CARO É CUIDAR DE RICO

“Sou presidente para provar que é possível cuidar
dos pobres. O que custa caro é cuidar de rico.”
Luís Inácio Lula da Silva, Presidente do Brasil,
em discurso em São Luís do
Maranhão no dia 21/06/2024.

ARNO AUGUSTIN é
economista, ex-Secretário
do Tesouro Nacional. O
autor agradece aos
economistas Aniger de
Oliveira e Jorge Ussan as
contribuições e sugestões
recebidas.

1) RENTISMO E OBJETIVOS DA POLÍTICA ECONÔMICA

Economia é uma ciência social. A definição de uma política
econômica adequada não surge simplesmente do estudo de
gráficos e números. Quando um economista diz que é necessário
aumentar a taxa de juros e que o consenso de mercado (em geral,
ele não esclarece que o mercado em questão é o mercado
financeiro especulativo) vai nesse sentido, e outro diz que o
importante é combater a fome imediatamente, pois isso ajudará o
desenvolvimento do país, eles não estão apenas recitando
aprendizados acadêmicos.
Eles estão se posicionando sobre qual é a melhor política
econômica, considerando os interesses materiais em disputa. Se o
objetivo da economia for melhorar a vida de todas as pessoas, ou
das que mais precisam, a política econômica adotada será uma. Se o
objetivo for tornar algumas poucas pessoas ou instituições mais
ricas, será outra. Essa aparente obviedade precisa ser reiterada. A
mídia, ligada a especulação, passa o dia todo recitando falsas razões
ditas técnicas e ouvindo economistas ligados a bancos e fundos de
investimento para defender os interesses do mercado financeiro.
Isso cria uma falsa sensação de verdade científica, onde, na verdade
só há interesse material.
A política econômica é dramaticamente condicionada pelos
interesses materiais em disputa. A história recente do Brasil deveria
nos ensinar algo importante. As três tentativas desenvolvimentistas
de construir um projeto de nação foram abruptamente destruídas
pelosgolpes de Estado de 1954, 1964 e 2016.
Mesmo que essas experiências se aproximassem muito mais de
um nacionalismo desenvolvimentista do que de qualquer outra
coisa mais radical, elas não foram aceitas pelo reacionarismo e
entreguismo que dominam nossas elites, devendo-se destacar o
papel da grande mídia corporativa e da especulação financeira
nesse processo. Aqui, há uma drenagem permanente e de alto custo
de recursos para o mercado financeiro especulativo. Este, por sua
vez, que passa a ter grande força política, potencializada pelas
condições coloniais e escravocratas da sociedade brasileira. As elites
brasileiras estão acostumadas a ter privilégios.
As verdadeiras restrições ao nosso crescimento, desenvolvimento
e distribuição de renda não são econômicas, mas políticas. Elas
decorrem da correlação de forças.É no âmbito da luta de classes, da
disputa de interesses de estratos sociais em conflito que devemos
encontrar as verdadeiras razões da obstrução ao crescimento no
Brasil.
Nosso país tem a tarefa absolutamente imprescindível de vencer
a especulação financeira. Isso provocará mudanças estratégicas na
correlação de forças e, consequentemente, dará oportunidades
extraordinárias de desenvolvimento econômico e combate à miséria.
O principal fator de concentração de renda no Brasil é o rentismo
financeiro. Boa parte das empresas tem seu lucro oriundo do ganho
financeiro e não de sua atividade operacional, inclusive a Rede
Globo e uma parte significativa da indústria e do comércio.
Muitas vezes, a atividade-fim da empresa tem menos
rentabilidade do que a especulação financeira. Por isso, as elites
brasileiras são quase unânimes na defesa do rentismo financeiro,
porque ganham com isso. Parte da própria indústria trabalha contra
seus interesses ao privilegiar as políticas econômicas pró-rentismo,
uma vez que seu lucro financeiro é maior do que o operacional.
Para muitas empresas, em especial para pequenas e médias,
não há ganho financeiro relevante. Para essas, o rentismo se
apresenta com a sua face mais cruel, pois implica em não terem
capital de giro e serem impedidas de investir, já que as taxas de juros
cobradas do tomador são impraticáveis.
Além da SELIC absurda, os spreads bancários são proibitivos. Os
bancos conseguem impor spreads altíssimos porque eles sempre têm
uma elevada rentabilidade emprestando ao próprio governo ou ao
Banco Central e lucrando com taxas já extorsivas. Se podem ficar
ricos com títulos públicos, para que emprestar para a padaria da
esquina e correr riscos? Só se for com uma rentabilidade ainda mais
usurária.
O resultado é que a taxa de investimento, ou seja, a relação entre
o investimento público e privado e a atividade econômica, é baixa.
Isso ocorre porque o custo do crédito é demasiado para quem
não tem reservas financeiras e porque o ganho na aplicação
financeira é alto para quem possui reservas.
Uma taxa de investimento baixa tem como consequência pouca
capacidade instalada, o que faz com que os preços subam
rapidamente caso ocorra aumento da demanda.
A política econômica, portanto, precisa se preocupar em
aumentar a taxa de investimento, pois quando ela é alta, a
economia pode crescer de forma mais equilibrada e com menos
pressão de preços.
Por isso, é fundamental que a política econômica privilegie a
economia real e diminua o ganho financeiro. Não se trata apenas de
uma disputa entre empresas, trata-se também da alocação dentro
das empresas, entre investimento real ou aplicação meramente
financeira.
Disputar a política pela esquerda (pela extrema direita é
exatamente o contrário) relaciona-se com a capacidade de
organização, mobilização e de elevação da consciência da
população, especialmente os trabalhadores. Nos estratos de menor
renda, as políticas concretas de acesso à renda produziram e ainda
produzem efeito positivo. No entanto, mesmo nesses estratos onde
nossa aprovação é positiva, a elevação do nível de consciência e
organização é muito pequena.
Ainda no campo dos trabalhadores, em um estrato de renda um
pouquinho maior, nossa aprovação é desastrosa. A ausência de
politização abriu ampla entrada para a extrema direita, em um
evidente contraste entre a melhoria das condições de vida desses
estratos e a sua total confusão política e ideológica.

