Publicado originalmente no site da Agência Carta Maior. Se preferir, clique aqui e leia o artigo no seu local original.
Há uma interpretação quase unânime de que a ascensão de Heloisa Helena nas pesquisas favorece Alckmin e ameaça Lula. Essa avaliação nasce mais da impossibilidade, até o momento, da candidatura do candidato tucano tornar-se auto-sustentável.
FLÁVIO AGUIAR
Nas últimas semanas cresceram as tentativas de definir, no grito, como se diz, os rumos e as interpretações sobre as eleições.
A primeira e a mais grosseira delas – mas logo acolhida pelas manchetes principais da imprensa – foi a de vincular o PCC ao PT. Não colou. Em primeiro lugar, nada foi investigado. Tratava-se apenas de gerar frases impressionantes para os que só lêem as manchetes nas bancas ou em casa, e para aproveitamento posterior, se autorizadas, em programas de TV no horário eleitoral.
É até possível que o PCC tenha algum rancor contra o PSDB. É difícil medir isso com precisão. Afinal de contas, um dos aspectos mais graves da situação da segurança pública em São Paulo, é a de que ela deixou de ser pública. Ninguém sabe o que aconteceu nem o que está acontecendo. Os tempos da ditadura militar nos legaram o triste espólio dos desaparecidos. Em São Paulo enfrentamos a realidade dos invisíveis: quem morreu? Por que morreram os que morreram? Houve acordo do governo com o PCC? Parece que sim, mas…
O mas… é o aspecto mais complicado da questão, porque permite uma profusão de hipóteses, uma mais sinistra do que a outra. A mais abrangente é a de que haveria na verdade um acordo antes da remoção dos presos para Presidente Venceslau no começo de maio. Essa remoção foi, na verdade, a ruptura do acordo que haveria, daí os ataques de 12 de maio, que seriam uma retaliação.
Depois a situação fica mais confusa ainda. Não se sabe até hoje a identidade de vários dos mortos, nem seu número exato, nem por que nem como morreram, há informações sobre execuções que ficam sem investigação apropriada.
Mas essa situação caótica, provocada por uma política de segurança pública completamente inadequada do ponto de vista conceitual e anacrônica, como foi a de São Paulo faz muito tempo, jamais favoreceu partido algum de esquerda em eleições. Ao contrário, ela favorece tradicionalmente a direita. Se alguém sair favorecido dela será ainda a coorte dos que pregam as políticas truculentas, a construção de megapresídios e outras soluções aparentes, na verdade, mega becos sem saída.
A mais recente tentativa na mídia é semelhante a esta: trata-se de colar no PT e no governo Lula tudo o que diz respeito a “sanguessugas” e a só agora badalada máfia das ambulâncias. Novamente há indícios muito sérios de que isso vinha de antes. Mas não interessa, o que importa é malhar o governo. E na esteira vêm outros comentários da mesma laia. Israel arrasa o Líbano e atrapalha a saída de brasileiros? É uma humilhação para o governo Lula! A rodada Doha empacou, estão todos desesperados, uma representante dos EUA saiu batendo as portas: não importa, o fracasso foi da política do governo Lula! E por aí se vai.
Mas o caso mais interessante dos últimos tempos foi o da interpretação da ascensão nos votos da senadora Heloisa Helena. É certo que ela foi catapultada por um auxílio da mídia. Mas o que ela capta tem moto próprio, ainda que ela capte votos em águas muito diferentes entre si. Uma parte do seu voto vem do auto-descontentamento petista; outra parte vem de um descontentamento fluido e generalizado; há um voto feminino; e há um voto de direita, baseado no eterno moralismo que divide a cena política em “bons” e “maus” administradores e assim “naturaliza” as diferenças políticas dos projetos, sempre a favor daqueles que nada querem mudar e criam um véu de aparência ética em torno de suas atitudes, que protegem, no fundo, a imoral desigualdade da sociedade brasileira.
