Diretrizes de um programa para a revolução democrática
I. A construção democrática de um programa da revolução brasileira
1. A eleição da companheira Dilma Roussef corresponde a um novo período político marcado pela possibilidade não só de plena superação do neoliberalismo mas, sobretudo, pela possibilidade de construção de uma nova hegemonia no Brasil sob a direção dos socialistas democráticos. O programa para a revolução democrática é exatamente a expressão da construção desta nova hegemonia. Este período histórico que se coloca como de possibilidade de uma revolução democrática no Brasil relaciona-se com o contexto internacional de crise da dominação neoliberal, refletida no desgaste de sua legitimidade, na crescente perda de capacidade de direção do imperialismo e na própria falta de coesão política em torno a um programa que responda às situações de crise mundial. É evidente que esta crise internacional do neoliberalismo afeta, de modo profundo, os partidos que representam este programa no Brasil.
2. A combinação entre a crise internacional da globalização neoliberal comvitórias estratégicas no Brasil sobre a ordem neoliberal, abre em nosso país um novo período político marcado não mais pela anterior disputa de projetos mas pela supremacia do projeto democrático-popular e pelos desafios do seu aprofundamento.
3. A crise de 2008 a partir dos EUA, depois de uma sequência de crises na “periferia próxima”, colocou em questão a continuidade do programa neoliberal. Em primeiro lugar pela maciça intervenção estatal para salvar grandes bancos da falência nos EUA e Europa, jogando por terra o princípio do mercado como regulador da economia e, sobretudo, das finanças. Depois, pela redução do poder dos EUA –o grande fundamento da receita neoliberal – na economia global e, com isso, a ascensão de novos foros, como o G20 e os BRICS, abrindo uma enorme fissura na anterior hegemonia do “´pensamento único”e nas estruturas internacionais de poder;
4. No Brasil podemos falar de quatro vitórias estratégicas da esquerda contra o neoliberalismo e de uma profunda e estrutural derrota dos partidos neoliberais. A primeira eleição de Lula interrompeu o ciclo neoliberal iniciado ao final do governo Sarney, passando por Collor e pelos dois mandatos de FHC; o segundo mandato foi adiante e inaugurou uma nova via de desenvolvimento econômico com distribuição de renda; a eleição de Dilma, permite aprofundar o projeto de construção de uma alternativa nacional e internacional de desenvolvimento fora do controle do imperialismo. A essas três vitórias devemos acrescentar uma quarta igualmente estratégica, que foi o modo como se enfrentou a crise de 2008. Se até aquele momento a superação do neoliberalismo caminhava em passos moderados, o enfrentamento da crise deu um salto em um conjunto de fatores anti-neoliberais, sendo o mais importante deles, o crescimento quantitativo e qualitativo do sistema financeiro público com impacto imediato na redução da autonomia do BC e na importância da banca privada. Pode-se acrescentar ainda o aumento do salário-mínimo em plena crise (em geral, ocorre o contrário) e a sustentação dos programas sociais, como o Bolsa Família.
5. A profunda derrota ideológica e política do PSDB – o partido do neoliberalismo no Brasil – expresso na disputa eleitoral, na renúncia ao programa e na dificuldade de juntar forças políticas e sociais (burguesas) em torno de sua candidatura e, posteriormente a ela, na fragmentação dos partidos neoliberais, deixa o programa neoliberal sem um centro dirigente estável e sem força política no Brasil.
6. A situação anterior, até o segundo mandato de Lula, podia ser caracterizada como de disputa de projetos, o antagonismo entre o neoliberalismo e o nosso projeto. Esse antagonismo se colocava na disputa de rumos da sociedade e também dentro do governo, sobretudo com a oposição entre governo e Banco Central. Na situação atual, esse antagonismo foi superado pela força do nosso projeto e pela crise do projeto“deles”. A questão passou a ser a construção e desenvolvimento do nosso projeto, a construção política de dinâmicas democráticas e de perspectiva socialista para as contradições que devem ir se formando nesse novo curso no plano nacional e na sua relação internacional.
7. Partindo da avaliação de que abre-se um novo período no Brasil marcado pelo esforço de construção da hegemonia dos socialistas democráticos, este anteprojeto para debate na X Conferência Nacional da Democracia Socialista propõe uma atualização do programa do PT. Esta atualização propõe consolidar, aprofundar e expressar um sentido histórico à formação de um novo bloco político e social já em processo de formação no Brasil.
8. Um programa da revolução democrática se diferencia claramente da lógica de um programa socialista da revolução, na medida em que sua centralidade não está apoiada na superação imediata do sistema capitalista. Mas ao ser dirigida por um partido do socialismo democrático, ao se apoiar no próprio processo de emancipação dos trabalhadores e dos setores oprimidos, como os negros e as mulheres, ao ser crítico e alternativo aos valores liberais e aos poderes assimétricos dos grandes capitalistas na democracia brasileira, ao estabelecer uma profunda solidariedade com as lutas dos povos oprimidos de todo o mundo, esta revolução democrática estabelece uma relação histórica permanente com a sociedade socialista democrática que sonhamos e lutamos por construir. Esta relação, pela própria natureza democrática da revolução, não pode ser definida a priori e dependerá da própria soberania do povo brasileiro e das circunstâncias de sua realização.
9. O conceito de revolução democrática procura encaminhar uma solução histórica ao velho enigma sobre o caráter da revolução que polarizou as diferentes tradições da esquerda brasileira. Isto é, não se trata de uma revolução com um programa socialista imediato nem de uma revolução democrático burguesa, mas de uma revolução democrática dirigida pelos socialistas e apoiada fundamentalmente nas forças de emancipação dos trabalhadores e do povo brasileiro. Este enigma só pode ser resolvido a partir de uma cultura e prática do socialismo democrático que ainda não se formou em nosso país.
10. Ao propor as diretrizes de um programa da revolução democrática para o PT, estamos conscientes de sua transcendental novidade histórica. Desde 1988, o PT tem formulado programas para governar o Brasil a partir da possibilidade inédita de uma vitória nas eleições presidenciais. Entre sua identidade socialista democrática, sintetizada no documento “Socialismo petista” e a experiência de governar o Brasil, em correlações de forças muito adversas e em um Estado que guarda ainda características fortemente anti-republicanas, criaram-se inevitavelmente defasagens, desencontros, conflitos. Mas o PT soube manter e aprofundar, no fundamental, os seus compromissos históricos com a classe trabalhadora. O programa da revolução democrática propõe-se, então, a sintetizar a identidade socialista democrática do PT com o seu programa de governo.