2) CORRELAÇÃO DE FORÇAS
No espectro da extrema direita, a redução do nível de
consciência é condição essencial para a eficiência dos parâmetros
subconscientes que caracterizam o seu viés fascista. É no uso de
conceitos sem profundidade, de poucos toques e nenhuma verdade
que viceja a erva daninha fascista. O medo difuso e a manipulação
desonesta das emoções fazem com que a teologia do domínio cresça
assustadoramente.
Isso se deve, em parte, a própria estratégia política e de
comunicação vinda do governo. Há pouca disputa ideológica,
permitindo uma permanente iniciativa de mentiras pela extrema
direita. Na ausência de politização e elevação de consciência, abriuse um terreno fértil para a mentira, desinformação e ódio como
instrumento de manipulação.
Obviamente, a situação se torna pior devido à desonestidade da
mídia corporativa, vinculada aos interesses da especulação
financeira e comprometidas com a extrema direita; a ausência
completa de regulamentação do capitalismo de dados, que permite
que seus mega bilionários proprietários abusem dos algoritmos próextrema direita e contra a verdade; e ao campo livre para a teologia
do domínio praticada sem escrúpulos pelas igrejas evangélicas
neopentecostais.
A falta de regulamentação e democratização da mídia e do
capitalismo de dados das big techs, além da subestimação e
conciliação com os empresários da fé e com a teologia do domínio,
já nos cobrou um preço histórico dramático. Parece que nada
aprendemos.
O desastre só não é total devido à extraordinária capacidade de
interlocução do próprio presidente Lula. No entanto, um real
aumento de consciência política exigiria muito mais.
O instrumento de maior viabilidade política e legal de aumento
de consciência da população, a democracia participativa direta, está
prevista na Constituição de 1988. Mas, infelizmente, a participação
popular tem sido relegada a um plano meramente simbólico pelos
nossos governos. Experiências de democracia direta, como o
orçamento participativo e outras são um poderoso instrumento de
aumento de consciência política. Se a população tivesse condições
de entender plenamente o orçamento público, muitas das formas
de extração de bilionárias quantias da população e entrega de
valores para interesses localizados não existiriam. O próprio
Congresso e suas corruptas e corruptoras emendas parlamentares
não teriam a força que hoje têm para chantagear permanentemente
a nação.
Aqui cabe uma palavra sobre o Congresso. O poder da extrema
direita e do Centrão dentro do Parlamento, e deste em relação ao
Executivo, vem aumentando enormemente. Isso se deve a uma
combinação do efeito cancerígeno das emendas parlamentares e da
nossa falta de disputa social para se contrapor às decisões
contrárias à população que o Congresso toma.
Um exemplo são as próprias emendas parlamentares, que hoje
já são maiores do que o total do investimento do Executivo. É o
gasto mais ineficiente que se possa imaginar. Mas a mídia
neoliberal naturaliza sua existência. Passam o tempo inteiro falando
em eficiência, mas não atacam a ineficiência das emendas. Isso
porque as emendas parlamentares são o caminho para o aumento
da força da extrema direita e do centrão, ou seja, os seus
verdadeiros aliados.
A participação e organização popular seriam o melhor antídoto
tanto para combater as práticas corruptas e antidemocráticas que
imperam no Legislativo, como para mudar a correlação no Congresso
e para restituir o caráter presidencialista de nosso sistema de
governo, conforme aprovado na Constituição de 1988 e referendado
em plebiscito. O esdrúxulo conceito de presidencialismo de coalizão
não existe em nossa Constituição. Apesar disso, o Congresso tende
a se dar poderes que legalmente não tem. As emendas
parlamentares, na forma como praticadas hoje, afrontam claramente
nosso ordenamento jurídico. Apesar disso, a índole chantagista que,
infelizmente, domina nosso parlamento as mantém de forma
artificial e vergonhosa.
Por fim, cabe lembrar que o neoliberalismo, em especial na sua
fase atual de vitória da financeirização e da desregulamentação a
nível mundial, traz consequências políticas extremas. O avanço da
extrema direita no mundo é, em grande medida, um produto da
crise da civilização causada pela radicalização das políticas
neoliberais. Destrói-se a democracia e os serviços público são
sucateados. Com isso, cresce o ódio e o apelo do viés fascista, que se
apresenta como destruidor de tudo que está aí e utiliza táticas
subconscientes de manipulação e mentira permanente.
A própria capacidade de organização da classe trabalhadora se
torna ainda mais difícil. Sem emprego e sem relações de trabalho
formalizadas e minimamente protegidas, não há condições mínimas
para a organização sindical, o que enfraquece muito o nosso campo.
O que ocorreu entre 2015 e 2016 deveria servir de lição. Mesmo
alinhando toda a orientação de política econômica com as aspirações
do mercado financeiro especulativo, a Presidenta Dilma foi deposta.
Na verdade, foi deposta por fazer isso. Perdeu totalmente o apoio
popular e não ganhou apoio nenhum da especulação financeira. E
como piranhas sentindo cheiro de sangue, os rentistas financeiros
atacaram e concretizaram o golpe de 2016.
Uma das ilusões criada pela propaganda neoliberal é a de que
a taxa de juros é alta porque o governo gasta demais e precisa
tomar dinheiro emprestado para pagar suas contas e, por
decorrência, o mercado é obrigado a aumentar a taxa de juros. Mas
isso é só propaganda. Os fatos são bem mais complexos.
Não é o mercado que define a taxa SELIC, o parâmetro real da
taxa de juros no Brasil. Quem decide a taxa Selic é o Banco Central.
E ele não apenas decide seu valor, mas também atua no mercado
para impor que ela seja mais alta do que seria caso o mercado fosse
deixado à sua própria sorte.
A prova é que boa parte da chamada dívida pública não decorre
de venda de títulos pelo Tesouro, mas sim pelo próprio Banco
Central (BC). São as chamadas operações compromissadas¹. No mês
de abril, o Banco Central tinha um estoque no mercado de 1 trilhão
351 bilhões em operações compromissadas². Isto corresponde a
12,2% do PIB. O BC vende estes títulos denominados operações
compromissadas e arrecada esses recursos.E o que ele faz com esse
dinheiro pelo qual ele pagou valores em torno da SELIC? Nada,
deixa em caixa.
Isso mesmo, o Banco Central endivida a nação em valores
expressivos apenas para retirar dinheiro da economia e, com isso,
impor uma taxa SELIC mais alta. Se ele não fizesse isso, a taxa de
juros despencaria e seria bem menor.
3) JUROS, CÂMBIO E INFLAÇÃO

