda dos bens básicos a uma vida digna.

94. A segunda dimensão programática fundamental é o questionamento profundo e estrutural da concentração de poder político e potência bélica das instituições internacionais que se construíram após a Segunda Guerra Mundial, sob a vigência da hegemonia norte-americana. “Um Brasil justo e democrático é a ONU que pode dar certo”, anunciou utopicamente o nosso grande pensador Darcy Ribeiro. Em sua luta histórica pela soberania, o Brasil não formou historicamente uma cultura imperialista e colonizadora. A força de sua diplomacia na ordem internacional terá, sob o impacto de uma revolução democrática, um caráter de democratização e de formação de uma cultura de paz no mundo, de multiculturalismo e de respeito às diversas tradições dos povos.

95. A terceira dimensão programática internacional da revolução democrática é a sua dimensão ecológica, é a construção de uma matriz de civilização que se abre a um novo encontro com a natureza e não com a sua predação. Formando uma matriz energética renovável, contando com uma bio-diversidade das mais ricas do mundo, construindo em pleno processo de desenvolvimento uma nova consciência ecológica, a revolução democrática projetará o Brasil no centro das responsabilidades para construir a resposta global ao desafio do aquecimento global.

96. A quarta dimensão programática é o processo de unificação política da América Latina a partir dos valores afins ao socialismo democrático. Se a unificação européia se fez a partir dos valores do liberalismo econômico, trazendo para o seu interior contradições que são hoje cada vez mais visíveis, a unificação política da América Latina pode se dar, apoiando-se nos fortes processos democráticos de emancipação em curso no continente, em bases políticas mais republicanas e democráticas. Este espaço político de unificação será fundamental para a renovação democrática do socialismo cubano, historicamente isolado pelo cerco norte-americano.

97. Um deslocamento e uma nova centralidade das relações do Brasil com a África projetará uma quinta dimensão programática da revolução democrática, na medida em que ela dignificará cada vez mais as raízes afro-brasileiras da maioria de seu povo e sua civilização. Os povos africanos continuam sendo os povos mais oprimidos e explorados do mundo. E, por esta força de raiz, a revolução democrática brasileira pode se projetar como uma parceira decisiva do processo de emancipação dos povos da África.

98. Mesmo que muito aquém dos desafios postos pela crise da globalização neoliberal e especialmente pelas crises que se desenvolvem no interior dos países centrais, os movimentos socialistas democráticos nestes países são parte inseparável da construção de alternativas de superação do neoliberalismo e para a abertura de uma nova época histórica em que o socialismo democrático possa se converter em uma hipótese viável para a humanidade.

99. Os Fóruns Sociais Mundiais tiveram sua origem no chamado “espírito de Porto Alegre”.Por ser um país da semi-periferia, por ter um partido do socialismo democrático das dimensões e influência do PT, por ter uma gama muito dinâmica e expressiva de movimentos sociais, que vão da luta agrária ao movimento gay, o Brasil vem tendo um papel decisivo na construção e na expansão das culturas dos fóruns sociais mundiais. Tendo se firmado como uma voz alternativa a Davos, como reservatório de renovação das agendas internacionalistas, tendo vivido a experiência dos maiores movimentos coordenados e simultâneos contra a guerra já vivenciados na história mundial, o Fórum Social Mundial encontra-se diante do desafio histórico de repor sua agenda frente à onda conservadora e belicista, articulada após os acontecimentos de 11 de setembro. A revolução democrática no Brasil, em sua projeção internacional, pode se alimentar e ajudar a construir as condições históricas da resposta a este desafio histórico.

100. A integração destas diversas dimensões internacionalistas depende da retomada de um trabalho de construção de uma nova Internacional. Se esse trabalho, como mostram as experiências das Internacionais, não é resultado nem do voluntarismo, nem da autoproclamação doutrinária e nem de Estados ou partidos “guias”; se ele depende de experiências históricas concretas de afirmação de alternativas ao capitalismo; e, se ele também deve nutrir-se da crise histórica do modo de desenvolvimento capitalista; ele não se faz sem um projeto consciente de uma ampla vanguarda internacionalista nascida nas lutas antiglobalização neoliberal. A experiência de construção do PT –pelo seu caráter socialista plural e democrático – é uma contribuição para esse processo.

IX. PT: partido socialista de massas e revolução democrática

101. O PT deve se preparar para assumir um papel de vanguarda na construção de uma nova hegemonia no país em conjunto com as forças de esquerda, com setores democráticos e com os movimentos sociais que, no 1º turno e mesmo no 2º turno, se posicionaram pela eleição de Dilma.