11. Um programa da revolução democrática é, no sentido rigoroso, uma mudança de qualidade: o programa da construção democrática de um novo Estado no Brasil. Este programa visa estabelecer a legitimidade democrática de um discurso da revolução na democracia brasileira. O PT precisa estabelecer para si próprio uma consciência histórica e crítica sobre o Estado brasileiro que hoje governa. É a sua própria capacidade hegemônica que depende desta consciência histórica já que todo Estado revela os princípios de civilização sobre os quais fundamenta os direitos e os deveres.
12. São, pelo menos, cinco as grandes novidades programáticas que dele decorrem.
Em primeiro lugar, pela primeira vez na tradição socialista brasileira, procura-se sintetizar em uma mesma lógica programática as dimensões anti-imperialistas, classistas, populares, anti-patriarcais e anti-racistas em um quadro mutuamente configurado pela revolução democrática. O feminismo e o anti-racismo deixam de ser tratados à parte ou à margem e são amarrados à lógica central do programa.
Em segundo lugar, procura-se estabelecer a relação entre o princípio da soberania popular e de auto-governo, de um lado, e planejamento democrático e setor público, de outro, construindo o que se poderia chamar de economia política da democracia participativa e as bases plenamente democráticas de um projeto de desenvolvimento econômico. Como alternativa às noções de democracia parlamentar e corporativa e de economia mista que marcaram as tradições históricas da social-democracia, esta nova dialética entre transformação política e econômica procura soldar esta construção macro-histórica com os valores do socialismo democrático.
Em terceiro lugar, ao centralizar o desafio macro-histórico de construção de um Estado do Bem-Estar Social a partir dos valores do socialismo democrático, estas diretrizes da revolução democrática propõem uma nova gramática de relação entre a classe trabalhadora e suas instituições para além do Estado corporativo getulista que formou historicamente as primeiras instituições de direitos e de políticas públicas. O sentido universal cidadão destes direitos questiona a convivência do mercantil e do corporativo que ainda estrutura, em grande medida, os direitos e as instituições das políticas sociais no Brasil, da previdência à saúde, da educação ao direito à segurança pública. O caráter distributivo deste Estado do Bem-Estar coloca centralmente em questão a dimensão regressiva da estrutura tributária brasileira, bem como a naturalização de privilégios. O sentido feminista e anti-racista desta construção procura levar ao centro do Estado brasileiro o questionamento dos princípios patriarcais e racistas, que ainda regem a concepção dos direitos e deveres do cidadão.
Em quarto lugar, estas diretrizes, pela primeira vez em uma orientação a partir dos valores do socialismo democrático, trazem para o primeiro plano os desafios relacionados à comunicação pública e à cultura, entendida no sentido amplo, não instrumental, como valores de civilização. A formação das condições estruturais de uma opinião pública democrática no Brasil é, ao mesmo tempo, condição e resultado da revolução democrática.
Por fim, procura indicar analiticamente, mesmo que de modo resumido, as profundas relações entre a revolução democrática no Brasil e a crise liberal de direção e de dominação do sistema mundial nestes princípios do século XXI. Assim, procura-se ganhar consciência maior sobre o caráter internacional da revolução democrática.
13. Este novo Estado democrático deverá incorporar todas as conquistas históricas do povo brasileiro. A construção da república brasileira, baseada no aprofundamento da democracia e do pluralismo, da justiça social, de gênero e de raça, da soberania nacional e dos direitos dos trabalhadores, exige um novo Estado.
14. Um programa da revolução democrática dialoga e propõe a construir um novo ascenso dos movimentos sociais, um novo protagonismo da cidadania ativa, uma nova consciência cidadã afim aos valores do socialismo democrático no Brasil. Este novo e mais alto ascenso reclama um novoethossocialista democrático do PT e dos partidos da esquerda brasileira , dos próprios movimentos sociais que estruturam este bloco histórico. É este novo bloco histórico em formação que pode sustentar um processo de revolução democrática no Brasil.
15. Ao nomear este documento de Diretrizes, procura-se ser coerente a esta lógica democrática. Um programa da revolução democrática será fruto do próprio processo de emancipação do povo brasileiro. Mas o PT já é hoje parte da própria cultura política do povo brasileiro, de seu passado de resistências e de suas esperanças de futuro.
II. Elementos da situação internacional
O êxito ou o fracasso das forças populares contra o imperialismo e a direita, visando ao fortalecimento e desenvolvimento dos elementos populares de governos progressistas e ao avanço na transição para um modelo pós-neoliberal, definirá não apenas o papel da América Latina no século XXI (se independente e unida ou se quintal dos EUA), como também a própria face da esquerda latinoamericana – se uma esquerda com poder de convocatória social e capacidade de constituir alternativas anticapitalistas de massas ou se pequenos grupos de propaganda socialista.
(IX Conferência Nacional da Democracia Socialista, junho de 2009)
16. O neoliberalismo, como expressão política de um período de globalização financeira centralizado pelos EUA, vive hoje um impasse sem perspectivas de solução no horizonte. Há, de um lado, uma dimensão econômica que pode ser compreendida como resultante de uma crônica insuficiência da demanda agregada mundial, ou seja, por uma incapacidade para realizar o lucro potencial, exponenciado nos anos neoliberais. A adoção de políticas anti-keynesianas na zona do euro e de um tímido processo de relançamento dos gastos públicos de investimento nos EUA, em um quadro de estagnação ou retrocesso dos salários e do emprego, conforma um quadro de estagnação e baixo crescimento no capitalismo central. Há, por outro lado, uma evidente dimensão política da crise, isto é, a incapacidade crescente dos EUA de liderar uma coordenação sistêmica mundial, com reflexos na capacidade do dólar ser a moeda de referência, em um contexto em que cresce o poder geopolítico dos chamados Brics, em particular a China, sem que se constitua no horizonte histórico uma alternativa de coordenação sistêmica internacional. Enfim, é visível uma crise de civilização: o capitalismo e seus valores liberais não são capazes de apontar soluções viáveis para os mais graves impasses gerados pelo mundialização financeirizada, ou sejam, as crises econômicas sequenciais e, agora no centro do capitalismo, a intervenção militar e a guerra como política permanente do imperialismo, o aquecimento global e a desigualdade social que cresce também nos países centrais.