  1. Como o BCB é legalmente
    proibido de emitirtítulos, ele
    utiliza títulos públicos que a STN
    repassa a ele como lastro da
    operação de mercado que ele
    realiza. Esta operação é
    chamada de operação
    compromissada. Na prática, é
    como se fosse um título público
    emitido por ele.
  2. BCB.
    Como conseguiram impor a chamada autonomia do Banco
    Central, hoje temos que conviver com um presidente do BC nomeado
    pelo governo Bolsonaro, que atua para boicotar o governo Lula e
    agradar o que de pior existe no mercado financeiro especulativo.
    Como é esse Banco Central que decide os juros, fica fácil enxergar
    por que, em 2023, a taxa Selic³ real (deduzindo-se o IPCA) foi de
    8,04%. Em função disso, nos 12 meses encerrados em abril de 2024,
    gastamos 776 bilhões de reais de dinheiro público pagando juros⁴.
    Para piorar ainda mais, estão tentando aprovar a Proposta de
    Emenda à Constituição n.º 65 de 2023, que transforma o Banco
    Central em uma empresa, dando-lhe autonomia para aumentar o
    salário de seus diretores e funcionários sem seguir as limitações do
    funcionalismo público e podendo usar livremente os recursos lá
    alocados pela União (trilhões) para as despesas que decidirem. Será
    uma espécie de semiprivatização do Banco Central. Se isso vir a ser
    aprovado, o dano será imensurável. É urgente uma mobilização da
    sociedade e do governo contra essa gravíssima ameaça.
    Uma Selic alta implica em óbice importante para a atividade
    econômica, retira recursos das famílias e custa muito caro para o
    setor público, que paga esses juros com o dinheiro de impostos
    como qualquer outra despesa. Por decorrência, juros altos
    aumentam a dívida pública.
    Portanto, a justificativa para termos a segunda taxa de juros real
    mais alta do mundo (atrás apenas de um país em guerra, a Rússia)
    deveria ser muito bem embasada. Infelizmente, como a grande
    imprensa está completamente comprometida com a especulação, o
    Banco Central impõe algo absurdo e não é exigida dele nenhuma
    explicação convincente.
  3. BCB.
  4. BCB.

    Em tese, o primeiro efeito dos juros em elevação é diminuir a
    atividade econômica, pois as empresas vão optar por não investir e
    as famílias vão optar por não consumir. Portanto, uma taxa
    demasiada só se justifica em uma economia com excesso de
    demanda, o que não é o caso do Brasil hoje. O Nível de Utilização de
    Capacidade Instalada⁵ continua orbitando pouco acima de 80%, o
    que não deveria trazer inquietação.
    No entanto, desde o plano Real, o motivo que parece dominar
    a ação do Banco Central é o controle da inflação através dos efeitos
    de uma taxa de juros sobre a taxa de câmbio e deste sobre a
    inflação. Um real valorizado (um dólar custando menos reais) faz
    com que os produtos e insumos importados entrem por um valor
    mais baixo em reais e isto controlaria a inflação.
    Existe uma opção na especulação financeira internacional,
    chamada de arbitragem, que é a de procurar países com taxas reais
    de juros mais alta e com Bancos Centrais ultraortodoxos que
    imponham uma valorização permanente das moedas locais. Com
    isso, aumenta a entrada de moeda estrangeira especulativa, o que
    ajuda a valorização da moeda local.
    Isto gera lucros extraordinários para os especuladores oriundos
    tanto da taxa de juros elevada como da valorização da moeda local.
    O problema é que este é um recurso improdutivo, que não significa
    investimento na economia real e que vai embora no primeiro
    solavanco econômico, seja local ou internacional.
    A inflação tem estado em torno de 4% ao ano, ou abaixo disso
    no último período. Não há excesso de demanda, nem expectativa de
    pressões inflacionárias relevantes. No entanto, a taxa de juros do
    Banco Central vem caindo a uma velocidade de lesma cansada, que
    caminha cada vez mais devagar até parar completamente.
  5. FGV.

    Na reunião do Copom de junho de 2024, algo muito estranho
    aconteceu. O Banco Central inexplicavelmente manteve a Selic em
    10,50%. Estranhamente, os diretores do BC nomeados já pelo atual
    governo acompanharam esta posição. Ocorre que esses mesmos
    diretores haviam votado por uma redução maior do que a realizada
    na reunião anterior. Por que teriam mudado de opinião?
    Já o Presidente Lula, corretamente, manteve suas críticas aos juros
    altos mesmo após a fatídica reunião.
    Os juros altos e inexplicáveis são um dos maiores entraves ao
    desenvolvimento do país e já passou da hora de terminar com isso.
    Nosso país tem tido uma condescendência inaceitável com esse
    esbulho praticado pelo BC contra a nação, inclusive pela pressão da
    imprensa comprometida com a usura, mas é um papel nesta tragédia
    exercido pela conciliação quase suicida do governo com o mercado
    financeiro.
    A lógica neoliberal da dona de casa que não pode gastar mais do
    que recebe não se aplica a economia (além de ter um viés sexista).
    Ao contrário da dona de casa, o poder público é quem emite a
    moeda, tendo a atribuição legal e institucional de fazê-lo. Há muito
    tempo não existe mais a moeda lastreada em ouro, e o nível de
    moeda emitido é uma decisão governamental. Pode-se argumentar
    que uma emissão demasiada é contraproducente, ou que os gastos
    fiscais não deveriam ser sustentados pela emissão monetária, ou
    ainda que o Brasil possui restrições legais para tal. Há teorias
    diferentes que sustentam visões diferentes, mas, se o requisito da
    boa-fé for respeitado, ninguém dirá que o poder público é igual à
    dona de casa. Salvo na propaganda falsa do neoliberalismo.
  6. BCB.
  7. BCB.

