EDUARDO FAGNANI
As fabulações dos economistas tucanos não param de sair nos grandes veículos de comunicação. Uma das últimas peças assinada por Samuel Pessôa (2) critica os supostos “truques de retórica” utilizados na campanha presidencial de Dilma Rousseff, na comparação entre a década de 90 e a década de 2000.
O primeiro suposto “truque” seria afirmar que os inegáveis progressos sociais recentes seriam “consequências exclusivas das políticas dos governos petistas”. A escamoteação inicia-se com a afirmação de que “as inúmeras melhoras ocorridas na sociedade brasileira nos últimos 30 anos são avanços vegetativos associados à evolução natural da sociedade”.
A consequência óbvia desse postulado é que nada precisa ser feito por governo algum; a “evolução natural” conduzirá, inexoravelmente, ao mundo civilizado. Esse disparate explicaria, por exemplo, o fato de que, em 1990, o PIB da China foi de cerca de um quarto do tamanho dos Estados Unidos; em 2006, era cerca de metade do PIB dos EUA; em 2013, a economia chinesa superou a americana; e de que, em 2105, poderá ser 20% maior que a outrora maior economia do mundo (3). A elite bem informada deveria saber que por trás dessa notável evolução estão políticas macroeconômicas (fiscal, monetária, cambial e industrial) articuladas que preservam a soberania nacional e rechaçam os fracassados dogmas neoliberais, insistentemente reprisados pela ortodoxia tupiniquim cosmopolita.
A segunda fabulação é que “boa parcela da queda da desigualdade na última década segue da melhora educacional – que tem ocorrido desde os anos 40, com forte aceleração em seguida à redemocratização –, em associação ao fim de nossa transição demográfica”. De fato, a partir da Constituição de 1988, o sistema educacional brasileiro assentou-se em bases mais sólidas e, desde então, os indicadores educacionais têm melhorado.
Mas o autor não conta que a partir de 2003 houve uma inflexão positiva nessa melhora, incomparável com o que ocorrera durante os anos de FHC. Os gastos federais com educação, por exemplo, mais que dobraram em valores constantes, entre 2002 e 2010, passando de R$ 19,9 para R$ 45,5 bilhões, como atesta o IPEA. Dados da PNAD revelam que entre 2002 e 2013 a taxa de escolarização das crianças de 5 e 6 anos passou de 77,2 para 93,3%; a taxa de analfabetismo das pessoas com 10 anos ou mais caiu de 10,9 para 7,6%; a distribuição das pessoas com mais de 11 anos de estudos subiu de 23% para 38,3%; o número de alunos matriculados no ensino superior dobrou em dez anos, em parte devido ao Prouni que atende mais de 1 milhão de alunos – em geral, pobres, pretos, nordestinos e “mal informados”. Nesse caso, “a Lebre e a Tartaruga”, conhecida fábula de La Fontaine, reflete muito bem o que foi, respectivamente, a ação dos governos petistas e tucanos. Revisitando Luciana Genro, evolução natural uma ova!
O articulista perpetra outra quimera, ao afirmar que “pela primeira vez somos uma sociedade com escassez de trabalho. Nada disto deve-se ao PT no governo” (sic). Meu Deus do céu! Basta ver as estatísticas para comprovar que entre 1995 e 1999 foram destruídos mais de 1,2 milhões de empregos; e, que entre 2002 e 2013, durante os governos petistas, número total de empregos com carteira assinada passou de 28,7 para 48,5 milhões (4). Sim, são “números impressionantes” e, como diz La Fontaine (Os dois viajantes), “a verdade irrita os maus, a mentira é por eles bem acolhida”.
A verdade é que primeira década do século 21, foram engendradas alternativas ao modelo que vinha sendo implantado desde 1990 e que resultaram na melhoria dos padrões de vida da população. A economia cresceu e distribuiu renda, fato inédito nos últimos 50 anos. Longe de inaugurar um “novo padrão de desenvolvimento”, caminhou-se no sentido da construção de um modelo menos perverso que o padrão histórico. Após 25 anos o crescimento voltou ter centralidade e foi possível conjugar melhor objetivos econômicos e sociais, como revelam os dados sobre geração de empregos, ampliação da renda do trabalho, formalização do mercado laboral e redução do desemprego. Junto com a ampliação dos gastos sociais e a substancial mudança no patamar de transferência de renda para as famílias (Seguridade Social e programas de combate à pobreza extrema), esses fatores contribuíram para a redução das desigualdades da renda do trabalho e para a elevação da renda das famílias que impulsionaram mercado interno de consumo de massas, base do
ciclo de crescimento.