17. As profundas contradições do governo Obama em relação a eventuais expectativas progressistas, revelando o poder sistêmico das finanças e dos interesses imperialistas no maior Estado do mundo, a crise de perspectivas da social-democracia européia e uma situação muito defensiva dos movimentos sociais e forças de esquerda, parecem criar um período histórico novo no qual as novas dinâmicas políticas e sociais emancipatórias e as novas agendas progressistas têm sua centralidade imediata no Sul. Continua, no entanto, fundamental a relação entre esta e a evolução da luta de classes e das alternativas de esquerda nos países centrais. Uma alternativa ao capitalismo, ainda que tenha como pressuposto uma enraizada base nacional, é impensável sem uma forte dinâmica nos países centrais de experiências políticas contrapostas ao imperialismo e sem a retomada do internacionalismo socialista.
18. Inserindo-se neste quadro de perda de dinamismo das economias capitalistas centrais e de reposicionamento das grandes economias semi-periféricas, em um mundo geopoliticamente marcado por um crescente multilateralismo e em meio a uma crise histórica da civilização neoliberal, a revolução democrática do Brasil necessariamente se relacionará programaticamente com estas três dimensões. Mantido o atual ciclo de crescimento da economia, o Brasil pode se situar em breve entre as maiores potências econômicas do mundo. Em meio à crise da hegemonia norte-americana e de formação de novos pólos geopolíticos, pode vir a crescer qualitativamente a sua capacidade de influência na formação de novas agendas e na formação de novos centros mais democráticos de decisão internacionais. Enfim, uma revolução democrática que contribua ativamente para derrotar o imperialismo, que promova justiça social no Brasil, África e no plano internacional; que enfrente as opressões patriarcais e racistas; que defenda a economia eco-sustentável em meio a um inédito e histórico protagonismo democrático pode subsidiar de forma decisiva a busca de novos paradigmas civilizatórios para a humanidade.
19. Em nossa IX Conferência Nacional, já afirmávamos que os processos em curso na América do Sul tiveram sua legitimidade sustentada graças ao crescimento econômico e à recuperação parcial de soberania nacional. “Agora, eles dependem mais da construção de legitimidade política e da participação popular ativa para sustentar, aprofundar e enfrentar, desde o ponto de vista dos interesses do povo trabalhador, os novos conflitos que estão a caminho”.
20. A presença do Brasil no mundo e uma retomada do internacionalismo em um cenário em que se aguçam as contradições do imperialismo são mais importantes ainda. É claro, no entanto, que esse processo ocorre em meio a uma reorganização desigual do movimento socialista e há muitos sinais de recrudescimento de uma direita retrógrada e com muitos traços de barbárie.
III. A dinâmica nacional
21. Nesta concepção de revolução democrática, o programa deixa de ser compreendido como um processo de auto-esclarecimento da vanguarda socialista que precede o próprio processo de emancipação dos trabalhadores e do povo mas pretende expressar o processo mesmo de auto-emancipação do povo brasileiro frente às históricas cadeias de exploração e opressão. Ele interroga a consciência classista dos trabalhadores e popular brasileira, das mulheres e dos negros, a partir de uma reflexão crítica sobre os avanços conseguidos mas também dos impasses e dos limites estruturais colocados ainda à transformação social. O programa assim é democraticamente concebido na sua formação pública, através da consciência crescente da força da soberania popular e do auto-governo, das experiências de democratização e republicanização do estado, das conquistas parciais obtidas contra a exploração capitalista, contra as opressões patriarcais e raciais.
22. Ao receber por três vezes o apoio para governar o Brasil, o PT, partido líder das coalizões vitoriosas nestas três disputas contra as forças neoliberais, tem a consciência que solidificou, soldou e atualizou a sua condição histórica de principal expressão, na frente plural de representação, das grandes tradições de luta do povo brasileiro, de Zumbi dos Palmares aos movimentos negros da democracia brasileira, dos movimentos anarquistas do início do século XX às grandes greves do ABC, das primeiras reivindicações pelo sufrágio feminino às lutas atuais contra a violência às mulheres, das lutas camponesas e dos trabalhadores sem terra, dos sentimentos nacionais de independência e soberania nacional à agenda anti-imperialista dos dias de hoje, do cristianismo da libertação aos movimentos ecológicos, dos sonhos de emancipação e da imaginação das grandes criações artísticas e culturais do povo brasileiro.
23. É exatamente esta consciência histórica de encarnar tradições e utopias de transformação do Brasil que aguça o sentido da nossa responsabilidade sobre os possíveis futuros do Brasil. Que tipo de civilização pretendemos, como parte do povo brasileiro em seu processo de emancipação, construir? Queremos repetir aqui neste país os padrões de um capitalismo desenvolvido, estruturalmente mercantil e desigual, ecologicamente predatório, engajado em novas práticas colonialistas e bélicas, moderno mas patriarcal na atualização da opressão e discriminação das mulheres, dividido cultural e socialmente pelos preconceitos de raça, e ainda alienando sua juventude? Desejamos apenas aparar os extremos de uma civilização que nasceu genocida dos índios, escravocrata dos negros, autocrática e elitista na sua cultura política, profundamente patriarcal, hiper concentradora da renda e da terra e predatória dos direitos do trabalho? Como socialistas democráticos, apoiando-nos nas tradições libertárias e emancipatórias que estiveram presente desde o início da história da colonização, queremos uma alternativa de civilização ao capitalismo, a ser construída com o povo brasileiro, democraticamente, que esteja à altura da sua dignidade e esperança, que promova a liberdade como autonomia e auto-governo, que promova os direitos à igualdade na diferença, que saiba construir novos modos de organizar a vida social para além da mercantilização e da autocracia do capital.
24. Um programa de revolução democrática visa, assim, construir um novo Estado no Brasil assentado em novos princípios de civilização. No desafio de governar o Brasil durante os governos Lula, aprendemos, em duras provas, a ter consciência da complexidade de ser governo em um Estado em regime democrático mas ainda profundamente marcado pelas raízes autocráticas, patronais, patriarcais e racistas de sua formação. Para a construção da hegemonia é fundamental, no entanto, que esta consciência se eleve à dimensão estatal, que se coloque o horizonte da construção democrática de um novo Estado que, a partir de novos princípios de civilização, organize novas formas de construir e gerir o poder, novas formas de organizar a produção e a distribuição, novos contratos de direitos e deveres, novas instituições e leis que radicalizem a democracia e o pluralismo, a liberdade e a igualdade. Nesta medida, o programa da revolução democrática não deve ser compreendido como um programa de governo mas como de todo um movimento político por todo um período. Ele deve referenciar tanto a ação de governo como a dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda e suas políticas de aliança, criando um grande arco de convergência histórica para uma lógica coerente de transformações. A presença da esquerda no governo central do país dinamiza e potencializa as suas possibilidades históricas mas o programa da revolução democrática, à medida em que se enraizar e ser expressão dos próprios avanços da consciência do povo brasileiro, vai além de ciclo de governos. Pode, neste sentido, sofrer inflexões históricas a partir de derrotas eleitorais decisivas mas retornar, inclusive com mais força, em conjunturas de ascenso seguintes.
