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As desigualdades salariais e as suas múltiplas expressões | Marilane Oliveira Teixeira

A diferença salarial baseada no gênero é um dos mais importantes indicadores estatísticos da situação econômica das mulheres. Contudo, não há uma explicação única para a permanência das desigualdades salariais entre os sexos, assim como não há uma medida única para combatê-las, mas um conjunto de ações e iniciativas que envolvem tanto as instituições públicas, quanto a sociedade. O tema das desigualdades salariais na maioria das vezes é visto sob uma única perspectiva: as desigualdades salariais são resultado das diferenças de rendimento entre mulheres e homens no ambiente de trabalho para as mesmas funções/ocupações. Os dados recentes divulgados pelo Dieese, com base na PNADC do 3ºT de 2022, indicavam que o rendimento médio mensal das mulheres ocupadas era 21% menor do que o dos homens, aqui considera todo tipo de ocupação e inclusive a forma de inserção se formal ou informal, é importante ressaltar que esse diferencial praticamente se manteve idêntico na última década.

E por serem dados agregados, a conclusão a que se pode chegar é de que as mulheres estão concentradas em atividades profissionais ou ocupações de menor remuneração, mais precárias. Esse diferencial revela que as mulheres, em média, recebem salários inferiores aos rendimentos masculinos, essa diferença pode ser mais acentuada dependendo de como os dados se apresentam, se por ocupações, setores de atividade, inserção ocupacional e por perfil se negras, brancas, mais escolarizadas, por região, faixa etária entre outras tantas variáveis.

Mas o que os números revelam e interessa efetivamente é que as mulheres estão em trabalhos que remuneram menos, trabalhos pouco valorizados e reconhecidos socialmente, seja pelas características da ocupação ou pela sua condição de inserção. O desafio é conectar essa dinâmica com o trabalho de reprodução social, ou seja, mesmo sendo mais escolarizadas e/ou qualificadas elas se inserem em piores condições uma vez que a maior parte das mulheres não tem acesso às políticas públicas essenciais que permitem a organização da vida em sociedade, como o acesso a creche e escolas em tempo integral, casas de acolhimento de idosos, postos de saúde, hospitais, espaços de inclusão social para pessoas com deficiência. A organização da vida em sociedade depende de como esses serviços públicos são acessíveis e distribuídos para a maioria da população, especialmente para as mulheres.

As mulheres estão imersas em condições de profunda desigualdade e se integram no mundo do trabalho de forma desigual dadas as condições em que se realiza a socialização do trabalho doméstico e de cuidados no âmbito das famílias, assim como a sua inserção ainda se dá de forma predominante em ocupações com fortes estereótipos de gênero que segrega às mulheres a determinados nichos ocupacionais que reforçam o seu papel como donas de casa e cuidadoras, nas áreas de saúde, educação e serviços sociais cujas diferenças salariais correspondem a menos 32% para as mulheres, elas representam 75% das pessoas ocupadas nestes três segmentos. (Dieese, 20232). E mesmo os serviços domésticos em que as mulheres são absoluta maioria, os poucos homens inseridos nesta ocupação recebem salários superiores.

Contudo, tem-se uma tendência a olhar as diferenças sob um único ângulo a partir da prática de muitos empregadores de contratarem mulheres com salários menores, na comparação com os homens, mesmo para exercer as mesmas funções ou ocupações. Embora ela esteja presente na realidade do mundo do mundo não é a única forma ou expressão dessas desigualdades.

A OIT define igualdade salarial como sendo salário igual para realizar um trabalho igual ou similar, ou um trabalho completamente diferente, mas, com base em critérios objetivos, de igual valor. Esse reconhecimento sobre a igualdade de remuneração para o mesmo tipo de trabalho ou trabalho de igual valor está presente em duas convenções internacionais: a Convenção n. 100 de 1951 e a Convenção n. 111 de 1958, ambas ratificadas pelo Brasil.