    4) A FALSA DIDÁTICA DA MENTIRA NEOLIBERAL


    Mesmo assim, cabe fazer um pequeno exercício explicativo das
    mentiras expressas nessa pretensa didática.
    Se uma dona de casa tiver uma renda de 2.000 reais, gastar 2.000
    reais com as despesas da casa, mas gastar 200 pagando juros para o
    banco, pode-se dizer que ela está com déficit zero? Claro que não,
    porque na soma final sua dívida aumentou em 200 reais. Mas, na
    doutrina neoliberal, dizem que sim.
    Se essa dona de casa mantiver sua renda em 2.000 reais,gastar
    1900 com as despesas da casa, mas o gerente do seu banco for o
    Roberto Campos Neto e este fizer ela pagar 400 reais com o banco,
    pode-se dizer que sua situação fiscal melhorou? Claro que não,
    porque na soma final sua dívida aumentou em 300 reais. Mas, na
    religião neoliberal, dizem que sim.
    Se essa dona de casa reduzir a despesa da casa para 1.900 reais,
    mas não tiver dinheiro para se alimentar direito, ficar doente e
    perder dias de trabalho, já que é uma trabalhadora informal sem
    previdência, e com isso sua renda cair para 1.600 e ainda que o juro
    fique em 200 reais estaria correto dizer que ela está no caminho
    certo para melhorar sua situação fiscal? Claro que não, porque sua
    dívida aumentou em 500 reais. Mas os economistas do mercado
    financeiro consultados pela Globo News vão adorar.
    E se essa dona de casa passar a gastar 2.100 reais porque fez
    um curso de qualificação e com isso sua renda for para 2.500 e,
    ainda por cima, o gerente do banco for o Guido Mantega e esse
    conseguir reduzir o juro para 100 reais (ficando mal com o dono do
    Banco), alguém dirá que a dona de casa está ficando mais pobre?
    Claro que não, pois na soma final a dívida reduzirá em 300 reais.
    Mas a rede Globo, o dono do Banco e o Congresso pensarão que
    desse jeito a dona de casa ficará sem dívida e acaba o lucro
    financeiro que eles tanto apreciam.

    E dirão: está na hora de derrubar a Presidenta.
    A propaganda neoliberal acostumou a população com um conceito
    pouco usual no mundo. O chamado déficit primário, que na hora da
    divulgação aparece como “déficit público” Perguntem a um
    estadunidense qual o resultado primário dosEUA e ele dirá: não sei o
    que é isso.
    O resultado primário é a receita menos as despesas totais, mas
    excetuando-se destas os gastos com juros. Ocorre que os juros são
    maiores que as despesas de pessoal, maiores que o déficit da
    previdência ou que osgastos com saúde, educação ou Bolsa Família.
    No exemplo da dona de casa, o resultado primário seria o
    resultado da renda menos as despesas da casa, mas sem contar que
    a conta só piora porque os juros não aparecem no extrato bancário.
    A pobre dona de casa economiza, economiza e a dívida só aumenta.
    Aí o gerente do banco diz: a senhora tem que economizar mais. Mas
    não conta quanto foi pago em juros. No entanto, deduz cada centavo
    da conta da dona de casa.
    É como se a despesa com juros não fosse paga pelo poder
    público e pelo imposto de cada um de nós. Infelizmente, tenho que
    informar que são os impostos que pagam os juros, igualzinho a
    qualquer outra despesa.
    Tratam os juros como se eles não existissem, embora sejam
    deduzidos do saldo da conta tanto da dona de casa como da conta
    única da União. É algo com forte viés de verdade religiosa inconteste
    (mas falsa), como se o gasto fiscal primário com saúde, educação,
    salário de servidores, Bolsa Família e previdência fosse uma despesa
    amaldiçoada. Demonizam o gasto público, o qual é sempre
    entendido como a despesa primária, escondendo os juros da conta.

    A despesa pública não financeira é tratada como obra do diabo.
    Já a despesa com juros parece ter sido abençoada por Deus, e por
    isso não precisa nem aparecer na estatística.
    A outra perna da mentira é omitir que a redução de despesas
    tende a implicar em crescimento econômico menor e, portanto, em
    uma receita menor.
    Com menos crescimento, a própria capacidade de pagamento
    da dívida pública diminui. Por isso, é usual em finanças públicas que
    a dívida seja relacionada com o PIB, a relação dívida/PIB.
    Além disso, não é levado em consideração que a tarefa do poder
    público é a melhoria das condições de vida da população e o
    desenvolvimento. Cortes indiscriminados tendem a ter
    consequências dramáticas.
    A falsa simplificação neoliberal conclui, portanto, que basta
    gastar menos que a situação fiscal melhorará e a dívida caia. Ou
    que, se gastarmos mais, a dívida necessariamente vai subir. Isto não
    é verdade, como demonstraremos a seguir.
    a) O período de políticas decrescimento de2003 a 2014
    De 2003 até 2014, fizemos um ensaio desenvolvimentista que,
    embora limitado, conseguiu ganhos expressivos no combate à
    pobreza, nas condições de saúde e educação, criando empregos e
    permitindo um razoável crescimento econômico. Dadas as
    condições, foi uma experiência que teve êxitos econômicos e sociais,
    além de ter aumentado o investimento e a estrutura. No entanto,
    não conseguiu produzir politização e aumento de consciência da
    classe trabalhadora.