O quarto suposto “truque retórico” é “que não se fala que mais da metade do crescimento da dívida pública no período resultou da assunção de dívidas passadas que não estavam contabilizadas”. Essa afirmação tem sido contestada por diversos autores(5). Mas o essencial na duplicação da dívida pública interna nos oito anos do Governo FHC (de 30 para 60% do PIB; hoje 35%) é dado pela irresponsabilidade fiscal, monetária e cambial que produziu juros básicos obscenos (mais de 40% em alguns anos), cujas consequências foram a explosão das dívidas da União, dos estados e dos municípios. Após a longa deterioração das finanças desses entes federativos, eles não tiveram opções a não ser “renegociar” suas dívidas com os termos draconianos impostos pelo poder central em 1999, após o acordo com o FMI.
O quinto suposto “truque” seria “não reconhecer que antes de FHC havia hiperinflação e que a sociedade melhorou”. Este fato é ponto pacífico e não está em discussão. O que está em debate é que em 2001 e 2002, durante a gestão ortodoxa de Armínio Fraga, a taxa de inflação extrapolou a banda superior da meta estabelecida pelo Banco Central (respectivamente, 7,7 e 12,5%). Seria culpa do Lula? Os dados contestam: nos últimos anos a inflação sempre esteve no centro da meta ou próxima da banda superior.
Na sexta narração de fatos imaginados, para demonizar o governo atual o economista correlaciona a retórica petista aos ensinamentos do nazista Joseph Goebbels, reprisando a célebre frase – tão cara aos neoudenistas –, segundo a qual “mentira repetida mil vezes, ‘vira’ verdade”. Essa apelação rasteira presta-se para o autor negar o fato de que “FHC quebrou o país três vezes”. Para ele, “naquele período nunca quebramos”.
Se não quebraram, então por que recorreram ao FMI? Teria sido uma visita de cortesia para estreitar os vínculos orgânicos e ideológicos com os donos da riqueza? Se o FMI não tivesse acolhido seus amigos cordiais, o que teria ocorrido? Sim, o Brasil quebrou. E o socorro do FMI salvou a pátria tucana. As manchetes da imprensa à época não deixam margem à dúvidas (é só checar no “Google”).
Por acaso, achei um artigo de Alexandre Schwartsman, adepto da mesma doutrina da Casa das Garças (6), datado de outubro de 2002, cujo título é sugestivo: “Por que o Brasil não vai quebrar” (7). A bem da verdade, o título deveria ser “Por que o Brasil não vai quebrar pela quarta vez”. Segundo ele “houve poucas vezes em que pude observar tanta discrepância como agora entre as opiniões dos analistas nacionais e estrangeiros em relação ao desfecho mais provável para a crise brasileira [produzida pelo governo FHC]”.
O autor faz referência às declarações de George Soros [ex-chefe de Armínio Fraga, megaespeculador que “apostava” contra o Brasil], segundo o qual “os mercados poderiam impor ao governo brasileiro a decisão de reestruturar a dívida simplesmente recusando o seu financiamento”. A consequência, diz o autor, seria a “inadimplência forçada” que levaria o governo a declarar moratória, a exemplo do que estava ocorrendo na Argentina.
Ainda segundo Schwartsman, considerando-se os recursos obtidos do socorro pedido ao FMI em 2001, o governo brasileiro poderia “deixar de recorrer aos mercados internacionais de capital pelo menos até o final de 2003, e possivelmente até o final de 2004, contanto que não faça alguma tolice com suas reservas internacionais”. Em suma, “existem fortes motivos para acreditar que o governo brasileiro pode deixar de recorrer aos mercados internacionais de capital, certamente até o final de 2003, e muito provavelmente em 2004 também”.
