Aproxima-se mais um ano eleitoral, agora as municipais. As regras do jogo são importantes pois muitas vezes nos países democráticos elas podem ser mais conservadoras ou mais progressistas. Portanto, podem ser mais ou menos democráticas.
Numa sociedade como a nossa,com experiência histórica mínima de conquistas de direitos civis e direitos políticos, a questão das regras, das leis eleitorais, torna-se ainda mais crucial nesta quadra da história brasileira.
As mudanças recentes no sistema eleitoral são um exemplo disso. Ficaram restritas ao Congresso, sem envolvimento da cidadania, da soberania popular de onde deveria brotar o debate e o conteúdo das alterações realizadas. Nem os partidos da esquerda, do campo popular, tiveram a iniciativa de publicizar, de mobilizar seus filiados e eleitores.
Em setembro de 2017, uma Emenda Constitucional foi aprovada com grande maioria, quase 400 votos na Câmara, proibindo coligações partidárias nas eleições legislativas, quebrando uma tradição que vinha da experiência pós 1946 até o golpe cívico-militar de 1964 e retomada nas eleições de 1986 e na nova Constituição de 1988 até as eleições gerais de 2018. Durante a ditadura, o regime foi pródigo em criar “regras” pouco democráticas. Em 1965 fechou os partidos políticos e impôs o bipartidarismo (Arena e MDB), acabou com eleições diretas para Presidente e Governador, inventou o “voto vinculado”, o senador biônico, a cassação de eleitos, a prisão preventiva, etc. Esse modelo casuístico manteve-se até 1982, quando voltamos a um pluripartidarismo, com “voto vinculado” para garantir a transição “lenta, gradual e segura” para a democracia.
O Congresso Constituinte de 1988, formado por deputados e senadores e não constituintes exclusivos, passou batido sobre as instituições, mantendo-as quase intactas, na busca “da conquista e garantia de direitos”.
O sistema eleitoral manteve o anacrônico voto nominal, incorporaram o senador “biônico”, a desproporcionalidade na representação da cidadania e um bicameralismo com poderes idênticos, mas eleitos com processos distintos. O esdrúxulo “piso” e “teto” nos Estados para a composição da Câmara Federal, independente do número de habitantes, virou banal e se naturalizou como algo normal na democracia brasileira.
A outra medida na reforma de 2017, junto com a proibição das coligações proporcionais, foi a criação de uma cláusula de desempenho crescente, exigindo que a partir da eleição de 2018 os Partidos superassem o mínimo de 1,5% dos votos na Câmara Federal.
O não cumprimento significaria perda de Fundo Partidário e espaços eleitorais gratuitos no rádio e TV. A cláusula seria crescente, 2% em 2022, 2,5% em 2026 e 3% em 2030.
As razões dessas medidas não foram resultado de um amplo debate e mobilização na sociedade, nem na base dos partidos, com uma ou outra honrosa exceção. Como se alterações dessa dimensão não tivessem grandes consequências nos resultados dessas mudanças para a democracia. De novo, para torná-la mais democrática ou menos democrática. Isto é, que classes ou setores sociais beneficiam-se com isso?
Vivíamos o golpe parlamentar que cassou a presidenta Dilma Rousseff, o auge da criminalização da política e dos partidos de esquerda, da intolerância e do preconceito elevados à categoria de argumentos na política.
A fragmentação dos Partidos impulsionada pela farra indiscriminada das coligações eleitorais sem princípios e sem coerência programática, o predomínio do individualismo do voto nominal e a liberalidade dos Tribunais nos registros provisórios para novos partidos, ávidos dos recursos do Fundo Partidário e de negócios com os espaços de rádio e TV nas campanhas, conduziam a uma ingovernabilidade congressual. O país já tinha 35 partidos com representação na Câmara Federal e era recordista mundial em número de coligações distintas e incoerentes com suas designações programáticas.
Sabemos como se deu o processo eleitoral de 2018. O candidato favorito preso através de um processo fraudulento, com a cumplicidade militante dos meios de comunicação que constrangiam a opinião pública e tribunais onde os acusados já chegavam condenados. A farsa começou a cair quando a toga e os juramentos foram abandonados e trocados por mandatos no governo golpista. Processo que culminou com a tragédia de 8 de janeiro de 2023.
No entanto, o preço pago pelo país na destruição de empresas e das estruturas públicas é incomensurável e levará muito tempo em sua reconstrução.
A consequência das mudanças eleitorais de 2017 já apareceu nos resultados de 2018. O fim das coligações proporcionais e a cláusula de desempenho forçaram fusões de partidos próximos programaticamente e uma diminuição sensível de partidos que não sobreviveriam sem Fundo partidário e sem espaços de rádio e TV. Processo positivo, mas lento e com artificialidade flagrante do que deva ser um partido político com ideologia, programa, democracia interna, formador e organizador de vontade coletiva de milhões. O Partido que forneceu legenda ao presidente eleito tinha um deputado e elegeu, nessa eleição de 2018, 52 deputados. Os maiores partidos não ultrapassaram nem 10% da Câmara Federal. Fato revelador da crise de representação política no país e da responsabilidade do próprio sistema partidário-eleitoral em gerar essa realidade.