25. Estado para uma cultura do socialismo democrático é diferente do que se entende por Estado na cultura liberal ou na cultura do socialismo autocrático. Liberais entendem o Estado, que deve ser mínimo, a partir da sociedade de mercado e do capital, e de sua auto-regulação. O Estado é visto, assim, como oposto à sociedade civil e o reino das relações familiares é subtraído por uma lógica patriarcal, de dominação das mulheres, ao direito público. Culturas autocráticas do socialismo falharam em conjugar luta contra o capitalismo à luta pela democracia ao atribuir ao Estado, ao poder centralizado e à economia de plano burocrático, a legitimidade de ser o centro e instrumento da emancipação. A tradição do socialismo democrático trabalha com o conceito de Estado integral, no qual há uma unidade entre os princípios que organizam as instituições estatais, as relações das classes na sociedade civil e as relações familiares e de gênero. Estes princípios, sustentados socialmente e ao mesmo tempo organizadores da sociedade, são chamados ético-políticos: por exemplo, o liberalismo que organiza todas as relações políticas, econômicas e sociais, de gênero em uma sociedade capitalista; o racismo que organiza toda a vida social em um Estado escravocrata; o patriarcalismo que organiza uma civilização baseada na opressão e exploração das mulheres. Um liberalismo patriarcal e racista é exatamente aquele que combina a exploração capitalista com a opressão das mulheres e dos negros. A luta por uma nova hegemonia é exatamente o movimento político permanente para criar uma nova base ético-política, sustentada pelo avanço da luta pela igualdade, para um novo Estado, a partir de novos princípios de civilização. Ela conjuga, então, a luta por mudanças no poder político, nas relações econômicas e nos valores culturais que organizam as relações humanas.
26. O processo da revolução democrática combina, deste modo, avanços na consciência dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros, com a luta por mudanças estruturais na correlação de forças entre as classes sociais visando uma mudança na natureza do Estado. Uma nova hegemonia é exatamente a conquista de uma elevação qualitativa da consciência em direção aos valores do socialismo democrático que mobiliza e se apóia em um mudança estrutural da correlação de forças em favor dos trabalhadores em detrimento das classes dominantes e que são capazes de sustentar uma profunda mudança democrática nos princípios que organizam a economia e legitimam as instituições e as leis fundamentais ou constitucionais que regulam o exercício do poder.
27. O processo de formação de uma consciência afim aos valores do socialismo democrático dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros é expressão mesma da formação de uma opinião pública democrática do país e se combina com a formação de uma vasta rede pública de meios de informação, comunicação e cultura. O socialismo democrático não pode ser visto como alheio ou estranho às tradições classistas e populares do povo brasileiro mas como seu aprofundamento e desenvolvimento libertário. Está intimamente colado às lutas contra os valores liberais , patriarcais e racistas que sustentam a exploração e as opressões. Tem uma alavanca extraordinária nos processos de educação pública cidadã e de democratização da cultura. O seu centro é o transcrescimento no sentido socialista da consciência classista dos trabalhadores. O seu horizonte é exatamente a conquista de patamares crescentes de cidadania, soberania popular e auto-governo.
28. A chegada de uma coalizão dirigida pelo PT ao governo central do país significou uma mudança qualitativa na correlação de forças entre as classes sociais. As classes dominantes precisam do controle pleno do Estado para reproduzir, em escala ampliada, o seu poder e a sua riqueza. Os trabalhadores e setores populares passaram a contar com novas condições institucionais e de legitimidade para conquistas de imenso significado histórico. Sem este controle do estado, a unidade das diferentes facções das classes dominantes, os seus circuitos de valorização do capital, os centros autocráticos de decisão, a organização do domínio de idéias e dos próprios circuitos repressivos ficam profundamente afetados. Mas seus poderes econômicos acumulados, suas relações internacionais, seus privilégios constitucionalizados ou simplesmente reproduzidos pelo poder judiciário, o controle de centros estratégicos de decisão no Executivo ou no Congresso Nacional, a sua capacidade de formação de opinião e legitimação através do controle dos meios privados de comunicação de massa constituem relações estruturais de força, capazes de preservar privilégios ou, no mínimo, estabelecer poder de veto a transformações que atinjam mais duramente seus interesses. Assim, mudanças estruturais na correlação de força não decorrem automaticamente da presença de forças do socialismo democrático no governo e não podem ser pensadas simplesmente como ações voluntaristas de governo. O processo da revolução democrática é exatamente o meio através do qual vão se construindo novas legitimidades e novas bases sociais, novos padrões regulatórios públicos na economia e capacidades de governo, que, juntos, podem catalizar mudanças estruturais nas correlações de forças.
29. Uma mudança da natureza do Estado equivale a uma refundação democrática do Estado através de um novo contrato social. Em geral, ela se expressa por um processo de Assembléia Constituinte, que se realiza em meio à construção de uma nova hegemonia. Assim, ela procura maximizar na transformação social a dimensão do consenso e da vontade das maiorias em relação ao momento de força ou de coerção das transformações sociais. Ela consolida os avanços obtidos por reformas e conquistas parciais mas os reorganiza em uma nova lógica unitária de Estado a partir de novos princípios de civilização. Deste modo, não opomos reforma à revolução mas as definimos em relação ao objetivo revolucionário de mudança da própria natureza do Estado em um processo permanente. Procuramos expressar a dinâmica permanente da revolução em linguagem do socialismo democrático, isto é, condicionando-o à construção de novas formas democráticas de auto-governo. E, principalmente, fazemos a crítica do horizonte reformista ao acusar a insuficiência de um horizonte de transformações que não problematize e transforme a matriz liberal do Estado. Uma revolução democrática, expressando uma profunda republicanização do Estado brasileiro, deve superar os princípios liberais em sua condições de estruturadores da unidade do Estado brasileiro, iniciando uma nova época histórica de transição ao socialismo. Seria contraditório com a própria dinâmica aberta da revolução democrática pretender prever as condições e o tempo da realização desta conjuntura de mudança da própria natureza do Estado brasileiro. Mas é fundamental para a construção de uma nova hegemonia, diferenciando o horizonte da revolução da luta pragmática por reformas, estabelecer este horizonte programático.
