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Classe trabalhadora e esquerda na França – quem migrou para onde? | Reginaldo Moraes

Por Reginaldo Moraes no Jornal da Unicamp

Vista de longe, a França parece ser mais um exemplo – exemplo exemplar, por certo – daquela situação que a mídia tem ecoado e comemorado: a classe trabalhadora já não é mais aquela, deixou de votar na esquerda, passou a apoiar a ultradireita.

Menas, menos, diria a fala popular. Celine Braconnier e Jean-Yves Dormagen já haviam mostrado o quanto a França se transformava em uma “democracia da abstenção”. Abstenção em sentido amplo – indiferença, alheamento com relação à política e especialmente ao voto. O “tanto faz” começa no momento da inscrição eleitoral – o que seria equivalente, digamos, a renovar o titulo de eleitor, procedimento periódico exigido do eleitor francês. Isso já tira do jogo um percentual nada desprezível de potenciais votantes. E continua nas outras manifestações do “que se dane”: não votar, votar em algo que sabidamente está fora da disputa. E essa atitude, mostram eles, é muito mais presente nas classes populares, não entre os ricos e a classe média. O estudo foi publicado em La Démocratie de l’abstention – aux origines de la démobilisation électorale em milieu populaire (ed. Gallimard, 2017).

Mas, feita essa ressalva, sim, uma parcela da classe trabalhadora – ou das famílias trabalhadoras – votou na Frente Nacional, o partido da ultradireita. Também se deve levar em conta que Marine Le Pen fez de tudo para se “normalizar” e tirar de cima de sua imagem aquela escabrosa marca de seu pai, o fundador do Front. O velho Le Pen estava muito marcado pelas suas declaradas e escrachadas simpatias nazi-fascistas. Le Pen, com ajuda de boa parte da mídia, se maquiou devidamente – ao ponto de casar com um judeu.

Em Cette France de Gauche qui Vote Front National (ed. Seuil, 2017), Pascal Perrineau faz uma provocação consistente. Mostra que, sim, a FN foi muito bem-sucedida em antigos bastiões do voto comunista e socialista. E que saiu do nicho folclórico (menos de 200 mil votos na presidencial de 1974) para a condição de partido de massas (10,5 milhões de votos no segundo turno da eleição de 2017).

Um primeiro elemento curioso é evidenciado pela análise dos boletins de voto e das pesquisas qualitativas que permitem “fatiar” o eleitorado. Veja o quadro abaixo, com a votação dos principais candidatos no primeiro turno – a fase “classificatória”. Inclui Poutou, da ultra-esquerda por motivos que explicarei mais adiante.

Reparem que a diferença entre Le Pen e Fillon (direita) é de menos de 500 mil votos. E a diferença entre Le Pen e Melenchon (esquerda) é de pouco mais de 600 mil votos. Ora, a análise dos resultados desagregados e das pesquisas permite estimar que Marine “capturou” perto de 700 mil votos de eleitores que tradicionalmente escolhiam a esquerda. Em outras palavras, se eles tivessem anulado ou votado em Melenchon, a disputa no segundo turno seria inteiramente distinta. E o quadro seria ainda mais complexo se levarmos em conta que a esquerda se dividiu nesta fase e o Partido Anti-Capitalista resolveu lançar Poutou, que teve perto de 400 mil votos, quase o necessário para que Melenchon superasse Le Pen (mesmo que ela tivesse, como teve, os 700 mil votos de outros simpatizantes da esquerda).

O quadro é de complexa interpretação, não é? Piora quando vemos o conteúdo das campanhas e as motivações dos votantes. É esse o espanto que Perrineau provoca com o exame detalhado. Na primeira parte do livro, explorando dados quantitativos – resultados das urnas e pesquisas focalizadas que permitem “desagregar perfis” dos eleitores.

Perrineau mostra a aderência das classes populares (e principalmente dos operários) ao PCF e, secundariamente, ao PS. Ela tem picos em 1974 e 1981 (quando Mitterrand ganha a presidência) e segue alta mesmo em 1988, quando o governo socialista já havia deslizado para políticas liberais e decepcionado muitos de seus simpatizantes.

Só que… isso foi mudando e aparentemente só não mudava mais claramente pela falta do lado da “oferta”, isto é, do retrato demasiadamente ofensivo dos candidatos da direita. Aí entra a normalização de Le Pen e sua paulatina adoção de lemas e plataformas que falavam aos interesses e, sobretudo, aos ressentimentos das classes populares abandonadas pelos socialistas (já que o PCF praticamente se desmanchava depois do desaparecimento da URSS). Em 1995 essa mudança já era clara. E, paulatinamente, a FN, mesmo identificada com o caricato Le Pen pai, herdava parte do desencanto operário, construindo um discurso voltado para esse público, mais ou menos como fizera o velho fascismo dos anos 30.

Veja o discurso de Marine Le Pen já em 2011, no congresso da FN, em que assume a direção do partido:

“(denunciamos) o reino desregrado do dinheiro (…), o aviltamento de nossas classes dirigentes e dos super-ricos que vendem nosso trabalho, nosso patrimônio (…) o dogma do ultraliberalismo do laissez-faire, desses alunos comportados da mundialização (…) mundialização que se transformou em horror econômico, em tsunami social”.

Diante desse quadro, propõe:

“um Estado que lute em todas as frentes contra a injustiça engendrada pelo rei-dinheiro (…) a revalorização do trabalho e da economia graças ao protecionismo social e territorial, de modo a impedir a concorrência desleal, o desmantelamento de nossas economias e a destruição de nossos empregos (…) um Estado que deve retomar um papel regulador na área econômica e retomar o controle de certos setores estratégicos como energia, transportes e, se necessário, os bancos”.

Aí vem a parte mais aguda do livro. Através de grande número de pesquisas qualitativas – entrevistas, depoimentos – exploram-se as motivações dos eleitores “esquerdistas” da FN. Todos eles se dizem de esquerda, herdeiros da esquerda (de seus pais e avós). Ao mesmo tempo… dizem que é precisamente isso que os distancia dos candidatos socialistas e os aproxima da FN. Não apenas de Le Pen, mas dos candidatos locais que têm encarnado a FN. Alguns deles, registre-se, antigos militantes comunistas e dirigentes sindicais ultramilitantes.

Enganados? Pode ser. Mas não se pode dizer que tenham abandonado suas crenças.  Apenas votam naqueles que parecem reencarnar o que era o PCF que tinham na memória. Uma certa vez Toni Blair dissera que não fazia falta ao Partido Trabalhista perder os operários, já que ganhava apoio nos “novos públicos”. Hollande disse algo parecido. Não deveriam se surpreender, portanto, que esses trabalhadores dissessem que não lhes fazia falta perder o PSF ou o Labour.

No caso francês, a erosão da base social da esquerda política – um fenômeno transnacional – manifesta-se com traços muito peculiares. De fato, ao que parece, as classes populares não migraram para a direita. Votaram em algo que pensam dizer o programa da esquerda. É algo diferente…

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

 

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