O fato das mudanças da reforma de 2017 terem gerado resultados positivos na diminuição do número de Partidos, em várias fusões, em acabar com o oportunismo enganador das coligações proporcionais sem programas ou princípios não permite creditar à Câmara Federal o mérito de medidas saneadoras para a construção democrática.
Em 2021, a nova Câmara chegou a aprovar outra Emenda Constitucional permitindo, de novo, as coligações proporcionais. Quem se lembra desta mudança? Qual a participação popular em medida tão significativa para as regras do jogo? Aprovada por quase 350 votos, pouco menos dos quase 400 que haviam proibido as coligações na reforma de 2017. A Emenda não foi votada no Senado e acabou sem prazo para as eleições de 2022.
Mais uma vez, o debate ficou longe do público, da cidadania. Mero registro escondido em um canto de jornal ou 30 segundos de TV. Muda-se as regras, com facilidade se muda o resultado do jogo. A mídia monopolista criticou o Presidente Lula quando disse que a “análise da democracia é relativa”. Tem razão Lula.Não há boa análise sem a história, o contexto, o conhecimento comparativo das regras do jogo.
Com a manutenção da tendência de diminuição do número de partidos e com a continuidade crescente da cláusula de desempenho, a cobrança de outro funcionamento dos partidos torna-se uma exigência na luta pela democracia.
Em 2021, outra mudança significativa, talvez para compensar a tendência predominante, foi legalizar aquilo que os partidos com afinidades estratégicas deveriam fazer espontaneamente, as Federações Partidárias. Ou seja, frentes políticas unitárias com identidade programática para ação comum.
Nas eleições de 2022, formaram-se três federações, envolvendo 7 partidos: PT/PV/PCdoB, PSDB/Cidadania e Psol/Rede. Apenas 8 partidos e as 3 federações cumpriram a exigência da cláusula de desempenho. Outros 8 partidos não alcançaram o mínimo legal e o futuro desses será a fusão, incorporação ou novas federações, pois ficam fora do Fundo Partidário e do acesso à propaganda eleitoral no rádio e TV.
Mantém-se, assim, a tendência de diminuição de partidos e, por decorrência, uma necessidade de maior nitidez política-programática que os justifiquem. Isso é positivo para um fortalecimento dos partidos e da democracia pois facilitará uma identificação ideológica-programática com os eleitores. É claro que outros comportamentos são necessários para tal, mas sair das 35 siglas de 2018 já significa um avanço. Dos partidos exige-se uma identidade programática nacional, uma democracia interna que não pode ser o das Comissões Provisórias na mão de presidentes nacionais e nos Estados que predomina hoje. Vida orgânica regular, coerência programática e a prática partidária, enfim, elementos primordiais para uma construção democrática tenderão a ser critérios observados pelos filiados, eleitores e simpatizantes dos partidos.
A principal novidade de 2021, sem dúvida, é a figura das Federações, pois nascem tendo que se submeter a regras pouco observadas na política brasileira. Isto é, as Federações são possíveis mas com critérios que aprimoram a vida partidária num país viciado em coligações sem princípios e que se especializam em iludir o eleitor. Exemplo concreto disso são os partidos ligados a cultos religiosos que manipulam via religião seus seguidores.
A nova lei estipula que a Federação deve ter caráter nacional, ou seja, em todo o país, acabando com a incoerência de alianças diferentes entre municípios e/ou Estados vizinhos. A Federação tem que aprovar um programa comum, mesmo respeitando a soberania de cada Partido que a compõe, a Federação apresenta-se com um projeto de governo comum. O tempo de duração é indeterminado mas o prazo mínimo é de 4 anos, incluindo o trabalho comum nas bancadas legislativas onde a liderança do bloco será única de acordo com os regimentos das casas legislativas. A Federação, resguardando a soberania de seus membros, funciona como se um Partido fosse, assim a legenda da Federação concorre com a lista aberta, mas com o limite de candidatos partidário (número de vagas na casa legislativa mais um).
O elemento novo da Federação é a unidade de 2 ou mais Partidos com a soma de todos os votos para estabelecer o quociente eleitoral. Unidade programática sem perder votos entre os partidos que compõem a Federação.
Em resumo, as eleições de 2024 ocorrerão com as regras seguintes:
a) o voto será nominal em lista aberta por partido;
b) as coligações proporcionais continuam proibidas;
c) a possibilidade da Federação, somando os votos dos partidos que a compõem;
d) o patamar mínimo para disputar vaga nas sobras será de 80% do quociente eleitoral;
e) coligações são permitidas nas chapas majoritárias (prefeito e vice);
f) Fundo Partidário e contribuições de pessoas físicas, proibidas contribuições de pessoa jurídica.