30. Como nenhum Estado se organiza isoladamente mas se define em relação com os Estados que organizam o mercado mundial capitalista e suas potências centrais, a revolução democrática no Brasil se relaciona e depende de mudanças no quadro histórico da inserção do Estado brasileiro e de mudanças na ordem mundial. As lutas de emancipação dos trabalhadores e do povo brasileiro vinculam-se assim, em seu próprio destino, às lutas dos povos oprimidos de todo o mundo. É fundamental assim compreender e estabelecer as dimensões programáticas do sentido internacional da revolução democrática.
31. Este campo conceitual que procura renovar o conceito de revolução, a partir dos valores do socialismo democrático, deve ser compreendido e analisado precisamente à luz do Estado brasileiro que existe após os oito anos de governo Lula. Os governos Lula, com todas as limitações impostas pelas correlações de forças adversas no plano internacional, institucional, midiático e econômico, foram capazes de construir mudanças qualitativas no Estado brasileiro, moldado pelo regime militar e pelos neoliberais, sem, no entanto, alterar a natureza liberal do Estado brasileiro que se apóia em um padrão de correlações de forças entre as classes sociais ainda fortemente favorável às classes dominantes. É exatamente esta natureza liberal do Estado brasileiro e estas correlações de forças sociais, estruturalmente adversas ainda aos trabalhadores e aos setores populares, aos negros e às mulheres, que o processo da revolução democrática tem o desafio de superar.
32. Uma grande conquista dos governos Lula foi a de alterar qualitativamente a dependência do Estado brasileiro ao capital financeiro, iniciada nos anos finais do regime militar com a dívida externa e aprofundada pelos governos FHC, construindo as bases, ainda iniciais, para um planejamento democrático da economia. Os governos Lula criaram as condições para uma saída do monitoramento do FMI em um quadro de aguda crise cambial, fortaleceram em um patamar histórico inédito as reservas cambiais (hoje em mais de 250 bilhões de dólares), diminuíram e estabeleceram uma diminuição virtuosa da dívida pública interna, fortaleceram em patamares inéditos os bancos públicos, em particular o papel de financiador dos investimento do BNDES, reduziram qualitativamente o patamar ainda alto da Taxa Selic (de mais de 20 % reais em média nos anos neoliberais para cerca de 6 % reais ao fim de 2010), estabeleceram uma pressão de baixa para os ainda escandalosos juros internos, levando a uma forte evolução do crédito (como, por exemplo, o crédito imobiliário e para a agricultura familiar). A formação de uma inteligência desenvolvimentista no Ministério da Fazenda, articulada com novas diretrizes para estatais chaves, como a Petrobrás, restabeleceu através do PAC o início de um novo ciclo de planejamento do investimento e permitiu inaugurar um novo ciclo de crescimento sustentado com forte inclusão social.A constituição de uma política sistêmica para a agricultura familiar (crédito, seguro, assessoria técnica, políticas de incentivo às mulheres agricultoras e aos jovens) abriu um grande espaço histórico para recolocação dos temas do desenvolvimento agrário e da própria reforma agrária. Mesmo a grave crise financeira internacional de 2008, que provocou uma inflexão do crescimento em 2009, não minou, em função da forte intervenção anti-cíclica estatal, o ciclo de crescimento do salário e do emprego.
33. Uma segunda grande conquista dos governos Lula foi a de restabelecer as bases para a construção de um Estado do Bem-Estar Social no Brasil, profundamente minadas seja no período ditatorial seja nos anos neoliberais, marcados pela intensificação da mercantilização da vida social. Ao criar quinze milhões de empregos com carteira assinada, os governos Lula não apenas diminuíram fortemente o desemprego aberto, mas criaram um novo ciclo de formalização do mercado de trabalho no Brasil, interrompido desde os anos oitenta. Com isto, a crise da Previdência pública brasileira, aprofundada nos anos FHC, vai sendo superada. Paralelamente, ao praticar uma permanente e robusta política de elevação do valor real do salário mínimo, os governos Lula criaram uma pressão, não apenas na base da pirâmide dos salários, mas sobre todo o mercado de trabalho brasileiro, elevando, além disso, os benefícios sociais que têm o salário mínimo como base. Em terceiro lugar, o programa Bolsa Família, aliado a um conjunto de outros voltados para a inclusão social, somado às dinâmicas anteriores, provocou uma verdadeira transformação social na base da sociedade brasileira – uma redução drástica do exército industrial de reserva – da qual sempre se alimentaram os capitalistas para garantir a super-exploração da força de trabalho no Brasil. Em particular, o Programa Territórios da Cidadania criou uma nova metodologia de planejamento participativo para a inclusão social. Na educação, pela primeira vez na história, as políticas públicas começaram a ganhar uma dimensão sistêmica e universalista. Em quinto lugar, não menos importante, as políticas públicas passaram a incorporar, mesmo que inicialmente, dimensões anti-patriarcais e afirmativas dos negros sob intenso ataque dos liberais, agora tardiamente convertidos à tese da miscigenação do povo brasileiro. Estas cinco grandes alterações das políticas públicas do governo federal fortaleceram, sobretudo, a classe trabalhadora e alargaram as possibilidades de universalização dos direitos cidadãos.
34. Uma terceira grande mudança qualitativa conquistada na natureza do Estado brasileiro está vinculada à sua política externa e às suas relações internacionais. Se a ditadura militar adotou uma política externa de grande potência mas sob a esfera de influência norte-americana, se os governos FHC direcionaram o Estado brasileiro para um padrão de humilhante subordinação aos EUA, os governos Lula abriram pela primeira vez na história uma perspectiva de soberania democrática (à diferença dos anos de autonomia nacional construída no primeiro ciclo Vargas), de profundo latino-americanismo e de reinserção autônoma nos centros diplomáticos e de poder mundial a partir de uma agenda pela paz, pela cooperação dos povos e pela diminuição das assimetrias de poder e renda. A expressão política internacional da liderança de Lula não é, assim, de sentido apenas carismático mas apóia-se em raízes internas de popularidade e de um acúmulo de vitórias obtidas por esta reinserção soberana.
