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Casa de Acolhimento a jovens LGBTQIA+ é pioneira na região sul | Eliane Silveira

Referência de acolhimento a jovens LGBTQI+ da região Sul do Brasil, a casa mantida pela ONG Construindo a Igualdade, em Caxias do Sul, completou dois anos no mês de maio. Ela possui capacidade para atender dez pessoas, mas, por condições financeiras, hoje acolhe cinco pessoas por vez. Nesses dois anos, já atendeu mais de 70 pessoas. A maioria são jovens expulsos de suas residências pelas próprias famílias que ainda não conseguem lidar com o preconceito em relação à sexualidade ou identidade de gênero de seus filhos e filhas.

A inspiração para criar o espaço de acolhimento vem da própria trajetória de uma das coordenadoras da ONG, Cleo Araújo, mulher trans, expulsa de casa aos 11 anos, e mantida em cativeiro em Cuiabá, no Mato Grosso, por quatro anos. “Aos 15 anos quis morrer”, conta. “A prostituição, por muito tempo, foi a alternativa para colocar comida na mesa”, completa. Se a vida inspirou a casa, também é verdade que Cleo é uma inspiração para seus moradores. Suplente de vereadora na cidade, ela é a única assessora trans nomeada na Assembleia Legislativa do RS, onde hoje atua no mandato do deputado Pepe Vargas.

Vidas cruzadas

A ideia da casa, segundo Cleo, não é ser apenas um local de moradia provisória, mas um espaço familiar, onde tarefas são divididas, experiências são compartilhadas. “Aqui a gente conversa, acolhe, mas também discute como em qualquer família”, resume. Localizada na Serra Gaúcha, a casa é a única nestes moldes em toda região sul do país.

Tal referência a torna um farol para jovens até mesmo de regiões mais distantes. Ali suas vidas se cruzam e novos laços familiares se constroem.  É o caso de Diego Couto, 30 anos. Ele veio de Sarandi e foi o primeiro morador do espaço. “Cheguei assustado, perdido, sem apoio de ninguém”, revela. Ele conseguiu trabalho e chegou a sair da casa, mas ao ficar desempregado retornou a sua primeira moradia na cidade. “Eu li sobre a casa em uma reportagem e guardei pensando em passar para algum amigo que precisasse. Não imaginava na época que seria eu a precisar”, conta.

Formado no curso de Técnico de Alimentos e com experiência como inspetor de qualidade em diferentes áreas, Diego enfrenta com paciência e esperança uma rotina de entrevistas em busca de um novo trabalho. Mesmo com qualificação, esbarra no preconceito. Colecionar “nãos” também faz parte do cotidiano de Nicole Rosa, 22 anos. A jovem trans, que até recentemente trabalhou em um estúdio de fotografia, não esperava ter tanta dificuldade para conseguir uma nova colocação. “Tenho experiência, estou cursando duas faculdades e tenho domínio do inglês, mas quando chego para a entrevista e percebem que eu sou trans, me dispensam”, relata.

Nicole deixou Santana do Livramento para reconstruir sua vida em Caxias do Sul. Ela cursa faculdade de Moda e de Psicologia. Sente na pele a dor do preconceito, da violência e revolta-se com o cinismo que impera no mundo do trabalho. “A mesma sociedade que nos nega oportunidade de emprego e renda é uma das maiores consumidoras de pornografia trans”, comenta.

De Caxias do Sul, Olívia Garim, de 21 anos, tem consciência de que se não estivesse acolhida na casa, restaria morar na rua. Ela conta que conseguiu concluir o ensino médio porque ainda não havia iniciado a sua transição. “Cursei o ensino médio como menino, mas nem por isso escapei do bullying e da violência”. Com experiência no comércio e na indústria, tem curso técnico de metalurgia, Olívia também está desempregada. “Eu mando currículo sem foto, assim ao menos tenho mais chance de ser chamada para uma entrevista”, revela. “É difícil ser negra e trans em Caxias do Sul. É raro ver pessoas negras trabalhando em postos de mais destaque”, desabafa Olivia.

Mantida pela solidariedade

Nestes dois anos de existência, a casa é mantida basicamente pela solidariedade e pelo esforço militante de quem integra a ONG Construindo a Igualdade. O espaço é alugado e os custos de locação, energia, água, internet e alimentação são bancados pela ação de apadrinhamento. De acordo com Cleo, os valores repassados pelos padrinhos são muito importantes, mas outros tipos de doações são muito bem-vindas. “Quando nos doam conhecimento, com cursos, oficinas, trabalho técnico disponibilizado, estão contribuindo para o processo de educação das pessoas que vivem aqui”, exemplifica.

É com estas parcerias que a casa consegue disponibilizar cursos como de artesanato, cabeleireiro, confeitaria, informática e de preparação para o Enem. Também é através de parceria com duas faculdades que são garantidas assistência social e psicológica aos moradores. O trabalho voluntário de advogados e advogadas encaminha os processos de retificação dos nomes e de nova documentação para as pessoas que concluíram a transição.

A criatividade tem sido a receita utilizada para resolver muitas demandas. “Os primeiros móveis da casa foram todos construídos por mim e outros voluntários juntando sobras de obras em containers”, conta Cleo Araújo. Confecção e venda de artesanato, campanhas de doação de alimentos, entre outras ações, são algumas das alternativas encontradas. “Para mim, que conheci a ONG pela dor das violências que sofri, ser ativista não é só colocar uma bandeira nas costas e participar das Paradas Livres. Ser ativista é agir para mudar a realidade onde estou. Lutar contra a discriminação e preconceito nos espaços onde estou”, destaca.

Apadrinhamento

A ONG trabalha para obter a certificação de utilidade pública, credencial que lhe permitiria receber recursos públicos, uma vez que hoje presta um serviço que o Poder Público não disponibiliza. Com mais recursos seria possível dobrar a capacidade de acolhimento. Ao olhar a casa ao lado disponível para locação, Cleo Araújo sonha com a expansão do trabalho. “Quero propiciar a estes jovens meninos e meninas a oportunidade que eu não tive quando era apenas uma criança”.

Quem quiser conhecer o trabalho desenvolvido, fazer parte da lista de apadrinhamento ou mesmo encaminhar doações, pode acessar o instagram @ongconstruindoigualdade ou enviar uma mensagem para o WhatsApp (54) 99161-3078. Doações em alimentos, materiais de higiene, livros e outros materiais também podem ser encaminhadas para a casa na Rua Miguel Muratore, 427 – Bairro Madureira, em Caxias do Sul.

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