    5) DUAS POLÍTICAS ECONÔMICAS, DOIS RESULTADOS

    Nesse período, o PIB⁶ cresceu 50,69% e o PIB per capita cresceu
    33,38%. O desemprego atingiu o menor patamar da série histórica e
    milhões de pessoas foram retiradas da pobreza.
    A média do crescimento do PIB nesse longo período foi de 3,48%.
    Crescer por 12 anos é bem mais consistente e relevante do que
    crescer por um período curto, como no voo da galinha.
    Esses resultados decorrem basicamente de opções governamentais
    de política econômica. De forma alguma posso concordar que o que
    se conseguiu é simplesmente a consequência de uma melhoria nos
    preços das commodities. Esta versão é uma simplificação não
    compatível com os fatos.
    Houve um significativo aumento de renda da população mais
    pobre. O aumento real do salário-mínimo e a redução do
    desemprego para menos da metade aumentaram a massa salarial.
    Benefícios sociais como o bolsa família produziram resultados
    impressionantes na redução da miséria. Em 2003, haviam 61,8
    milhões de pessoas na faixa da miséria⁷, reduzindo-se esse número
    para 25,9 milhões em 2014 (critério antigo). Isso tudo teve efeito
    econômico positivo.
    A demanda agregada cresceu, o que obviamente favoreceu o
    incremento dos investimentos, uma vez que, com a segurança de
    haver demanda, as empresas investem mais. Portanto, as políticas
    sociais e salarias executadas tiveram importante papel no
    crescimento econômico.
    A equação se tornou equilibrada na medida em que houve
    importantes programas de aumento do investimento público e
    privado. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o
    Programa de Investimento em Logística (PIL) e o Minha Casa Minha
    Vida tiveram importante efeito no aumento do investimento. 6.IBGE.
    7.IBGE.
    Restrições de infraestrutura, como no caso de portos, aeroportos e
    rodovias, foram diminuídas substancialmente através de
    investimentos públicos, concessões e mudanças regulatórias.
    O Programa de Sustentação do Investimento (PSI), política
    pública gerenciada pelo BNDES, permitiu que o investimento
    privado pudesse ocorrer mesmo com a Selic elevada, já que a taxa
    de juros do PSI foi extremamente baixa. No etrato mais subsidiado
    chegou a ser de apenas 2% ao ano por todo o prazo do
    financiamento.
    A taxa de investimento⁸ que chegou a estar em 16,6% em 2003,
    subiu para 20,91% em 2013 e caiu para 19,90% em 2014, já sob o
    efeito deletério da Operação Lava Jato. O crescimento da taxa de
    investimento não foi extraordinário, mas ganha relevância se
    lembrarmos que as políticas neoliberais a levaram para apenas
    14,56% em 2017.
    O principal motor do crescimento foram os gastos públicos que
    permitiram políticas de estímulo ao investimento como PAC, o
    Minha Casa Minha Vida, o PIL e o PSI.
    Um registro fundamental é que o crescimento real médio do PIB⁹ de
    3,48% ao ano só foi conseguido com crescimento real médio anual
    da despesa primária¹⁰ de 6,48%, e que o crescimento real total da
    despesa primária nestes 12 anos foi de 113,1%.
    Mais adiante, trataremos da regra fiscal hoje vigente, mas cabe
    adiantar que, na hipótese mais favorável do arcabouço fiscal, só
    seria possível uma despesa menor do que um terço disso. Ou seja,
    sob o arcabouço, o crescimento econômico e o desenvolvimento do
    país estarão obstruídos.
    8.IBGE.
    9.IBGE.
  8. STN.

    Se fossem verdadeiras as teses neoliberais que ouvimos todos
    os dias na grande imprensa, a dívida pública deveria ter crescido de
    2003 até 2014. Afinal, se a despesa primária cresceu em termos reais
    113,1% % a dívida teria que crescer.
    Ocorre que a versão neoliberal esconde o essencial. Esconde
    que a maior parte do crescimento da dívida pública não vem do
    resultado primário, mas sim dos juros, que no período em questão
    não foram tão altos. Esconde que a receita também cresce
    significativamente, em especial quando existe crescimento
    econômico. E esconde que a estabilidade fiscal depende
    basicamente da economia, e que quando esta cresce
    significativamente, a relação Dívida/PIB cai.
    A prova disso é que a dívida não cresceu. Na verdade, caiu pela
    metade. A relação dívida/PIB¹¹ caiu de 59,9% em 2003 para apenas
    32,6% em 2014.
    b) O período de políticas neoliberais de2015 a 2022
    Nos oito anos seguintes (2015-2022) a política econômica foi
    completamente diferente. Por exemplo, já em 2015 houve redução
    do crescimento da despesa primária real¹² total, que foi de 1,87%.
    A partir do golpe, as teses neoliberais passaram a ser explicitamente
    adotadas, com a reforma trabalhista, a maior precarização do
    trabalho, a adoção do teto de gastos, as privatizações, a política de
    preços, desinvestimento e distribuição predatória de dividendos da
    Petrobras, entre outras medidas.
    A economia estagnou de forma dramática. De 2015 até 2022, ou seja,
    em oito anos, o PIB¹³ cresceu acumuladamente apenas 1,64%, o que
    significa a ridícula taxa de 0,2% ao ano. Nesse período o PIB per
    capita teve uma queda de 4,54%. 11. BCB.
  9. STN.
    13.IBGE.

    Ou seja, ao invés de termos crescido nossa renda média, ela caiu em quase 5%. O desemprego e a
    situação social tornaram-se bem mais graves. A indústria, que já não
    vinha muito bem, deteriorou-se ainda mais.
    A taxa de investimento no ano de 2014 havia sido de 19,9%.Em
    2022, a taxa de investimento foi de apenas 17,59%. No último
    trimestre de 2022, a dificuldade se acentuou e a taxa de
    investimento foi excepcionalmente baixa, de 14,9%.
    Ocorreram mudanças terríveis nas condições e processos de
    trabalho. À evolução negativa da qualidade do trabalho esperada
    para um mundo do trabalho cada vez mais (des)organizado pelo
    neoliberalismo somou-se a reforma trabalhista, os efeitos da
    pandemia e muitas medidas de aumento da exploração e da
    informalidade.
    Esse preço social decorreu da opção pela austeridade. Nesses
    oito anos, a despesa primária real¹⁴ (IPCA) teve um crescimento
    anual de apenas 0,89%. Este austericídio explica não apenas o
    desastre social, mas também o desastre econômico. O PIB¹⁵ teve um
    crescimento de apenas 0,2% ao ano, ou 1,64% nos oito anos.
    De outra parte, a despesa primária total cresceu apenas 7,3%
    ao longo de oito longos e terríveis anos. Como a despesa primária
    foi contida, a escola neoliberal deveria nos garantir que a dívida
    pública iria cair. Mas mais uma vez isso não ocorreu, uma vez que a
    versão neoliberal esconde o essencial: o efeito da receita, dos juros
    e do PIB na dívida pública.
    A receita¹⁶ primária real líquida cresceu apenas 9,1% de 2014 a
  10. Isso significa que não adianta nada diminuir as despesas se o
    resultado disso for a recessão e o baixo crescimento da receita.
    Igualmente relevante é a questão dos juros. Em valores nominais, o
    Brasil pagou 3,4 trilhões de reais¹⁷ em juros nestes oito anos. Ora,
    esse número é três vezes superior ao déficit¹⁸ primário do período,
    que foi de 1,1 trilhão.
  11. STN.
    15.IBGE.
  12. SRF.
  13. BCB.
  14. BCB.
    Portanto, qualquer tentativa de discutir a dívida pública culpando
    exclusivamente a despesa primária ou o resultado primário sem
    considerar junto os juros e o crescimento econômico não passam de
    uma falsificação desonesta.
    A prova, mais uma vez, são os números: mesmo com todo o
    sucateamento e piora dos serviços públicos causado pelo teto de
    gastos, a relação dívida/PIB¹⁹ cresceu dos 32,6% em 2014 para
    56,13% em 2022.
    A vitória do Presidente Lula em 2022 ocorreu por uma diferença
    pequena, em um quadro de radicalização e cristalização de campos
    com pouquíssima racionalidade. A extrema direita acostumou seus
    seguidores com o uso de argumentos inverídicos, do medo, da
    teologia do domínio e, principalmente, com a manipulação do
    subconsciente.
    Nesse cenário, que ainda persiste, é necessária uma mudança
    radical das condições de vida da população para não perdermos
    nenhum estrato da base social que votou no Presidente Lula.
    Podemos entrar no campo adversário gradualmente, melhorando as
    condições de vida dos estratos médios e racionalizando o debate,
    hoje no campo do subconsciente. Devemos disputar a política e
    incentivar a organização popular com a entrada objetiva das redes de
    proteção social nas periferias, inclusive para neutralizar os
    empresários da fé. São várias ações, mas todas elas exigem um
    estado forte e com posicionamento político definido.
    Do ponto de vista econômico, isso requer condições como
    crescimento, emprego de qualidade, renda, combate à miséria,
    serviços públicos eficazes e cuidados ambientais, dentre outras.
    Dificilmente essas condições podem ser atingidas sem aumento do
    gasto público.
  15. BCB.