102. Nosso partido realizou o 4º Congresso e nele consolidou uma plataforma abrangente de reformas democráticas na sociedade brasileira. O PT pode desenvolver uma plataforma de complementação, aprofundamento e superação a partir do programa econômico e social em curso. Em outras palavras, buscar imprimir a este curso o programa da revolução democrática em uma perspectiva socialista.

103. O PT precisa posicionar-se de maneira mais ofensiva em três dimensões: em relação à sociedade, ao governo e à própria construção partidária.

a) O espaço para politização e organização na sociedade em um quadro de luta por uma nova hegemonia deve ser maior e mais favorável à democracia. Nossa visão de democracia é inseparável do caráter participativo e da conquista da força política da classe trabalhadora e do bloco histórico que vai se formando em torno à experiência de governar o Brasil iniciada em 2003;

b) O programa econômico e social do nosso governo é um avanço fundamental e tem conseguido elevar as condições de vida de amplas massas proletárias. Sem isso, não há bases sociais para a democracia. Mas é insuficiente para um programa de emancipação social e política, ou seja, para abrir uma dinâmica de revolução democrática articulada com a luta pelo socialismo. Além disso, o aprofundamento exige mudanças de qualidade nas relações de trabalho, de propriedade, gênero e na mais ampla pela igualdade racial e geracional;

c) Em relação ao próprio PT, devemos lutar para garantir a continuidade da reconstrução de sua identidade socialista. Avançar em sua construção como uma força socialista de massas, capaz de incorporar partidariamente uma ampla camada da sua base social. E recompor sua capacidade de intervir politicamente na disputa de hegemonia na sociedade e na construção dos rumos do governo.

104. No processo eleitoral o PT chegou a alcançar nas pesquisas 30% de preferência partidária (embora no voto proporcional tenha alcançado 16%), elegeu 5 governadores, 11 novos/as senadores/as e 88 deputados/as. Na campanha, em particular, no segundo turno, percebemos a reaproximação de gerações antigas e uma nova leva de militantes que combateu a direita e defendeu a conquista do nosso 3ºgoverno.

105. Outros partidos de esquerda que lutaram pela eleição de Dilma também cresceram, acompanhando esse movimento ascendente. A CUT e os movimentos sociais tiveram papel muito decisivo.

106. Esse quadro coloca novo potencial para a construção partidária petista e para a formação de amplo campo de esquerda e de setores democráticos com vocação hegemônica na sociedade.

107. Um elemento muito importante no PT é a reforma organizativa-estatutária prevista como continuidade do 4º Congresso e que deveremos assumir como uma das tarefas centrais e em grande sintonia com a reforma política. Em seguida e como complemento deste anteprojeto, está a proposta que devemos apresentar ao debate partidário.

108. As eleições de 2012 devem merecer atento trabalho de preparação para ampliar as conquistas no plano municipal. Elas devem se constituir em um momento de aprofundamento das conquistas populares nesse âmbito.

109. O marco unitário conquistado pelo PT no 4º Congresso deve ser mantido como uma das condições importantes de avanço. A disputa de posições no partido e a construção de sua unidade são inseparáveis na construção partidária petista.

110. Sobre a reforma estatutária:

Projeto de reforma estatutária

O PT é uma associação voluntária de cidadãos e cidadãs que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático”. (Art.1º do estatuto do Partido dos Trabalhadores)

Por isso fomos capazes de promover, em plena crise das ideologias, reformas sociais tão importantes em nossos países. As esquerdas no Uruguai e no Brasil souberam mudar, mas sem mudar de lado”.Discurso de Lula no 40º aniversário da Frente Ampla Uruguaia, em Montevideo, 25-03-2011.

O objetivo programático de “construir o socialismo democrático” é que dá sentido às regras orgânicas da ferramenta partidária. Precisamos construir e adequar o Partido a sua estratégia socialista.

Por isso em nossa Declaração de Princípios dizíamos que nascíamos das lutas, de baixo para cima, onde as bases efetivamente decidiam.“Um partido sem Patrões e sem donos”. Onde o núcleo e a militância participativa seriam as pedras basilares da construção partidária.

Nascemos profundamente democráticos, tolerantes, plurais. Desde as primeiras direções partidárias, garantimos o direito de tendência para que pudéssemos incorporar a rica heterogeneidade das vertentes sociais que nos deram origem. Após os 10 primeiros anos, incorporamos a plena proporcionalidade das nossas correntes internas nas direções executivas e consagramos a representação mínima de 30% de mulheres em nossas instâncias diretivas.

Estes princípios nos singularizam nas experiências mundiais de construção de partidos de esquerda e necessitam ser reafirmados e atualizados no momento em que abrimos o debate visando uma revisão estatutária.