35. Uma quarta grande mudança qualitativa está relacionada às dimensões republicanas e democráticas do Estado brasileiro, onde certamente se manifestaram as maiores dificuldades e os maiores limites da experiência dos governos Lula. Pela primeira vez na história republicana brasileira, um governo do país, de esquerda e de bases entre os trabalhadores e setores populares, não reprimiu os movimentos sociais. Pelo contrário, abriu-se através de conselhos, fóruns e mesas de negociação ao diálogo e à construção de agendas comuns. Mais ainda, construiu importantes elementos de uma cultura de democracia participativa através das conferências nacionais temáticas, criadas ou reproduzidas em uma escala sem precedentes. Criaram-se instrumentos permanentes (como a CGU) e uma repressão sem precedentes à corrupção sistêmica. Mas, após oito anos de governo, não foi possível fazer a reforma do sistema de eleições e representação política, a cultura da democracia participativa ainda é não institucionalizada e praticada muito heterogeneamente pelas diversas áreas de governo, uma dinâmica tradicional e enraizada de corrupção sistêmica não foi plenamente superada, o sistema de comunicação pública carece de uma regulação democrática mínima, além de muitas estruturas de poder e de decisão econômica funcionarem autarquicamente e com poucos controles democráticos. Isto é, se a natureza anti-popular e repressiva do Estado brasileiro, em sua dimensão federal, foi em alguma medida neutralizada, as suas estruturas de poder carecem ainda de um profundo processo de democratização e republicanização. É este exatamente o centro da revolução democrática.
36. Os liberais apenas dirigiram o Estado brasileiro, por um período mais longo, na chamada República Velha, compondo um regime oligárquico (no qual menos de 3 % da população votavam, em eleições em geral fraudadas), anti-nacional ( assentado na agro-exportação do café) e anti-social ( repressão aos movimentos sociais e ausência de políticas públicas de caráter social no plano federal). Mas uma tradição liberal, ciosa do caráter sagrado da propriedade da terra, afeita à linguagem dos interesses da acumulação mercantil, racista e patriarcal, se fez presente desde as primeiras décadas de formação do Estado nacional, representando seus interesses econômicos nas estruturas corporativas do Estado Novo, expandindo sua presença no ciclo nacional-desenvolvimentista, embora sempre em posições não hegemônicas. Na verdade, as classes burguesas modernas presentes no Brasil, o grande capital financeiro, industrial nacional e associado, nas telecomunicações, além do agro-business, formaram-se associando-se ao ciclo histórico da ditadura militar. Esta dissociação entre presença hegemônica do liberalismo e expansão dos interesses mercantis na formação do estado brasileiro foi teorizada, em diferentes matrizes teóricas, pelos grandes intérpretes do Brasil, através da noção de revolução burguesa autocrática ( Florestan Fernandes), de “capitalismo burocrático”( Caio Prado Jr.), de patrimonialismo estamental ( Raymundo Faoro) ou de uma burguesia que historicamente nunca constituiu um princípio de soberania nacional ( Celso Furtado). São estes privilégios rentistas, mercantis, tributários, patronais e de propriedade, patriarcais e racistas, formados hsitoricamente na ausência ou na mitigação do princípio da soberania popular, em geral avessos ao princípios republicanos mais fundamentais, que formam a natureza liberal do Estado brasileiro.
37. A natureza liberal do Estado brasileiro após oito anos de governo Lula fica evidenciada, apesar das mudanças qualitativas ali enunciadas, no peso e influência que ali tem o capital financeiro, núcleo das classes dominantes brasileiras. Nos anos Lula, os bancos privados continuaram acumulando recordes em taxas de lucratividade, altas mesmo para os padrões internacionais. O grande capital financeiro no Brasil formou-se nos anos da ditadura militar com o processo de fusões bancárias estimuladas pelo Banco Central, instituição criada pelo regime e desde o início orgânica a este setor do capital. Nos anos neoliberais, esta influência foi levada organicamente ao centro de todas as políticas de governo, em associação com os capitais financeiros internacionais. Nos anos do governo Lula, o poder de influência sistêmica do capital financeiro foi sendo diminuído mas seus interesses corporativos foram, no fundamental, preservados. O Banco Central, mesmo após a saída de Henrique Meireles e mesmo após ter diminuído o grau de sua organicidade em relação aos circuitos de valorização rentista, continua sendo a instituição menos democrática e menos republicana do Estado brasileiro.
38. A natureza liberal do Estado brasileiro evidencia-se também, mesmo após os históricos inéditos ganhos obtidos pelos trabalhadores nestes últimos oito anos, no padrão de relações ainda vigente entre capitalistas e classe trabalhadora. A sobrevida das dimensões corporativas, herdadas da Era Vargas, foi instrumentalizada à serviço de uma acumulação selvagem nos anos da ditadura militar e levada a um grau de barbarismo nos anos de chumbo do neoliberalismo. Nos anos Lula, a classe trabalhadora construiu novas dimensões de sua força social e de seu protagonismo político. Mas no Brasil do século XXI ainda se pratica nas margens o trabalho escravo, a proteção da própria vida dos trabalhadores é muito insuficiente (permanecem em patamares altos os índices de acidente do trabalho), o salário-mínimo é ainda historicamente muito insuficiente, as mulheres e os negros sofrem discriminação, o direito de demissão é incondicionado, a jornada legal de trabalho demasiado extensa. E, principalmente, a democracia no local de trabalho ainda é severamente limitada: com raras exceções, a ditadura vige na fábrica e nos locais de trabalho. Isto é, ainda há todo um mundo de direitos do trabalho a ser conquistado diante da sanha da exploração capitalista.
39. Uma terceira evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está no peso do agronegócio. Este setor foi basicamente construído pelo Estado da ditadura militar, em um plano dirigido para modernizar o latifúndio, recuperar a sua função econômica agro-exportadora e criar sua legitimidade política. Reorganizado como base do governo Sarney, alçado a um lugar de proeminência nos governos neoliberais e projetando-se no interior das estruturas estatais e nas representações no Congresso Nacional durante os governos Lula, este setor soube manter seus interesses corporativos e, além disso, neutralizar a expansão de um projeto de reforma agrária no Brasil.