    6) O TERCEIRO MANDATO DO PRESIDENTE LULA

    No ano de 2023, dada a PEC de Transição e outras
    excepcionalidades, ainda sem a vigência do novo arcabouço fiscal, o
    crescimento real da despesa primária²⁰ elevou-se em
    extraordinários 12,45%. Pouco mais de um terço disso deve-se ao
    pagamento extraordinário de precatórios, uma monstruosa
    pedalada de 90 bilhões, feita pelo governo Bolsonaro. Ainda que se
    retire os precatórios extraordinários, a despesa teve um incremento
    muito expressivo. A despesa pública robusta, somada a uma safra
    excepcional, permitiu que o PIB crescesse 2,91% em 2023.
    Como o pagamento extraordinário de precatórios foi no final de
    dezembro, este tem efeitos econômicos basicamente nos primeiros
    meses de 2024. Além disso, foram antecipados mais 30 bilhões em
    precatórios no mês de fevereiro de 2024. Essas ações dão uma
    esperança de que o governo tem consciência de quão recessivo é o
    arcabouço e tem procurado brechas para diminuir esse efeito. Na
    mesma linha, deve-se saudar a linha correta e ofensiva do Governo
    Lula no salvamento do Rio Grande do Sul. Como são créditos
    extraordinários, não contam para efeitos do teto do arcabouço,
    permitindo-se com isso uma ação humanitária absolutamente
    imprescindível, além de positiva para a economia.
    Mas, infelizmente, o efeito dessas medidas é residual e de curto
    prazo. Seria necessária uma estratégia bem mais ousada e clara de
    crescimento de longo prazo. O arcabouço fiscal sinaliza exatamente
    o contrário, e por isso é necessária uma análise um pouco mais
    detalhada de suas características.
    a) O arcabouço fiscalé um erro estratégico
    O teto de gastos do governo Temer foi uma excrescência tão
    grande que não foi cumprido em nenhum ano após sua edição. Em
    todos eles, houve exceções. Não era necessário, e não fazia o menor
  16. STN.

    sentido econômico aprovar regras ainda mais draconianas do que a
    Lei de Responsabilidade Fiscal. Não havia e não há nenhum motivo
    para, depois de anos de experiência da LRF nos quais nenhum risco
    fiscal relevante ocorreu, substituí-la por algo mais draconiano.
    O programa de governo do Presidente eleito previa simplesmente
    a extinção desse teto de gastos. Mas, infelizmente, não foi o que
    ocorreu. Já na PEC de transição, criou-se o compromisso de que o
    teto de gastos só terminaria com a sua substituição por um novo
    arcabouço fiscal.
    Esse primeiro recuo poderia não ter consequências tão graves se
    a substituição se desse por algo mais flexível, como é a Lei de
    Responsabilidade Fiscal. Embora esta tenha grandes defeitos, tem a
    virtude de permitir que a cada ano o governo proponha sua
    estratégia fiscal a partir do seu programa e daquilo que entende ser
    o melhor para o país. O que basicamente a LRF faz é obrigar o
    cumprimento do que estiver na LDO, inclusive permitindo que ela
    seja alterada ao longo do ano.
    O mercado financeiro especulativo sempre pressiona por mais e
    mais concessões, mas isso não significa que devemos fazê-las.
    Entregar tudo ao inimigo já nos primeiros meses de governo é uma
    tática bastante ineficaz, especialmente se a consequência da
    concessão for perder força ao longo do tempo, por implicar em um
    governo que não consegue efetivar seu programa.
    Da mesma forma, o Congresso sempre pressiona por mais e mais
    emendas. Mas, uma vez que o governo cedeu bastante nisso, tinha
    que ter exigido em troca uma legislação fiscal que atendesse a seu
    programa de governo.
    O denominado novo arcabouço fiscal é uma lei complementar
    que substitui o teto de gastos do governo Temer, que estabelecia que
    crescimento da despesa era limitado a inflação, mesmo que o PIB e a
    receita crescessem bem mais do que isso.
    O arcabouço mantém o teto de gastos limitado a inflação, mas
    com uma pequena flexibilidade. A despesa poderá crescer em até
    70% da receita, mas com uma segunda trava que é um mínimo de
    0,6% e um máximo de 2,5% de crescimento da despesa real.
    Ora, no período de políticas de crescimento entre 2003 até 2014,
    o crescimento da despesa real²¹ foi de 6,47% ao ano, muito acima
    do valor máximo do arcabouço. Em 2023, o crescimento da despesa
    foi de 12,45%, mais do que seria permitido pelo arcabouço por um
    mandato inteiro, ainda assim na hipótese mais favorável. Ou seja, o
    arcabouço fiscal é fortemente recessivo.
    Nos anos de política neoliberais, a despesa real cresceu a uma taxa
    de 0,89%, portanto mais do que o mínimo do arcabouço que é de
    0,6%.
    Trata-se, portanto, de uma flexibilidade minúscula, que impede
    qualquer política de incentivo ao crescimento e obstrui a
    continuidade de políticas sociais importantíssima. Além disso,
    resulta em que o investimento (real) se situe em um patamar
    recessivo, que é apenas em torno de 60% do realizado em 2014,
    mais de oito anos depois. Da mesma forma, as políticas de
    incremento do investimento como o PAC e o Minha Casa Minha Vida
    serão muito comprometidas com o arcabouço.
    Obviamente, que nessas condições é irreal chamar o arcabouço
    de anticíclico como o governo tentou alegar. Anticíclico significa
    antirrecessão.E o arcabouço fiscal é altamente recessivo.
    Na prática, o arcabouço determina que, ao longo dos anos, o
    resultado primário irá sempre aumentar, porque apenas uma parte
    da receita será gasta. Como se o poder público tivesse como único
    objetivo ter lucro, e um lucro sempre crescente.
  17. STN.