A redução dos partidos políticos e a constituição de Federações e coligações majoritárias tendem a facilitar e determinar alianças políticas mais coerentes e de mais fácil identificação para o eleitor definir seu voto. Mas a permanência do voto nominal continuará sendo o elemento que favorece o individualismo, o personalismo e a corrupção na política brasileira. Seja na disputa pelo Fundo Eleitoral, seja pela busca das contribuições de pessoas físicas que, muitas vezes, escondem o financiamento empresarial aos candidatos. Com a fragilidade da fiscalização eleitoral, muitas contribuições individuais escondem o recurso empresarial assim como os recursos próprios do candidato. A disputa da vaga decidida individualmente acirra, inclusive, a competição financeira dentro do próprio partido e estimula a corrupção pois há uma relação inquestionável entre o montante de recursos e os votos alcançados, envolvendo volume de campanha, cabos eleitorais, número de comitês de campanha, compra de votos, etc…
O voto em lista partidária fechada, predominante na quase totalidade das democracias no mundo – somos uma exceção – pode acirrar a disputa interna nos partidos, mas os fortalece enquanto instituições, favorece a identificação programática, o coletivo sobre o individual, evita aventureirismo, o anti-candidato que aposta na insensatez e no bizarro e diminui, sensivelmente, a corrupção eleitoral. O Fundo Eleitoral público poderia ser bem menor e a lista fechada daria outra qualidade aos parlamentos pela seleção prévia dos candidatos. A lista partidária permitiria também, via Estatuto, uma composição com igualdade de gênero, com cotas setoriais que garantissem a presença de setores sociais hoje sub-representados nos parlamentos.
Mas, essa luta ainda é embrionária pois nem os partidos do campo da esquerda têm assumido essa bandeira como projeto, como objetivo a ser alcançado.
Nesta próxima eleição é obrigação nossa avançar, também, na questão da Frente de Esquerda. Seja através das Federações ou das coligações entre as Federações do campo popular. Uma política ofensiva nesse sentido deve também estar dirigida aos partidos e grupos políticos que não possuem representação parlamentar e terão maior dificuldade agora e no futuro pela existência da cláusula de desempenho cada vez mais exigente.
Como nas Federações cada partido mantém sua identidade própria, sua soberania, não há justificativa política, a não ser algum grupo ou seita irrelevante, para que essas forças políticas não estejam nas Federações ou criando novas para superar a pequenez e/ou ajudar na construção de uma unidade superior para sua prática política. Nesse sentido, essa é uma das iniciativas que o PT deve assumir e orientar sua militância em procurar debater com esses partidos para que venham a uma unidade no campo de esquerda, mantendo suas identidades próprias.
A política de alianças do PT deve estar orientada nessa concepção estratégica. A nossa política de alianças não é a que o governo atual se vê obrigado a realizar diante de um Congresso eleito por um sistema eleitoral que não dá governabilidade ao vencedor do pleito.
Nestas eleições municipais, a maioria esmagadora dos pequenos municípios possuem 9 vereadores, o que significa uma cláusula de desempenho de 11% dos votos, ou seja, para eleger um vereador, o partido precisa garantir esse patamar, que é muito difícil de alcançar sozinho.
Com a cláusula de desempenho, o número de Partidos organizados nos municípios cairá sensivelmente e isso terá consequências favoráveis aos partidos tradicionais, mais estruturados, com mais história e implantação social. Serão favorecidos pelo alto quociente eleitoral para eleger mais bancadas. Por isso, toda atenção na organização, presença e filiação partidária como políticas permanentes do partido.
Câmaras Municipais com 11 ou 13 vereadores mantêm essa dificuldade de se garantir um quociente eleitoral. Desse modo, a unidade é importante politicamente, mas também decisiva para garantir representação popular nas Câmaras Municipais. Enquanto não se mudar esses critérios restritivos nas Câmaras, sempre justificados pelo custo dos legislativos aos municípios, teremos muita dificuldade de ter representação e formação de quadros experientes nos pequenos municípios.
No Brasil, a profissionalização da representação política criou sérias distorções e justifica argumentos contra ampliar a representação nos legislativos municipais. E, na maioria dos municípios é compatível a representação política e a manutenção da atividade profissional do eleito, com um ganho democrático pela ampliação dos representantes da comunidade. Este é outro desafio que o PT tem que ter a coragem de assumir numa reforma política democrática para o país.
Por último, este balanço crítico e de atualização das regras do jogo eleitoral no país visa estimular o debate urgente e necessário de uma proposta de reforma democrática do sistema eleitoral no Brasil que corrija suas grandes distorções como o voto nominal que deseduca e enfraquece o sistema partidário ao mesmo tempo que favorece o poder econômico e estimula a corrupção e o clientelismo. O piso e o teto na representação da cidadania na Câmara Federal, pior ainda, pois frauda o princípio elementar de “um cidadão, um voto”. Pelo recente censo do IBGE, enquanto os 10 menores Estados somam 20 milhões de habitantes e elegem 80 deputados, São Paulo com mais que o dobro de população, 44 milhões, elege apenas 70 deputados. Isso é mais que distorção, é fraude eleitoral através das “regras do jogo”.
Raul Pont
Agosto de 2023.
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