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Apontamentos – XIII | Dr. Rosinha

Imediatamente o belo deixou de ser belo. Passei a ver as pedras irregulares das ruas, que são chamadas de “pé-de-moleque”, com os olhos de um sanitarista: doces contaminados.

Ilustração: Benett

Viagem

Toda viagem, curta ou longa, pode ser uma aventura, ou pior, uma desventura, que, dependendo do ponto de vista, pode ser considerada aventura.

Decidimos (Marta e eu) viajar, aventurar-nos, sem definir a distância a percorrer e o dia da volta. O rumo tomado foi mais desejo, que fruto de planejamento.

A decisão não foi tomada totalmente no escuro, acendemos velas a santos e santas e fizemos um mínimo de planejamento. Planejamento, claro, que contou com a questão econômico-financeira, que, no fundo é quem ditou a programação.

Imaginando que tudo seria bom, agradável e prazeroso, saímos para a estrada.

 Falhou já no primeiro dia: saímos dois dias depois do planejado.
***

As aventuras de Tibicuera

Primeira parada, Itanhaém, donde saímos com a bagagem um pouco – muito pouco – mais pesada.

Na visita a um dos sebos e antiquário da cidade, além da boa conversa, encontrei na prateleira As Aventuras de Tibicuera, que são também as do Brasil, Érico Verissimo, que ignorava existir, não o Érico, mas o Tibicuera.

É um livro de bolso, 22º edição publicado pela Editora Globo, em 1981. O livro cheira a mofo, tem furos feitos por traças, páginas dobradas, algumas com pequenas rasuras e outras destacadas, soltas, com suas bordas fora do corpo do livro.

É um livro infanto-juvenil, não há sinal que tenha sido lido, não foi retirada a Folha de Leitura.

Perguntado, pela Marta, o valor do livro, a resposta foi: “Pode levar”.

***

Pé de moleque

No segundo dia em Paraty, observei várias fotos em lojas de artesanato, com a água cobrindo as soleiras das portas e algumas chegando até a altura de 50 cm, ou mais, em relação à calçada.

Imaginei ser o retrato de uma enchente, até porque de tempos em tempos a cidade, que está ao pé da serra e à borda do mar, é atingida por alguma enchente.

No final da tarde, deste dia, ao visitar a Igreja Matriz, a rua em frente estava inundada e lentamente a água subia de nível, chegou a atingir a soleira de algumas casas. Imaginei que fossem os bueiros entupidos, que não davam vazão a água.

Era o contrário: quando a maré sobe, a água vem pelos bueiros.

O fenômeno despertou curiosidade e consequentemente perguntas. Assim fomos informados que isto é resultado de um projeto de quando os portugueses planejaram a cidade: como o esgoto era a céu aberto a subida da maré e, posteriormente, seu esvaziamento servia para limpar as ruas de todas as imundícies.

Mas, a Paraty de agora, não é a do século XVII, é mais populosa e com o terreno mais impermeabilizado, isso favorece a subida das águas além dos níveis iniciais.

Pergunto à uma moça:

_ A água da maré chega até que altura?

_ Depende a época do ano, mas, às vezes entra pelas casas adentro.

Dito isto, faz uma pausa e emenda:

_ Vendo como está hoje parece até bonito, mas as casas ficam cheias de terra, lodo e merda de cachorros.

Não disse “merda de cachorros”, mas deu a entender. Pior, disse que vários restaurantes da cidade deixam a fossa cheia, o seu conteúdo transborda e entra casas adentro.

Imediatamente o belo deixou de ser belo. Passei a ver as pedras irregulares das ruas, que são chamadas de “pé-de-moleque”, com os olhos de um sanitarista: doces contaminados.

***

Invasão

Para chegar ao Forte, em Paraty, há que subir uma estrada, íngreme, de chão batido. Parar para ler as placas que estão em ambas as margens da estrada, suaviza a subida.

São placas que identificam cada uma das árvores: trazem informações, que no geral, não somos ativos em buscá-las. Contém informações simples, como, por exemplo, a tangerina: descreve que é uma fruta comestível, sua origem, etc. Mas, o que me chamou a atenção, é que seu nome se deve a Tânger.

Antes mesmo de ler as informações sobre a árvore seguinte, a goiabeira, sou perseguido pelo delírio, não meu, mas de uma Senadora. Ao me aproximar da árvore lembrei-me da mulher que viu Cristo na goiabeira. Ri sozinho.

–  De que você está rindo? – Era a Marta me perguntando.

Respondi e imediatamente veio a censura: “onde se viu, nós aqui neste espaço histórico e bonito, e você lembrar-se dessa mulher”.

Mas gostei mesmo de ler na placa: as goiabeiras invadiram os Estados Unidos.

Até que enfim os Estados Unidos sofrem uma invasão, mesmo que pacífica.

 

Dr. Rosinha é médico aposentado e ex-deputado.

Via Plural

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