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Caminhos da consciência | Luiz Marques

A essência reacionária do impeachment misógino de Dilma Rousseff está na reatualização dos valores do escravismo colonial (Novo Regime Fiscal com Teto de Gastos Públicos, 2016; Reforma Trabalhista e Previdenciária, 2017; Lei das Terceirizações, 2017; Autonomia do Banco Central, 2021). Arrocho salarial, precarização do trabalho, desindustrialização, negacionismo, cortes em pesquisas científicas, universidades públicas à míngua, desmonte das políticas sociais, descrédito das instituições do Estado de direito democrático fecharam o pacote do golpe neocolonialista.

A metáfora da obra magna de Gilberto Freyre, “casa grande” e “senzala”, amarrou com perfeição as relações sociais nos quase 350 anos de escravidão, de triste memória, que a historiografia facciosa pretendeu abrandar como fez em episódios sangrentos. No ínterim, os privilégios andaram a par com uma abstração dos direitos – de vida, propriedade e liberdade – para os escravizados. O gozo perverso na objetificação de seres humanos resistiu ao fim do Império Romano, onde escravos em trajes de gladiadores se mutilavam e matavam para divertir a plateia e o imperador, no Coliseu.

A abolição da escravatura no Brasil não altera o quadro, em profundidade. Faltou a indenização por gerações de atividades laborais, sob grilhões, e uma reforma agrária para absorver os alforriados no cultivo da terra, de acordo com a vocação das criaturas arrancadas da mãe-África. Sem um preparo para afazeres citadinos e sofrendo concorrência das etnias europeias, que dispunham de prebendas oficiais com vistas ao branqueamento, os afrodescendentes ficaram de fora do incipiente circuito produtivo. Começava a saga das comunidades de periferia. A gente periférica não participou do conceito de nação e foi acusada de “vagabundagem”. No Rio de Janeiro, se instalaram nos morros.

Ofendidos e humilhados foram alijados do processo político, em curso. A cosmovisão das elites foi verbalizada por Ruy Barbosa – escravos, mendigos e analfabetos não devem ter direito ao voto, por carecer de ilustração e não discernir o bem comum. Os regimes de exceção seguem na tentativa de invisibilizar o “bloco dos sujos”. As proclamadas virtudes mestiças e a dita democracia racial não levaram à união nacional. João Ubaldo Ribeiro, em Viva o povo brasileiro, descreve de maneira crua a origem da miscigenação no país – o estupro das negras e indígenas por proprietários brancos. 

Pesadelo de volta

O patriotismo, transformado em uma emoção nacionalista, soldou a lealdade dos subalternos ao Estado via idioma, tradições populares e folclorização (alegre, sensual, musical) da raça – conceito recorrente na sociologia do século XIX, como o de classe social no século XX. A brasilidade, no caso, serviu de atalho redentor para a elevação da consciência dos excluídos até uma consciência brasilense – o sufixo eiro só é apropriado para ocupações, tipo sapateiro, daí o vocábulo “brasileiro” não ter tradução em inglês ou francês. O sonho de consumo se resumia a uma inclusão econômica.

As fases históricas desde então foram nuançadas pela cultura, os costumes e as crenças cotidianas: República Velha (1989-1930); Governo Provisório e Constitucional de Getúlio Vargas (1930-1937); Estado Novo (1937-1945); Quarta República (1945-1964); Ditadura Civil-Militar (1964-1985); Nova República, na expressão de Tancredo Neves (1985-2016); Estado de Exceção (2016-2022); Brasil União e Reconstrução (2022-…), na designação de Lula da Silva. As liberdades públicas estiveram em alta ou em baixa, ao longo desse tempo. No pesadelo escravocrata entre 1550-1888, a liberdade sequer era um critério de aferição sociopolítica, no pêndulo dominação / subordinação.

Com requintes de crueldade e safadeza, o bolsonarismo reafirmou o arbítrio dos primórdios. Tomou de empréstimo a hipocrisia das “elites”. Juras incondicionais à liberdade individual, predicado dos fortes, minaram a Constituição para favorecer os que tinham em quem pisar na hierarquia social, o policial que faz revista desmotivada no jovem ou o rufião que cobra a prostituta. A impunidade do antigo sinhô se estendeu aos sem-engenhos, no período miliciano do Palácio do Planalto. Cresceram as estatísticas de chacinas das “classes perigosas”, os crimes de racismo, feminicídio e homofobia. Os pequenos e sádicos aspirantes a ditadores foram empoderados e, aberta, a temporada de caça e perseguições covardes dos ressentidos aos vulneráveis de sempre – pobres, pretos, mulheres e gays.

Sequestrado pelos bolsonaristas nas redes sociais, o nacionalismo perdeu a aura de universalidade apesar de manter uma capacidade de aglutinação altaneira, em face da luta de classes de orientação igualitária e libertária. Perdeu também o conteúdo, mal compensado pelo uso retórico dos símbolos pátrios, para obscurecer o entreguismo de empresas sólidas e atender o ideário privatista. “Nossa bandeira jamais será vermelha”. O amarelo sinalizou uma politização supraclassista rasteira. Para a mentalidade paralela, os alienados da ocasião eram os opositores. “Por que não vão para Cuba?”