40. Uma quarta e estridente evidência da matriz liberal do Estado brasileiro atual está na privatização do processo de formação da opinião pública, através do controle oligopolizado dos meios de comunicação de massa. Estes setores do capital, alentados e desenvolvidos pelo regime militar, criaram uma relação programática orgânica com os partidos neoliberais durante os governos FHC. Posicionados estrategicamente na democracia brasileira, cumprem um papel decisivo na reprodução da visão de mundo liberal e dos interesses corporativos capitalistas, procurando impugnar qualquer regulação democrática dos meios de comunicação que, por sua natureza, deveriam ser públicos (ou submetidos diretamente ao controle democrático e plural do Estado ou por ele regulado segundo estes critérios).
41. Uma quinta evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está na inaceitável mercantilização de fundamentos decisivos da reprodução da vida social, como na educação, na saúde, no mercado de terras urbanas, nas políticas de segurança pública, na cultura e nos esportes. Estes bens e serviços, que deveriam ser públicos e reconhecidos como direitos plenos dos cidadãos, ainda estão, como herança do período da ditadura e dos anos neoliberais, submetidos à exclusão pelo mercado, hierarquizados na qualidade pelo mercado e distorcidos profundamente pela lógica mercantil. Nos anos do governo Lula, apesar de avanços setoriais importante na construção do SUS, ganharam novo alento os planos privados de saúde, com a nova clientela das classes médias em formação. Se até o direito à vida está submetido a um padrão inaceitável de mercantilização –a proporção entre gasto público e privado na saúde hoje no Brasil é semelhante ao padrão norte-americano, o sistema mais liberal do mundo desenvolvido – como avançar em uma sociedade que se organize segundo valores do socialismo democrático?
42. Mas a maior evidência da matriz liberal do Estado brasileiro está ainda em seu elitismo democrático, isto é, os mecanismos através dos quais o princípio da soberania popular estabelece uma dinâmica de autogoverno são tendencialmente neutralizados e os mecanismos através dos quais as dimensões autocráticas do exercício do poder são requalificados. Esta é, sem dúvida, a principal herança da transição negociada entre liberais e regime militar, com participação importante mas bastante minoritária da esquerda brasileira (e tendo o PT como honrosa exceção). Mesmo após as conquistas democráticas expressivas alcançadas durante os governos Lula, o Estado brasileiro continua a funcionar com base no princípio da democracia delegativa (a decisão é tomada burocraticamente com base na delegação eleitoral, com pouco controle democrático), de uma democracia representativa alicerçada em fortes distorções de representação (através principalmente do financiamento privado de campanha, as mulheres, os negros, os trabalhadores, os pobres e os agricultores familiares são fortemente subrepresentados) e uma democracia participativa (formas através das quais, a população organizada discute e participa diretamente das decisões através de formas diretas semi-diretas de democracia) ainda é inicial e heterogeneamente distribuída. O objetivo da revolução é exatamente expandir e institucionalizar a democracia participativa, alterar qualidade democrática do sistema de representação e fundamentar democraticamente os mecanismos delegativos do Estado nacional.
43. A principal conquista alcançada durante os governos Lula foi a formação, desenvolvimento e cristalização de uma consciência crítica aos valores neoliberais e potencialmente aberta a um desenvolvimento republicano e socialista democrático. Uma nova agenda para o país foi criada, com base neste sentimento e nesta consciência, que se tornaram públicas. Os partidos do neoliberalismo, com o PSDB à frente, vivem hoje uma crise programática aberta, apesar de ainda manterem, refletindo a correlação de forças ainda favorável aos grandes grupos econômicos capitalistas, um forte protagonismo. A construção do programa da revolução democrática deve, assim, ser entendida, na atualização polêmica com as razões liberais e em diálogo criativo com as novas consciências emergentes dos trabalhadores e dos setores populares, das mulheres e dos negros brasileiros.
IV. Soberania popular e auto-governo
44. O princípio da soberania popular e da universalização do direito político do voto foi fruto das lutas históricas dos trabalhadores e das mulheres. Não se pode afirmar, portanto, que ele resultou da tradição liberal, como quer um certo liberalismo democrático, nem que seja um direito burguês como afirmam certas tradições do marxismo. O nosso ponto de vista programático, como já afirmaram as resoluções nacionais do PT, não pode ser construído com base na oposição entre democracia direta e democracia representativa mas na combinação de princípios e formas que se combinem para aprofundar e maximizar as dimensões práticas da soberania popular e de auto-governo.
45. Na tradição do republicanismo democrático a existência da liberdade é relacionada ao fundamento da soberania popular. A autonomia (o ato de governar a própria vida sem o mando de outros) e o direito à auto-formação da identidade (a liberdade para conformar socialmente a sua própria identidade) são relacionadas, assim, à capacidade de auto-governo, isto é, a leis, instituições e governos que são formados pelos próprios cidadãos e cidadãs. Daí a importância central nesta tradição da formação de uma opinião pública democrática através da qual se formem legitimamente consensos e decisões da maioria. A autonomia e a construção da livre subjetividade é impossível em Estados que são gestados e geridos autocraticamente ou arbitrariamente ou que não apresentem condições para a formação democrática da opinião pública. Nesta tradição, a liberdade depende estritamente da vigência de um padrão de igualdade entre os cidadãos e cidadãs, no que diz respeito às condições econômico-sociais e de gênero.
46. O socialismo democrático, que incorpora o republicanismo, radicaliza a crítica do liberalismo através da crítica ao capitalismo, que instaura em sua própria base de funcionamento os poderes autocráticos do capital. Como demonstrou Marx, o capital fundamenta-se e expande a heteronomia (o domínio e a exploração dos trabalhadores), separa a liberdade da igualdade e procura legitimar a privatização do Estado através da ideologia do contratualismo liberal. Gramsci, através do conceito de hegemonia, propõe que o marxismo seja uma “heresia à religião da liberdade” (o liberalismo), construindo um novo Estado, fundamentado no consenso ativo dos cidadãos e na economia regulada, a partir de princípios de civilização alternativos.
47. Como corrente dominante no interior do liberalismo democrático (aquele liberalismo que recepciona o direito universal ao voto), o chamado elitismo democrático procura desvincular a soberania popular do princípio de auto-governo (formando a idéia da política e da representação desvinculada do cidadão e da cidadã), a liberdade de opinião da formação da opinião pública democrática ( através da teoria do“livre mercado das ideias”), a liberdade da mulher do direito público ( naturalizando ou mercantilizando as relações de gênero), enfim, a própria liberdade da igualdade (referindo esta última apenas à livre contratação no mercado). O modo como o liberalismo opera estas quatro rupturas é definindo a “verdadeira liberdade”como negativa, isto é, como anterior (estabelecida já na sociedade civil ou no mercado) e contra o Estado (quanto menos Estado, quanto mais espaço de não intervenção do Estado ou das leis, maior será a liberdade).