    No caso da saúde, da educação e do salário-mínimo o arcabouço
    implica em uma contradição. Como essas despesas têm regras
    próprias de crescimento, que são superiores ao previsto no
    arcabouço, no longo prazo há um conflito. A saúde e a educação têm
    uma regra constitucional que estabelece que estas despesas devem
    ser corrigidas conforme a receita. Como o arcabouço só permite que
    a despesa se eleve em uma parte do que cresce a receita, temos um
    problema. Pelo arcabouço, a despesa só pode subir em 70% do que
    aumentar a receita, e ainda por cima submetida a uma segunda trava
    que é um aumento máximo de 2,5%, mesmo que a receita cresça o
    dobro ou o triplo que isso.
    Já o salário-mínimo deve ser corrigido pelo PIB, e como o PIB
    tende a crescer mais do que 70% da receita e, às vezes, mais do que
    2,5% há uma incompatibilidade.
    A economia é uma ciência social. Mas a matemática não. É uma
    ciência exata.E ela nosgarante que a saúde, a educação e o aumento
    real do salário-mínimo são incompatíveis com o arcabouço fiscal.
    Quando da votação do arcabouço, o governo foi alertado de que era
    necessário retirar saúde, educação, salário-mínimo e investimentos
    do arcabouço. Infelizmente, o alerta não foi ouvido.
    O resultado deste grave equívoco é que agora a especulação
    financeira quer retirar os pisos da saúde e educação da Constituição
    e desvincular a previdência do salário-mínimo. E o governo ficou
    completamente tolhido em encaminhar o crescimento econômico
    através da indução do poder público. Os investimentos ficam sem
    fonte de financiamento e as políticas sociais contidas, frustrando a
    base social que votou no Presidente Lula.
    Um gravíssimo problema criado pelo arcabouço e pela sanha em
    agradar à mídia a serviço da especulação financeira.

    b)A construção de uma correlação de forças mais favorável
    O principal equívoco na estratégia utilizada pelo governo para
    tentar melhorar a correlação de forças é a falsa ideia de que o
    mercado financeiro pode apoiar o governo ou auxiliar na
    governabilidade.
    A especulação financeira e seus aliados na grande mídia
    corporativa podem até apoiar os integrantes da área econômica que
    façam o jogo neoliberal. Mas isso nem de longe significa estar
    comprometido com o governo.
    Quando a Presidenta Dilma nomeou uma área econômica de
    viés neoliberal para seu segundo mandato, o mercado financeiro
    especulativo falou que se tratava de um time dos sonhos. O time dos
    sonhos levou a popularidade da Presidenta para o chão. Um ano,
    três meses e 17 dias depois a Presidenta foi deposta. A história
    ensina. Quem não aprende com ela tende a revivê-la como farsa ou
    tragédia.
    A adoção de uma conciliação com a especulação financeira e o
    neoliberalismo faz com que as políticas de crescimento e de
    atendimento das demandas sociais fiquem comprometidas. Não há
    convivência possível entre o arcabouço fiscal e as políticas de
    educação, saúde e o salário-mínimo. Não há convivência possível
    entre o arcabouço fiscal e o investimento público necessário para o
    crescimento. Não há convivência possível entre o arcabouço fiscal e
    o programa do Presidente Lula.
    A consequência é o risco de perder parte da base social que
    elegeu o Presidente. Ainda que a imprensa corporativa
    conservadora nos apoiasse (hipótese irreal), o resultado seria
    negativo. É sempre importante ter presente que se trata de bases
    sociais cristalizadas em campos opostos. Se nossa base se
    desesperançar, deixará de nos apoiar ativamente, provavelmente
    irá diminuir sua presença nas eleições, deixando de atuar pelo
    convencimento da sua base de atuação e aumentando a abstenção.
    Mas não ganharemos nada no outro lado, pois um bolsominion
    (ainda que não seja terraplanista) não passará a nos apoiar só
    porque o mercado financeiro especulativo gosta da área econômica.
    Não há a menor chance disso.
    A receita para uma melhoria da correlação de forças deve ser
    completamente diferente.
    Primeiro, é preciso coerência com o programa eleito. Não se
    pode trair a esperança que suscitamos. Portanto, devemos governar
    para a nossa base, ampliando-a a partir dos pressupostos
    programáticos históricos do Presidente e do PT e reiterados na
    vitoriosa campanha de 2022. Se dissemos que vamos botar o pobre
    no orçamento e o rico no imposto de renda, é isso que devemos
    fazer.
    Os aliados preferenciais estão no campo dos trabalhadores, com
    especial atenção aos setores médios que melhoraram de vida, mas
    não atribuem esta melhora as políticas públicas.
    A retomada de emprego com qualidade pode dar ao hoje
    enfraquecido movimento sindical alguma chance de fortalecimento.
    Corolário disso é o fim da reforma trabalhista. Mas, para fazer isso é
    necessário um forte programa de crescimento econômico e
    investimentos públicos. O nível de investimento público e
    financiamento ao investimento privado hoje em execução não
    garante isso. É necessária uma dose de ação indutiva muito maior,
    que altere a atual ritmo da economia. Obviamente, que isso significa
    alocação de recursos compatíveis com um choque de investimentos.
    O crescente contingente de trabalhadores por conta própria ou
    sem carteira precisa ser diminuído e substituído pelo emprego
    formal, apesar da tendência oposta do capitalismo neoliberal. Para
    se contrapor às tendências danosas à sociedade.
    Mas não é só isto.É necessário melhorar em muito as condições
    dos trabalhadores por conta própria (muito mais do que o tímido e
    talvez contraproducente projeto já produzido), sob pena de
    continuarmos a ver neles um exército de manobra prioritário do
    bolsonarismo.
    A faixa de trabalhadores de renda média já esteve bem mais
    para o nosso lado do que nas últimas eleições. Devemos retomar
    nosso espaço com esta faixa de trabalhadores. Um exemplo é o
    aumento da isenção do Imposto de Renda para as menores faixas
    de renda. Há um compromisso do Presidente Lula nesse sentido que
    já teve uma primeira fase cumprida. Por que não a ampliar
    imediatamente, com a devida atenção para a construção política da
    isenção? Essa ação não interfere com o arcabouço fiscal e ajuda em
    muito a economia. Sim, o mercado financeiro não vai gostar. Mas o
    povo vai.
    A economia solidária é uma aliada importante tanto para
    combater o desemprego e melhorar a economia como para a
    politização dos processos de melhoria econômica. O Minha Casa
    Minha Vida poderia ser utilizado com muito mais eficiência
    financeira, ganhos sociais, e auxiliar na organização popular, se
    fosse conduzido para essa via. Da mesma forma, compras
    governamentais, recuperação de catástrofes, cozinhas solidárias,
    lavanderias solidárias, etc.
    Há inúmeros exemplos do que se poderia fazer. Mas até o
    momento não se vê uma movimentação objetiva do governo nesse
    sentido. Recursos robustos e uma política programaticamente clara
    seriam capazes de melhorar a correlação de forças nas periferias.