Palco para brilhar

Para Marilena Chaui, em Brasil: mito fundador e sociedade autoritária: “A explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo. Nada exprime melhor essa situação do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-1960, com os nomes de nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois”. O trabalho encarnava a totalidade. 

A dialética da conscientização crítica teve a porta da luta de classes bloqueada e, o nacionalismo, arrebatado pela extrema direita já em 1964. O renascimento institucional e extra-institucional da oposição foi forjado pelo sindicalismo autêntico, pela Teologia da Libertação e pelo Partido dos Trabalhadores (PT, 1980) ao inflexionarem o conflito fundamental, “peão não vota em patrão”. O decênio oitentista teve mobilizações colossais, registradas na biografia do gigante acordado. Seu emblema (o Sistema Único de Saúde / SUS) foi aprovado na Constituinte, graças às mobilizações.

A década noventista muda o cenário com a hegemonia do neoliberalismo, de um lado e, de outro, a experiência do Orçamento Participativo (OP), em Porto Alegre, sob administrações petistas (1989-2005). Mesmo sob o cerco dos governichos de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, a Prefeitura da capital gaúcha acumulou prêmios em transporte, saúde e meio ambiente, e foi eleita na Organização das Nações Unidas (ONU) a metrópole número um em qualidade de vida, no Brasil. Em 1998, foi reconhecida pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e pelo Índice de Condição de Vida (ICV) que medem longevidade, renda, educação, infância e habitação; títulos repetidos em 2001 e 2003, na ONU. Situada entre os quarenta municípios com melhores práticas de gestão, no globo terrestre, a cidade sediou o Fórum Social Mundial (FSM) por sugestão da equipe de jornalistas do Le Monde Diplomatique, acatada por lideranças dos hemisférios Norte e Sul.

O OP se alinhou à perspectiva nacionalista, com um alcance local. Suas realizações focaram em uma categoria de unificação, a melhoria da vida individual e coletiva em cidade. O Plano Plurianual (PPA) Participativo, do presidente Lula da Silva busca o bem-estar na conjunção geral. Ambas as iniciativas destacam o valor supremo do pertencimento a entidades de uma envergadura conceitual que transcende as classes sociais, stricto sensu. Mostram a importância e a extraordinária força centrípeta exercida pela ideia-guia de civilização. A luta de classes não evapora. Manifesta-se com roupagens diferentes, enquanto protagonistas genéricos e progressistas sobem ao palco para brilhar. 

Tríade estratégica

Feito o revolucionário do poema de Bertolt Brecht, partícipes das assembleias (ágoras) aprendem a perguntar à propriedade, “de onde vens?” e indagam às opiniões, “a quem serves?” Mecanismos de deliberação social interferem na esfera do político para ensaiar uma convergência entre os polos nacionalista e classista, além de contribuir para a formação político-intelectual de um contingente numeroso de vanguarda, nas classes laboriosas. Cidadãs e cidadãos comuns olham diretamente para o funcionamento do Estado-Medusa, sem medo de ser transfigurados em pedra ou torturados e desaparecidos, como em priscas eras. A ação deliberativa converte os lutadores sociais em sujeitos políticos, com organização e programa. O aparelho burocrático tem o corpo funcional dissecado. 

É difícil avaliar o que, no futuro, vai prevalecer –  a dinâmica nacional ou de classes. Em 1943, a dissolução do Communist International (Comintern) decretou o fim da revolução internacional. No momento, porém, outras variáveis intervenientes entram em cena. As desigualdades sociais, a ameaça à democracia e a crise climática re-internacionalizaram a discussão sobre a superação do capitalismo, controlado pela cobiça das finanças. Catástrofes em série se anunciam e desabam sobre a humanidade. Há pressa nos passos da emancipação para vencer a apatia política das multidões. 

É errado ignorar as questões nacionais. Ao ler no ainda atual Manifesto de 1848 que trabalhadores não tinham pátria, não raros dirigentes concluíram que a tarefa era recuperar o seu lugar na moldura nacional. Passados cem anos, em um Manifesto à Nação (1945), de afirmação da negritude, Abdias Nascimento alegou ditames da “consciência nacional” para que a Constituição de 1946 admitisse um composto no povo, de três raças: negra, indígena e branca. “Seja cada qual um soldado contra a decadência de nossos costumes, contra a ignorância e contra os preconceitos, que muitos querem negar, na guerra pela identidade de um destino que se funde com o da própria nacionalidade”.

Oprimidos e explorados desejam o reconhecimento com traços não folclorizados, artificialmente, ou eclipsados ideologicamente. Os caminhos da consciência apontam múltiplas combinações entre a luta de classes, o nacionalismo e o internacionalismo. Tais dimensões possuem concreticidade. Na literatura, “a vida como ela é” estampa tragicomédias urbanas e suburbanas, relatadas pelo talento do cronista. No realismo político, la verità effettuale della cosa interpela a contra-hegemonia para condensar a tríade de lutas plurais numa síntese superior: a utopia socialista e democrática. Esse é o desafio dos partidos e movimentos – ambientalista, antirracista, LGBTQIA+ e feminista. O dínamo está na resiliência, lucidez e companheirismo daquelas pessoas transformadoras. Nalu, presente. 

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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