Nossa organização partidária deve servir ao objetivo de construir o PT como uma força capaz de lutar pela hegemonia de um programa que caminha em direção ao socialismo democrático. Seu crescimento, sua vida orgânica, sua comunicação e sua formação devem ser instrumentos coerentes e integrados a esse objetivo. Isso inclui a capacidade organizativa de vencer disputas eleitorais e a de governar e legislar de acordo com o programa partidário; a capacidade organizativa de realizar campanhas políticas entre os processos eleitorais; a capacidade de organizar e formar politicamente um enorme conjunto de pessoas em um partido socialista de massas.

Pensando, então, nos seguintes objetivos:

Crescimento: a partir da nossa terceira vitória presidencial, aumentar a proporção dos filiados em relação à nossa base eleitoral; ampliar a presença do partido na sociedade brasileira, especialmente na juventude e tendo em conta o fortalecimento social da classe trabalhadora e dos setores populares beneficiados pelas políticas públicas;

Tornar orgânico o crescimento: superar o viés marcadamente eleitoral da nossa organização partidária de modo a que a filiação seja mais que um “alistamento eleitoral-partidário” e passe a ser um caminho para a participação política dentro do partido (que deve ser muito mais do que votar nos PEDs) e na sociedade(que deve ir muito além das campanhas eleitorais, mesmo reconhecendo que estas são decisivas);

Vida orgânica: para que o processo de crescimento orgânico tenha continuidade, é fundamental que nossas instâncias de base funcionem e se abram a incorporar a participação de novos (e antigos) filiados. Aqui também a concepção eleitoral de organização deve ser superada. O partido deve retomar o incentivo à formação de núcleos e buscar uma nova experiência que permita instituí-los como parte da organização de base;

Formação: Manter a identidade socialista e democrática é fundamental em um processo de crescimento e de ampliação do papel do partido. Nossa Escola deve aumentar sua ambição de formação alcançando regularmente todos os filiados. A formação deve ser integrada no funcionamento e no trabalho de todas as instâncias;

Comunicação: é fundamental na relação direção-base e na relação do partido-sociedade uma ampla e ousada política de comunicação. Para um partido que precisa ocupar novos espaços, disputar posições na sociedade e organizar politicamente seus filiados/as uma comunicação ativa é decisiva;

Democracia: pluralismo e participação política na base são conquistas históricas do PT que mais que nunca devem guiar-nos como princípios de organização política;

Propomos:

1. Novo processo de filiação

Temos que combinar a filiação partidária com a formação política e o fortalecimento da democracia interna do Partido. Para isto, temos que impedir as filiações sem critérios partidários(combater o vício de filiações partidárias em massa),sem o cuidado com a formação política, que buscam apenas garantir posições de poder na máquina interna do partido. A disputa pelo poder é inerente à política e não se pode fugir a ela. Entretanto, o que distingue um partido socialista dos demais é que nele deve prevalecer o sentido do projeto coletivo e não os projetos individuais ou de grupos.

Nacionalmente serão definidas campanhas anuais de filiação. Especial atenção deve ser dada à juventude.

A filiação ao PT deve significar compromisso com o programa e com a construção do partido. Devemos instituir dois momentos na filiação: o pedido de filiação e a confirmação de filiação. Entre esses dois momentos ocorrerá, obrigatoriamente, um processo de integração que será desenvolvido pelas instâncias locais e sob uma mesma metodologia nacionalmente definida, da qual constará o programa e a organização partidária, os direitos e deveres de todo filiado/a, e para a qual deverá contribuir a Escola Nacional de Formação. Uma vez cumprida essa etapa será confirmada a filiação pela instância local.

Por isso, propomos alterações nos artigos 4º e 6º do Estatuto Partidário, prevendo que todos os pedidos de filiação deverão ser confirmados com a participação dos (as) filiandos (as) em três plenárias de formação e confirmação de filiação. Nestas plenárias serão apresentados a todos (as) os (as) filiandos (as) o Manifesto, Programa e Estatuto do PT. Todos os filiandos, que não tiverem impugnações, deverão confirmar sua filiação participando das plenárias de formação, que serão realizadas regularmente e convocadas pela Comissão Executiva Municipal.

2. Reativação dos núcleos e o funcionamento das instâncias de base

Para que a participação de todos os filiados e filiadas aumente, nossos DMs e Núcleos devem ter funcionamento regular e ativo, realizando atividades ou plenárias no mínimo bimestrais aos novos filiados e aos filiados em geral. O DN e os DEs apoiarão esse processo de dinamização das instâncias de base, impulsionando atividades gerais, incluindo aquelas sob responsabilidade da Escola Nacional de Formação.

a) Retomar e fortalecer o núcleo de base:

Apesar da unanimidade sobre os núcleos, eles foram sendo reduzidos no seu caráter de instância partidária.

