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Argentina: Cristina parte para o ataque pelo futuro do kirchnerismo

1262205Da Carta Maior

A melhor defesa é um bom ataque, reza um velho adágio futebolístico. Cristina Fernández, que de futebol não entende nada, está aplicando essa máxima na atual crise, “a pior que o kirchnerismo conheceu em seus dez anos”, nas palavras do jornalista argentino Horácio Verbitsky.

Assediada pelos grandes grupos econômico-midiático-rurais, pelos fundos especulativos e pelas fraturas de uma sociedade que não superou as sucessivas feridas abertas desde o golpe de 1976, a presidenta argentina protagonizou a ofensiva cambial de janeiro, negociou com os grandes grupos econômicos, pressionou os bancos, avançou com uma reforma tributária e contra-atacou com a aquisição por parte empresa de petróleo nacionalizada YPF de uma empresa estadunidense do setor, a Apache. Nada mal para um país que, há poucas semanas, estava à beira do precipício, segundo a definição de meios de comunicação locais e estrangeiros.

A estratégia exigiu muito mais cintura política da presidenta do que reconhecem seus detratores que sempre a acusam de dogmática e adepta do confronto. Mas as frentes de batalha são numerosas e porão a prova o instinto de sobrevivência do kirchnerismo.

Na frente externa, o governo quer terminar de encerrar uma das mais pesadas heranças do neoliberalismo: a dívida externa. Esta semana apelou ante a Corte Suprema dos Estados Unidos sobre diversas decisões da justiça desse país para obrigar a Argentina a pagar 1,3 bilhões de dólares a fundos especulativos que não participaram da reestruturação da dívida argentina de 2005 e 2010. A Corte Suprema tem que decidir nos próximos meses se aceita esse caso que pode ter fortes repercussões internacionais para os processos de reestruturação de dívidas soberanas, capítulo no qual, cedo ou tarde, entrarão várias nações da Europa. Se a Corte Suprema não aceitar, a Argentina será obrigada a pagar ou entrar em moratória.

Na frente interna, acalmadas as pressões sobre a taxa de câmbio depois da desvalorização de 24 de janeiro, a próxima batalha é contra a inflação. O governou tomou a iniciativa apresentando dia 13 de janeiro um reformado índice de preços que devolveu credibilidade ao desprestigiado INDEC, mas sua primeira e exaustiva medição (230 mil preços em 13 mil estabelecimentos comerciais de 146 localidades) apontou uma preocupante inflação de 3,7% em janeiro que, projetada no ano, daria uma alta dos preços por volta de 40%. Esta expectativa da inflação já influi nas negociações salariais conhecidas como paritárias que serão realizadas no curso do ano entre sindicatos e entidades patronais. O governo não quer que os acordos passem de 25% para evitar a clássica corrida de salários e preços, mas alguns sindicatos fizeram pedidos entre 32% e 50%. Em um país politicamente polarizado que carrega o fantasma de hiperinflações passadas (quatro episódios desde 1975), Cristina Fernández está tentando fechar todas as frestas abertas.

O chefe de gabinete, Jorge Capitanich, anunciou que em janeiro foi retomado o superávit primário e que estavam sendo revisados exaustivamente cerca de 130 bilhões de pesos em subsídios à eletricidade, ao gás e ao transporte, que surgiram com a crise de 2001 e que ainda hoje incluem entre seus beneficiários numerosos setores da classe média e alta. O anúncio deve ser feito até março e baixará de maneira equitativa e progressista um gasto fiscal que disparou por diversas medidas sociais e econômicas do governo (planos de ajuda a desempregados, inclusão de dois milhões de aposentados adicionais, desendividamento, etc.).

O novo chefe do Banco Central, Juan Carlos Fabrega, subiu as taxas de juro para os pesos em até 30%, com o que conseguiu absorver cerca de 5,3 bilhões de pesos nas últimas duas semanas, outra fonte que acalmará as tensões cambiais e inflacionárias. O governo também avança com seu programa de Preços Cuidados, um sistema de preços de referência que busca colocar um teto à rentabilidade das empresas e á tentação de aproveitar a desvalorização para aumentar os lucros, apoiando-se no pretexto do encarecimento dos insumos adquiridos no exterior. “O que há de mais argentino que a erva mate! Não tem nenhum insumo e, no entanto, estão especulando com seu preço”, ironizou recentemente a presidenta pela televisão.

Com todas estas frentes diante de si no marco de uma delicada situação da economia regional e mundial, nada pode assegurar a vitória. Os economistas opositores ao governo assinalam que este ano haverá “estagflação” (estagnação econômica com alta inflação) e mesmo os mais vinculados ao governo antecipam um ano duro com uma inevitável retração do consumo (pelo aumento das taxas de juro e a retirada de subsídios) que dependerá da resolução de todas estas variáveis.

A este panorama se soma na frente política as eleições gerais do final de 2015. A presidenta não pode apresentar-se novamente como candidata e no kirchnerismo estão florescendo os aspirantes e o potencial de sangrias internas. A variante de direita, o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, quer representar, sem demasiada luz própria, um “kirchnerismo aberto ao diálogo e à unidade”, formulação que costuma abrir a porta a todo tipo de concessão.

Mas Scioli, que até a pouco tempo parecia a única alternativa, não está sozinho. O chefe de gabinete, Jorge Capitanich, uma espécie de kirchnerista católico de esquerda, não se pronunciou a respeito, mas está tendo uma enorme exposição midiática que já despertou receios entre outros governadores, como o de San Juan, José Luis Gioja, um “kirchnerista” sempre disposto a mudar de bando. O governador de Entre Ríos, Segio Uturburri, já confessou seus desejos presidenciais.

Está em jogo o próprio futuro do kirchnerismo, um populismo pragmático que contem em seu interior muitas alianças por conveniência, várias das quais, tanto na frente sindical como na política, já abandonaram o barco. Em sua práxis concreta, tanto o falecido Néstor Kirchner como sua esposa Cristina, mesclaram acertos e erros com uma clara direção política que ajudou a reverter parte do neoliberalismo reinante no país desde 1976 e que incluiu a estatização de fundos de pensão, o petróleo, a ampliação de direitos econômicos e sociais, do emprego e do universo de aposentados.

Segundo o jornalista Horacio Verbitsky, simpatizante do governo e feroz crítico do neoliberalismo, daqui até às eleições de outubro de 2015 se decidirá o destino desta última encarnação peronista que é o kirchnerismo. “O kirchnerismo pode consolidar-se como uma nova identidade política que seja imprescindível sob a condução de Cristina ou pode se diluir sem piedade nem glória”, assinalou no jornal Página/12.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer 

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