Ou seja, o país, deixado de cócoras pela gestão Armínio Fraga, poderia respirar por mais um ou dois anos e, nesse breve interregno, não quebraria pela quarta vez. E de fato, não somente não quebrou como passou a ter reservas cambiais superiores a US$ 370 bilhões e passou a emprestar recursos para o FMI. Isso é fato, não é caraminhola fabulista.
O sétimo suposto “truque retórico” da propaganda de Dilma, seria “escolher estatísticas e bases de comparação de forma oportunista”. Para ele, isso ocorre “quando se afirma que o desempregou caiu 7,6 pontos percentuais, dos 13,0% de 2003 para os 5,4% de 2013”, medidos pela Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, “que abrange somente seis regiões metropolitanas”.
A intenção de iludir, oculta um dado elementar. A taxa de desemprego tem de ser medida todo mês, para orientar os agentes econômicos. A PME é mensal e, historicamente, tem sido o indicador oficial da taxa de ocupação.
Omitindo esse ponto, o autor afirma que a taxa medida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (periodicidade anual), que abrange todo o território nacional, apresenta dados piores que os alardeados pelos petistas: “redução de 3,2 pontos percentuais (taxa de desemprego), de 9,7% em 2003 para 6,5% em 2013”.
O fabulista escamoteia que a taxa de desocupação medida pela PNAD cresceu de 6,0% (1995); para 9,7% (1999); 9,2 (2002); e. 9,8 (2003) (gráfico 1). De fato, desde então ela cai sistematicamente até chegar a 6,6% em 2013. Ou seja, foram necessários 13 anos para que o estrago realizado pelo governo FHC retornasse ao patamar de quase vinte anos atrás. Moral da história: “a soberba pode nos levar a situações perigosas e nunca devemos fingir conhecer o que, de fato, desconhecemos apenas para satisfazer nosso orgulho”, diz a fábula.
Finalmente, o último suposto “truque” seria “simplificar um debate ao máximo, de forma a demonizar seu adversário e incutir medo na população”. Segundo o autor, ele próprio foi vítima dessa estratégia, após escrever artigo intitulado “Universidade Paga”. Informa que “na retórica petista, eu quero privatizar as universidades federais, algo que nunca passou pela minha cabeça”. Essa frase vai para a série “esqueçam o que eu escrevi”.
Em “O Pastor e o Leão”, Esopo conta que certo dia, ao contar suas ovelhas, um Pastor deu-se conta de que faltavam algumas. Suspeitava de lobo. Fez promessas aos deuses para que o ajudassem a encontrar o tal ladrão. Após muito procurar, sem encontrar lobo algum, constatou que o estrago estava sendo feito por um leão. Cheio de pavor, o Pastor caiu de joelhos e suplicou aos deuses: “Piedade, bondosos deuses, os homens não sabem o que falam!”. Assim, “por vezes o remédio é pior que a doença”, diz a fábula – lição atualíssima, ante a receita ultra ortodoxa que o PSDB pretende implantar no país.
Notas:
(1) – (Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT/IE-UNICAMP) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento (www.plataformapolíticasocial.com;)
(2) – http://folha.com/no1531135
(3) – http://www.businessinsider.com.au/china-overtakes-us-as-worlds-largest-economy-2014-10.
(4) – http://plataformapoliticasocial.com/2014/10/10/80-graficos-sobre-a-evolucao-dos-indicadores-economicos-e-sociais/.
(5) – Consultar, por exemplo: http://www.sep.org.br/artigos/download?id=795;
(6) – Garça, substantivo feminino ( sXIII): “Nome comum que se dá às aves do gênero. Ramphastos, da família dos ranfastídeos, encontradas espécies nas florestas tropicais da América do Sul, de bico muito grande e forte, de cores variadas e plumagem preta combinada com branco, amarelo ou vermelho; vivem em pequenos bandos e costumam atacar os ninhos de outras aves”. Disponível em: <http://dicionariocriativo.com.br/significado/tucano>.
(7) – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2010200222.htm
Artigo originalmente publicado em Plataforma Política Social.
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