Embora ambas as convenções tenham sido ratificadas e incorporadas nas normas constitucionais do Brasil, como a Constituição Federal, a CLT e na maior parte dos instrumentos normativos (acordos e convenções coletivas de trabalho), entretanto, não há mecanismos efetivos que possam avaliar a sua eficácia Neste sentido, o projeto de lei
encaminhado ao Congresso pelo governo Lula no dia 08 de março de 2023 é uma iniciativa importante ao ampliar as penalidades para as empresas que praticam discriminação no ambiente de trabalho. É importante destacar que o projeto se aplica apenas para as empresas formalizadas e com mais de 20 trabalhadores/as. Relatos envolvendo trabalhadoras que são contratadas como auxiliar de linha de produção e desenvolvem outras funções ou tem registro na carteira profissional distinto da sua ocupação/função são recorrentes e se espera que a Lei chegue até elas. A segregação ocupacional também se manifesta de forma desfavorável às mulheres em situações concretas, a exemplo do comércio em que as mulheres são designadas para o trabalho de vendedoras em departamentos com itens de menor valor agregado, diferentemente dos homens que são destinados os departamentos com itens de maior valor agregado e, portanto, recebem comissões mais altas. Trata-se de aspectos associados as condições de trabalho que muitas vezes passam despercebidas ou tratadas com naturalidade Identificar a existência de discriminação com base no trabalho de igual valor, conforme está previsto na convenção n.100 da OIT, é bastante complexo, uma vez que abrange não só os casos em que ambos os sexos executam trabalhos iguais ou similares, mas também a situação mais frequente em que, embora realizem trabalhos diferentes, ou com conteúdo diferente, envolvendo diferentes responsabilidades, competências ou qualificações, realizados em condições diferentes, são trabalhos de igual valor.

A dificuldade de compreensão sobre a diferença entre os conceitos de salário igual por trabalho igual ou similar e de salário igual para trabalho de igual valor; assim como a falta de clareza sobre os elementos da remuneração que se considera para a sua avaliação; e a metodologia que se pode utilizar para avaliar objetivamente os postos de trabalho são importantes fatores que contribuem para a manutenção das desigualdades salariais. Nesse sentido, a forma como se valoriza o emprego reflete concepções históricas de valor, incluindo os diferentes valores atribuídos a diferentes tipos de trabalho e o viés de gênero incorporado na definição da remuneração mais adequada aquele trabalho.

As justificativas mais frequentes que reforçam a desigualdade salarial entre os sexos estão respaldadas em argumentos sobre os custos maiores para contratação de mulheres. Essas teses opõem o trabalho remunerado às tarefas de cuidado, com alegações que se concentram no papel das mulheres na família. Entretanto, raramente se faz referência ao salário das mulheres com o mesmo sentido que é atribuído aos homens, como o sustento da família. No Brasil a maioria dos domicílios são chefiados por mulheres, 50,8%, tinham a presença das mulheres como principais responsáveis o que representa 38,1 milhões de famílias, dados do 3ºT de 2022. (Dieese, 2023).

Há uma grande dificuldade em divulgar dados confiáveis sobre o tamanho da diferença salarial entre mulheres e homens e até mesmo em comparar médias quando a taxa de participação das mulheres é muito baixa em comparação à dos homens, uma vez que poderiam ser as mulheres com maior escolaridade as que aí trabalham, a exemplo do setor da construção civil em que as mulheres representam um percentual muito pequeno e estão nos postos mais bem remunerados. Segundo dados da RAIS de 2021, as mulheres na construção civil representavam 10% e recebiam, em média, 107% do salário masculino.

Embora não haja um consenso relativamente difundido sobre como a desigualdade salarial deve ser medida, é certo que essa realidade pouco se alterou mesmo com a elevação da escolaridade das mulheres. Por outro lado, quando se observa um declínio dessa diferença, a exemplo de alguns países verifica-se que essa redução na desigualdade foi devido a uma queda do salário ou da mudança no perfil das ocupações dos homens.

Mesmo quando se trata de áreas que surgiram em decorrência das novas tecnologias de informação e comunicação, as mulheres continuam sendo minoria.