Na primeira década de vida do Partido, essa polêmica foi dura e acirrada. A idéia de um Partido organizado a partir de núcleos de base não prevaleceu. É hora de mudar essa situação: os núcleos são fundamentais, tanto para a ação do partido como para a sua democracia interna. Não há democracia plena sem participação ativa da base.

No art. 58, onde se trata da nucleação devemos recuperar essa instância como organizadora para levar a cabo todas as tarefas partidárias nas mais variadas frentes de massa e a possibilidade dos filiados organizados em núcleos de atuação terem representantes nos encontros, nas instâncias de direção e de tomar iniciativa no debate interno.

b) Retomar o papel de disputa política e de organização territorial dos DMs:

É preciso superar a condição de organizador no partido e de orientação política na disputa local que cabe ao DM ou DZ. O objetivo de chegar a todos os municípios brasileiros é fundamental a um partido socialista de massas. É um meio fundamental de conhecer e transformar a realidade e de conquistar para a militância política uma ampla parte do povo brasileiro. De outro lado, ela só se verifica se o DM tiver espaço de participação plural, regularidade e visibilidade com sede, comunicação e formação. Vale dizer, se não for um espaço cartorial ou de mera extensão de mandato parlamentar, ou pior ainda, sob controle de forças externas ao PT.

c) É condição para a participação das instâncias de base –Núcleos e DMs – nos processos decisórios internos o funcionamento regular de sua atividade político-organizativae a situação em dia das suas obrigações financeiras face ao partido.

3. Sustentação financeira do Partido

Uma das piores conseqüências da Reforma estatutária de 2001 foram as decisões sobre finanças. Aí reside um dos exemplos mais claros sobre a tendência do Partido ao eleitoralismo e ao predomínio dos portadores de mandato e ao poder econômico dentro do partido.

A contribuição anual mínima desestimula e descompromete o filiado com o papel e a importância da sustentação democrática da organização partidária. A contribuição regular, mensal, recai somente nos eleitos e cargos de confiança no Legislativo e Executivo.

O Partido depende e vive, cada vez mais, das finanças eleitorais, dos endividamentos e de campanhas milionárias que só se sustentam com contribuições de empresas, com todas as conseqüências que daí advém.

O Partido precisa retomar e fazer valer o princípio de que o direito do votodepende do compromisso da sustentação financeiracom a contribuição mensal, regular e permanente dos filiados.

4. Ação afirmativa para as mulheres na composição e funcionamento do PT

A conquista da eleição da primeira mulher presidenta do Brasil e a nossa proposta de reforma política com paridade de gênero representam passos fundamentais na conquista da igualdade no Brasil. Não há socialismo sem feminismo.

Se o partido apresenta à sociedade brasileira uma proposta avançada não pode reduzi-la quanto se trata da sua própria organização. Assim, devemos incluir no novo Estatuto a composição paritária de gênero para as direções partidárias.

Junto com ela, o partido deve desenvolver um forte estímulo à participação das mulheres na política e na construção partidária, processos que incluem a aplicação rigorosa da luta pela igualdade de gênero nas iniciativas parlamentares, no reforços aos movimentos sociais feministas, na conduta política dos filiados, dirigentes e parlamentares, nas atividades de formação, comunicação e de filiação, bem como o estimulo à auto-organização das mulheres no PT.

5. PED democrático e participativo

Seguindo o mesmo raciocínio de que as propostas mais avançadas que o partido apresenta à sociedade devem ser praticadas internamente, nosso processo eleitoral deve ser um exemplo de democracia ao país e a nós mesmos.

Nesse sentido defendemos:

-Listas pré-ordenadas com participação paritária de gênero. O(a) encabeçador(a) da chapa mais votada é o(a) presidente(a) da instância. As proporcionalidades de delegados aos encontros continuam a ser definidas pela votação no PED recebida pela chapa em cada nível de eleição;

-Financiamento partidário exclusivo, com a criação de um fundo do partido para financiar o PED e as campanhas de cada chapa;

-As listas de filiados (as) aptos (as) serão elaboradas e fechadas com antecedência de 3 meses da data do processo de eleição direta, a partir do Cadastro Nacional de Filiados (as) e considerando somente os (as) filiados (as) que estiverem em dia com a contribuição financeira mensal ao Partido, inclusive débitos passados;

-Proibição com cancelamento do registro da chapa que promover crime eleitoral tipificado na legislação brasileira e no nosso Estatuto (em especial o uso do poder econômico, seja no transporte de filiados, na coação à soberania do voto, na substituição do pagamento da contribuição financeira do filiado, etc);

-Criar um órgão eleitoral específico para a condução do processo eleitoral

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