Essa captação de votos em várias águas tem mais a ver com a atuação ambígua da própria senadora, que ora dá duas no prego, ora três na ferradura, do que com qualquer outra coisa. De um lado, faz um discurso à esquerda, atacando as concessões da política econômica aos valores do mundo financeiro; de outro, faz um discurso à direita, quando, por exemplo, diz que no seu governo nem Bush nem Chávez mandarão no Brasil.
Mas esse movimento ganhou uma interpretação quase unânime de que favorece Alckmin e ameaça Lula. Essa interpretação nasce mais da impossibilidade, até o momento, da candidatura de Alckmin tornar-se auto-sustentável. Até pode ser que eventualmente uma parcela ponderável de eleitores de Heloísa Helena venha a votar em Alckmin num segundo turno. Mas esses seriam eleitores que jamais votariam em Lula; são eleitores que estão descontentes com a própria candidatura tucana, seja lá por que razão for. O que não se cria, até o momento, é a hipótese de que a candidatura tucana mais necessitaria, que é a de migração de votos de Lula para Alckmin através de Heloísa Helena, além da migração direta de um para o outro.
Há um esforço no ar, na mídia e fora dela, de fazer de Alckmin o Felipe Calderón do Brasil. Felipe Calderón foi o candidato conservador que, saindo de um percentual menor nas pesquisas iniciais, empatou no final com López Obrador, o candidato de esquerda, e num pleito conturbado e com indícios graves de fraude, venceu por pequena margem no final. Nessa disputa os votos nulos pregados pelos zapatistas e o voto centrista dado à candidata Mercado (1,2 milhões de votos, quando a diferença de votos entre Calderón e Obrador ficou em 250 mil votos num universo de 60 e tantos milhões), foram decisivos.
Mercado se apresentava como uma candidatura mais contestadora do “sistema político”, baseada em movimentos sociais de classe média, voto feminino, voto verde e outros. No caso, a atuação combinada de Mercado e dos zapatistas cortou o contato de Obrador com setores importantes nas franjas do eleitorado que poderia ser seu, e foi decisiva na eleição.
A senadora e seu discurso estão assim entre o dos zapatistas (embora não peçam o voto nulo, mas no sentido de embargar o caminho do candidato que está pegado ao seu no espectro político) e o de Mercado (pegando o voto difuso de uma classe média que não se identifica, por várias razões, com o voto nos candidatos a que tendem as maiorias polarizadas).
Como a senadora é uma, e não duas opções, como ocorreu no México, ela terá, no curso dos acontecimentos, que escolher, porque uma das mostras que essas eleições estão trazendo é a de que o eleitorado está muito mais polarizado em torno de proposições definidas do que querem apresentar os nossos tradicionais “formadores de opinião”. Se for para a esquerda, definirá melhor o patamar ideológico sobre o qual dizem se afirmar ela e seu partido; se for para a direita ou ficar na indefinição, fará jus ao certificado de udenista rediviva cuja ameaça paira sobre sua cabeça.
Uma outra dimensão em que as esquerdas – como um todo – precisam atentar é para a internacionalização dessas eleições brasileiras. Nunca a platéia internacional esteve tão atenta e tão engajada na nossa cena nacional. É artigo do Financial Times para cá, do Wall Street Journal para lá, é avaliação de casa bancária de um lado, de agência de avaliação econômica do outro, é impressionante. O mundo – o da esquerda e o da direita – sabe que a eleição brasileira é decisiva em escala mundial. Por isso também os representantes da ideologia neoliberal no Brasil se empenham tanto em desmoralizar a política externa do governo Lula e apresentar o seu interessante sucesso como um retumbante fracasso, no varejo e no atacado.
Num quadro desses não se pode entrar numa campanha com espírito paroquial, pensando apenas em picuinhas micuins, que é o que a direita faz, enquanto não mostra como pretende administrar a grande fatia do bolo: neutralização das políticas sociais, engajamento internacional subordinado, manutenção dos velhos cacicatos nas regiões definidas como “atrasadas” e dos novos nas definidas como “modernas”.
Uma coisa, de tudo isso, é certa: no presente contexto, candidaturas de direita carecem de luz própria para o conjunto mais amplo da população. Dependem de quem lhes queira emprestar alguma.
Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.
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