Já a amplitude da diferença salarial varia de acordo com o setor, a ocupação, a escolaridade e o tempo de serviço. A concentração em uma determinada categoria profissional pode ser um fator de redução dos salários que, por sua vez, indica uma maior concentração de mulheres em postos de trabalho de baixa remuneração, expressando uma relação de causalidade: as mulheres são atraídas por empregos com menor remuneração ou a sua presença em determinados setores desvaloriza o próprio emprego. Se considerarmos o conceito de divisão sexual de trabalho, pode-se considerar que as ocupações associadas ao sexo feminino serão menos valorizadas socialmente.

As teorias mais conservadoras tendem a considerar a baixa escolaridade e a ausência de experiência profissional como os fatores mais relevantes para explicar as diferenças salariais, contudo, é importante destacar que, para os homens, a experiência profissional está associada a uma trajetória profissional sem percalços e interrupções, o que não se sucede com as mulheres, por serem as primeiras a enfrentar o desemprego em tempos de crise, assim como a informalidade em mercados de trabalho poucos estruturados, ou a saída do mercado de trabalho em função da maternidade.

A segregação ocupacional é um fator de extrema relevância para explicar as diferenças salariais. Por estarem em profissões ou ocupações que remuneram menos ou porque é um nicho feminino, as mulheres recebem, em média, salários inferiores aos do sexo masculino. Contribui para uma menor remuneração das mulheres o trabalho parcial, a
dimensão da empresa e a densidade sindical (empresas de pequeno porte e menor nível de sindicalização).

A discriminação salarial também pode ocorrer quando mulheres e homens têm postos de trabalho diferentes, mas de igual valor, e são remunerados de forma diferente. Isso ocorre porque são atribuídas competências,  responsabilidades e condições de trabalho associados ao sexo. Essa situação pode ser melhor compreendida comparando-se dois profissionais de uma unidade hospitalar, como atendente de enfermagem e condutor dos enfermos (macas, cadeiras de roda, outros). No geral, esse profissional masculino recebe salário superior ao das atendentes de enfermagem. Essa discriminação se explica porque o posto de trabalho carrega um viés de gênero.

Portanto, o mercado de trabalho é uma das muitas dimensões em que as práticas discriminatórias se manifestam no interior das sociedades. A segregação é o resultado da forma como as mulheres se inserem no mundo produtivo e, mesmo quando parte dos empregadores manifesta resistência à contratação de mulheres para determinadas ocupações ou cargos, a sua decisão estará sendo orientada por uma compreensão e uma naturalização dos papéis sociais atribuídos aos sexos.

Os estudos mostram que a segregação é um componente fundamental para a interpretação das diferenças salariais e que o objetivo da igualdade está em valorizar e remunerar igualmente mulheres e homens, independentemente do lugar que ocupam no mercado de trabalho.

Entretanto, todos esses aspectos que tratam das desigualdades salariais estão imbricados com o tema da reprodução social, neste sentido, o acesso desigual de mulheres pobres e negras no mercado de trabalho se dá por conta das responsabilidades no âmbito do espaço da família. Elas se inserem em trabalhos precários, por conta própria, flexíveis, com jornada de reduzida ou informais para que possam administrar o tempo dedicado aos cuidados.

Portanto, a reprodução social como tarefa exclusiva das mulheres é uma das principais causas das diferenças de salários e da discriminação associadas às mulheres. Em torno de 43% das mulheres recebiam até um salário mínimo no 3ºT de 2022 e, entre as mulheres negras, cresce para 52,7% e 35% não contribuíam para a previdência social
(Dieese, 2023) o que demonstra o forte impacto que uma política de valorização do salário mínimo ademais com a construção de um sistema de proteção social representam para a vida de milhões de mulheres, mais de 20,5 milhões seriam beneficiadas. É fundamental o papel que as políticas públicas cumprem na organização da vida em sociedade e no bem-estar das mulheres.

Marilane Oliveira Teixeira é Economista, doutora em desenvolvimento econômico e social, professora e pesquisadora do CESIT-IE da UNICAMP, professora colaboradora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais do IFCH, membra da Rede Brasileira de Economia Feminista – REBEF e assessora sindical.

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