    A pequena e média empresa sobrevivem com margens pequenas
    e grandes dificuldades, sendo asfixiadas pelo sistema financeiro.
    Como recebe pouco apoio do poder público é presa fácil do discurso
    da extrema direita “contra tudo que está aí”, contra as leis
    trabalhistas e contra a carga tributária. É perfeitamente factível
    integrá-las a um projeto de desenvolvimento. Mas também aí existe
    a necessidade de recursos robustos e programas bem desenvolvidos.
    Podemos tornar as empresas do setor nossas aliadas, mas não com a
    timidez com que agimos até aqui nessa área.
    A economia real, em especial a indústria e as empresas de alta
    tecnologia podem e devem ser, em parte, aliadas de um projeto
    estratégico. Com a atual política monetária e fiscal do Brasil, isso é
    impossível.
    Um exemplo de boa interação é o caso da Embraer. A Embraer é
    a terceira maior empresa de aviões do mundo, portanto uma grande
    empresa. Em parceria com o governo federal, desenvolveu projetos
    de alta tecnologia e alto valor agregado como o KC-390 e outros
    projetos na área de defesa, satélites e aviação. É um indiscutível caso
    de sucesso e de elevação tecnológica fundamental no país.
    É um mero exemplo de que podemos ter aliados estratégicos na
    indústria, que não entrem em conflito com nosso programa. Mas
    enquanto a principal aliança estratégica da política econômica
    governamental for com o mercado financeiro, não poderemos fazer
    nada disso na dimensão hoje exigida pela economia.
    A questão central é que não se pode fazer aliança com interesses
    antagônicos aos da nossa base. Isso não significa que não devemos
    ampliar nosso leque e incluir setores empresariais, mesmo grandes.
    Mas existe uma diferença fundamental entre se aliar a especulação
    financeira ou, como exemplo, se aliar à indústria. Mesmo que tenha
    contradições internas, a indústria pode ter interesse na ampliação de
    empregos e no crescimento econômico. Não temos o mesmo
    programa, mas podemos fazer alianças táticas porque as ações
    governamentais podem ter pontos em comum com o interesse da
    indústria. Como a redução dos juros, por exemplo. Evidentemente
    que não se trata de defender benesses sem contrapartida, mas da
    possibilidade real de alinhar interesses e ter uma ação comum com
    ganho para o país e seus trabalhadores.
    Ocorre que a especulação financeira só tem interesse em ganhos
    financeiros. Não ganha com o emprego ou com o crescimento
    econômico. Não há nenhuma possibilidade de defendermos ações
    similares para o setor público. Logo, qualquer aliança ou conciliação
    com esses setores só ocorre se entregarmos a eles nossa alma, com
    enormes perdas para nossa base social e um desastre político
    anunciado.
    A questão tributária pode ser um bom exemplo de equívocos
    nas alianças. Passados um ano e meio de governo, houve poucos
    projetos tributários sobre o setor financeiro. Deve-se reconhecer
    que a taxação dos fundos exclusivos foi uma medida correta, mas é
    pouco, face às necessidades. No entanto, houve muitos conflitos
    tributários com a economia real.
    O Presidente Lula tem criticado, corretamente, os juros altos.
    Estes implicaram em um pagamento de 776 bilhões de reais ao
    mercado financeiro pelos cofres públicos. Seria possível recuperar
    parte importante do que o governo paga para a especulação através
    da tributação. O IOF, as reduções de alíquotas e isenções existentes
    para vários tipos de aplicação financeira, as próprias alíquotas do IR
    e CSLL poderiam servir facilmente para isso.
    Não há exemplo melhor para ser colocado no imposto de renda
    do que o especulador financeiro. Sempre lembrando que a alíquota
    do ganho financeiro é muito menor do que a do trabalho
    assalariado. Claro que existem muitas outras áreas de concentração
    de riqueza e que tem tributação privilegiada. Um exemplo é a
    agricultura empresarial.
    A taxação dos super ricos passa necessariamente por taxar o local
    onde mais se concentra a riqueza improdutiva: no mercado
    financeiro. Mas o governo tem sido demasiadamente comedido
    quando se trata de enfrentamentos com o mercado financeiro.
    É um erro inclusive na relação com o congresso. Não é verdadeiro
    que apenas o setor financeiro tenha influência sobre o congresso, e
    que nada contra seus interesses possa ser aprovado. A economia real
    também pode influenciar e até nos ajudar. Mas sempre optamos por
    preservar o setor financeiro, que é justamente nosso maior
    adversário.
    Além disso, não há estímulo à organização popular, que poderia
    ser conseguida via participação popular nas decisões
    governamentais. Sem contraponto, o centrão e a extrema direita
    pintam e bordam e vamos gradualmente perdendo nossa força
    política.
    A popularidade do Presidente é o principal fator de indução para
    o Governo ter apoio no Congresso. E a popularidade do governo
    depende em muito de uma ação pública robusta, com crescimento
    econômico, emprego e programas sociais eficazes.
    Voltar as costas para nossa base para atender a pressão da mídia
    e do mercado financeiro é um erro já cometido. Sabemos as
    consequências.

    www.democraciasocialista.org.br

    REVISTA DEMOCRACIA SOCIALISTA | NÚMERO 13 | JUNHO 2024

ARNO AUGUSTIN FILHO

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