48. No Brasil, a conquista do princípio mínimo de soberania popular através da universalização do direito de voto só foi alcançada em 1988. Isto é, de um ponto de vista rigoroso, a liberdade política, base do republicanismo, só se iniciou entre nós muito recentemente. A chamada “República velha”, dominada pelo liberalismo oligárquico, racista e patriarcal, foi centralmente anti-republicana e anti-cidadã. O varguismo operou fortemente com a noção de Nação e de direitos sociais mas, em seu primeiro ciclo, cassou o direito político. A primeira democracia de massas no Brasil, de 1946 a 1964, não permitia o direito de voto da maioria (estavam excluídos os analfabetos) nem o pluralismo político pleno (a esquerda não tinha a maior parte do tempo direito legal de organização partidária). A ditadura militar, com apoio de liberais conservadores, conduziu o grande ciclo da “modernização conservadora” durante a ditadura militar.
49. A transição conservadora da ditadura para a redemocratização, realizada sob intensa pressão popular mas sob a direção de setores liberais, significou exatamente a tentativa de conter ou neutralizar o princípio da soberania popular como auto-governo. Há, pelo menos, cinco caminhos através dos quais se procurou conter ou neutralizar o princípio de auto-governo na democracia brasileira pós ditadura militar. O primeiro deles foi manter um padrão de delegação executiva em geral imune ao controle público nos principais órgãos do Estado. Por exemplo, a Controladoria Geral da União, criada nos últimos anos do governo FHC, só veio a ter existência real nos governos Lula; o próprio princípio republicano mínimo da proibição da contratação de parentes – o nepotismo – só foi recentemente aprovado. O segundo foi continuar, em grande medida, com os padrões de regras eleitorais e de representação que vieram sendo construídos ao longo dos últimos anos da ditadura militar: voto personalizado e não em listas partidárias, financiamento privado ilimitado e sem controle, representação não proporcional segundo as populações na Câmara Federal, atribuição de funções não federativas mas revisoras ao Senado. O terceiro caminho foi o de não regulamentar aquelas proposições mais avançadas, de democracia participativa, aprovados na Constituição de 1988. O quarto caminho foi de barrar a nova regulação do sistema de comunicação, favorecendo a crescente privatização do processo de formação da opinião pública através da concentração das grandes empresas de comunicação de massa. O quinto caminho, enfim, foi de barrar os possíveis elos de relação do ativismo cidadão com a institucionalidade estatal, mantendo uma cultura e mecanismos de forte repressão aos movimentos sociais.
50. A vitória de uma coligação liderada pelo PT nas eleições presidenciais de 2002 só foi possível, assim, após um longo processo de acumulação social e política, em uma dinâmica no fundamental de fora para dentro da institucionalidade estatal, e em meio ao grande desgaste dos governos neoliberais. Antes desta vitória, não houve conquistas democráticas significativas que alterassem a natureza problemática do Estado brasileiro, exceto no plano municipal e estadual de forma muito parcial e descontínua. Esta consciência é decisiva porque é fundamental para entender a crise vivida pelo governo Lula em 2005 e os impasses políticos vividos pelo PT em relação à sua cultura socialista. Há, pois, entre a cultura do socialismo democrático do PT e o Estado governado por ele nos últimos anos um conflito central, que diz respeito à própria natureza liberal e anti-republicana do Estado brasileiro.
51. É fundamental, pois, superar as cinco interdições que bloqueiam a expansão no sentido do auto-governo do princípio da soberania popular na democracia brasileira:
– as funções executivas que, com precário ou insuficiente controle público, reproduzem privilégios corporativos, dinâmicas de corrupção sistêmica ou são capturadas por interesses privatistas ;
– o sistema eleitoral e de representação que mal representa a sociedade brasileira, como em relação às mulheres e aos negros, distorce fortemente a representação em favor dos capitalistas e desmoraliza a própria atividade política aos olhos de uma cultura cidadã;
– o sistema de deliberação público que ainda não institucionalizou a democracia participativa – seus fóruns, suas legitimidades, seus procedimentos – no plano federal;
– o sistema de comunicação que mal comunica, silencia, distorce e privatiza o processo de formação da opinião pública democrática e pluralista;
– o sistema repressivo de segurança que, se foi praticamente coibido no âmbito das relações do governo federal, ainda atua em grande medida à margem dos padrões mínimos de direitos humanos para as populações pobres e trabalhadoras.
52. A conquista do financiamento público de campanha e do voto em lista, com a paridade na representação de mulheres, deve ser considerado um objetivo programático estratégico do PT. Nas duas experiências do governo Lula, o PT viveu todas as contradições, riscos e desafios do chamado presidencialismo de coalizão, herdado da transição conservadora, através do qual o presidente eleito por voto majoritário em primeiro ou segundo turno não tem formado uma maioria no Congresso Nacional para governar. Sem maioria estável no Congresso Nacional, o presidencialismo brasileiro se abre quase automaticamente à paralisia decisória de governo ou a situações potenciais de crise institucional. Mais além desta problemática, é a própria expressão democrática e auto-reformadora do princípio da soberania popular, no sentido da formação de novos direitos cidadãos ou de criação de leis mais avançadas que fica fortemente comprometida ou parcialmente neutralizada com o atual sistema eleitoral que distorce profundamente a representação do povo brasileiro. A única legitimidade, no limite, defensável da existência do Senado brasileiro é a sua participação em decisões de caráter nitidamente federativo, função que poderia ser alternativamente cumprida por uma exigência de critérios especiais para aprovação de leis de nítido caráter federativo em um sistema unicameral: a sua função revisora quebra nitidamente o princípio da soberania popular, ao sobrerepresentar estados com menor população e subrepresentar estados de maior densidade populacional. O financiamento privado das campanhas, em particular do modo como é exercido no Brasil, praticamente sem controle e em um país de tal desigualdade estrutural de renda, é um verdadeiro atentado ao princípio republicano de que a democracia deve ser baseada nos direitos simétricos dos cidadãos e cidadãs. Trabalhadores, pobres, negros, mulheres, agricultores familiares e sem terra são profundamente subrepresentados e banqueiros, capitalistas, ricos, brancos, homens, empresários do agro-business têm seu poder de representação escandalosamente majorados. Além disso, o onipresente caixa 2 das campanhas deve ser compreendido como o principal canal de reprod