Por Luiz Felipe Nelsis
Após o temporal?
As manifestações parecem ter completado um ciclo. Após três semanas de eletricidade impressionante que sacudiram o País não temos sequer um acordo razoável do que se trata. Levante libertário, manipulação golpista, primavera brasileira, ou o quer que se tenha chamado, o certo é que ninguém sabe ao certo para onde vão, se seguirão, o que mudarão na sociedade brasileira se é que efetivamente mudarão estruturalmente algo. A luta para entender os protestos, como escreve Zizek num artigo publicado semana passada, não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicar seu “real” conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa. Afinal o que são os protestos?
Parece ser o momento de passar da catarse à reflexão.
As várias marchas
Tenho escrito aqui que as manifestações não são uma, mas várias sobrepostas. Um Brasil contemporâneo que clama por direitos e igualdade, de raça, opção sexual, credo. E um Brasil arcaico que proclama preconceitos. De classe, contra o bolsa família. De origem contra os nordestinos. De organização partidária, contra os partidos. A um núcleo original basicamente de esquerda que pedia mais estado, mais democracia e mais domínio do público sobre seu espaço, somou-se um outro com uma agenda oposta, menos estado, menos impostos, bandeiras genéricas contra a corrupção, recusa violenta a partidos, etc. No meio de tudo isto, tudo e qualquer coisa. Grupos com interesses corporativos, levas de sem noção tirando fotos de protesto para o facebook como tirariam de um show da Madona e até mesmo o apoio engajado de uma mídia que era, ela mesma, alvo das manifestações. Como isto foi possível? Como tanta gente foi às ruas por causas tão distintas e as vezes contraditórias? E acima de tudo qual o seu significado? Sigo dando pitacos neste esforço coletivo de interpretação.
Redes sociais, muito além do fetiche. Sim, as redes sociais tem tudo a ver com os protestos, mas não lhes confere qualquer unidade ou conteúdo. O rádio na década de 30 modificou largamente a política possibilitando que lideranças políticas falassem diretamente com as massas, o que era impossível antes dele. Isto possibilitou o surgimento de lideranças tão díspares como Mussulini, Hitler, Roosevelt, Getúlio, Perón. Em comum a nova relação direta com as massas. A internet e as redes sociais criam a inédita possibilidade (ao menos não presencial) das pessoas falarem umas com as outras de forma massiva sem a intermediação da mídia.
Disto resulta uma espetacular troca de conteúdos, mas também, e menos percebido, uma uniformização muito maior dos conteúdos no interior dos grupos. Posso escolher ler e comentar apenas os blogs e publicações que tenho afinidade. Nas redes, como cada qual interage com seus semelhantes e com seu repertório (político, cultural, etc.), a homogeneização é crescente. A cada grande clivagem se lê nos feeds, vou deletar amigos que pensam isto ou aquilo (que são de direita, que postam religião, que são petistas, que postam cachorros). E cada vez mais evangélicos falam com evangélicos, petistas com petistas, fascistas com fascistas, baladeiros com baladeiros, etc. Estes grupos homogêneos reforçados pela inexistência de diversidade em suas relações ganham convicções absolutas e a ideia do contraditório própria da política vai sendo banida das suas vidas e dos debates. Antes de ser a nova ágora ateniense, como quer o Nassif, pois não há encontro ou contraditório, as redes se aproximam de vários clubes exclusivos, cada qual com suas regras e sua pauta.
Por isto, o Feliciano aparece nos nossos feeds como um E.T. ou um louco e não um representante de um movimento político que articula militantemente milhões. Da mesma forma, nos feeds de evangélicos o movimento LGBT deve aparecer como a encarnação do demônio.
As redes sociais não superam a fragmentação da vida societária, as exasperam.
Inovações e limites de um movimento horizontal. As manifestações brasileiras são inegavelmente um capítulo de um processo global que se ergueu em lugares tão distintos como EUA, Espanha, Itália, Turquia, mundo árabe, Chile. etc. Se as pautas eram tão distintas como a situações de seus países, algumas características as unificam. A juventude como sujeito, as redes sociais como veículo e o sistema político como alvo. Mais que isto, se organizaram em torno de movimentos de novo tipo. Horizontais, sem pauta fechada, sem organização partidária, sem sequer uma organização permanente ou legítima do próprio movimento.
Estas manifestações, que excitam nossa imaginação e nos apaixonam, tem conduzido invariavelmente a impasses nas suas lutas. Nos EUA, após realizarem atos em mais de mil cidades americanas o Occupy parece ter desidratado sem que nada de notável tenha modificado na sociedade ou na política americana. Na Espanha, os Indignados após sacudirem o País refluem sob um governo de direita. No Egito, a primavera que teve a capacidade de retirar Mubarak, teve que assistir a ascensão da Irmandade Muçulmana e, agora a um golpe de estado pelas forças armadas.
O limite parece ser sempre a distância entre a capacidade de manifestar a insatisfação e a capacidade de assumir compromissos com uma agenda que leve a sua superação. Como anotado no Filósofo Grego, os protestos são algo que contém uma insatisfação com potencial emancipatório, mas apenas uma vez que esta insatisfação seja extraída deles, refletida e transformada em ação. Os protestos são encontro de desejo de transformação e medo de transformação (Žižek), e por isso não são emancipatórios. Eles carregam e expressam a matéria-prima da transformação, mas não são transformadores. Os protestos são formas de expressar o desejo de transformação sem jamais engajar-se no processo da transformação, são “autodomestificações de si mesmos” (Badiou).
O processo verdadeiramente transformador seria o pleno engajamento político. Mas isto exigiria assumir compromissos, fixar uma agenda, eleger lideranças, seguir em certa direção. É exatamente isto que os protestos querem evitar a todo custo. Assim como Hamlet, que adia perpetuamente seu engajamento na ação por meio de uma exigência de absoluta certeza e perfeita oportunidade, os protestos evitam o engajamento por meio de exigências excessivas de pureza e perfeição (Badiou). Eles tendem a se conceber como isentos de ideologias, como separados de todos os partidos políticos e interesses particulares, como adversários da política tradicional e do mercado tradicional, mas só podem manter esta fantasia de pureza na medida em que permaneçam paralisados e impotentes. Ao mesmo tempo, eles tendem a se conceber como perfeitos e infalíveis, incapazes de formular propostas concretas, porque toda proposta concreta será imperfeita e insatisfatória, e o movimento não admite para si a possibilidade de errar, de macular sua autoimagem de perfeição por meio de um engajamento com o mundo prático. Trata-se do enamoramento de si mesmos, contra o qual Žižek prevenia os militantes do Occupy Wall Street.
O encontro de águas de um mundo de convicções fragmentadas das redes sociais, um movimento aberto que a todos recepciona, mas a ninguém sintetiza e a realidade brasileira que trouxe contradições, violências, alegrias e públicos inimagináveis para seus fundadores é que produziu o terremoto que vivemos. Um movimento tão grande e diverso que seu principal perigo é de se transformar em amorfo e impotente
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